Realidade

A despeito de antigas advertências brâmanes, costumávamos acreditar em uma realidade. A crença é tão profundamente encravada em nossa cultura, em nosso pensamento, que se torna difícil formular qualquer dúvida referente à “realidade da realidade”, asserção talvez pressuposta em nossa linguagem.

Foram as simulações de realidade virtual, muito mais que as incríveis e geniais (literalmente) elucubrações cartesianas, que despertaram o ocidente para a possibilidade de uma realidade ilusória; de uma grande ilusão compondo tudo o que chamamos “realidade”. Cálculos probabilísticos tendem a confirmar a hipótese mística.

O cálculo é simples. Se a humanidade sobreviver por, ao menos, mais uns séculos, o número de simulações realizadas será imenso, a realidade uma só. Sendo a probabilidade de estarmos exatamente no mundo original, o real, o inverso desse número ilimitado, constatamos que a probabilidade de realidade do mundo ao nosso redor é 0.

Foram externadas certas dúvidas sobre a possibilidade de execução de simulações perfeitas, tarefa supostamente tão vasta quanto todas as realizações tecnológicas futuras conjuntamente. A dúvida lançaria objeção à infinidade de simulações pressuposta no cálculo acima. A objeção pressupõe o conhecimento prévio da realidade. Simulações condensadas satisfariam aos que nunca viram a realidade. Os mecânicos quânticos afirmam a existência de 11 dimensões, a maioria enrolada em si mesma. O que chamamos “realidade” talvez seja apenas uma simulação 4d free demo.

Estamos em vias de nos coagular formando uma supra-entidade descomunal, uma espécie de híper-cérebro composto por quase 10 bilhões de indivíduos-neurônios conectados em uma imensa rede incluindo centenas de bilhões de computadores e trilhões de outras quinquilharias tecnológicas, como telefones e toda a sorte de eletrodomésticos que logo comporão a internet das coisas. Em uma, ou duas décadas, a criatura imensa, a super-rede, emergirá da congregação de nossos cérebros e de mais um trilhão de outros nodos. Ao nos conectar ao imenso ser, manifestaremos a propriedade herdada de nossos neurônios de agir conjuntamente. Demonstrações de poder são manifestações da tendência à organização herdadas de nossos neurônios. A rede imensa nos coagulará, nos transformará em seus neurônios. Será a neuronização da humanidade.

Neuronizados, comporemos o grande ser.

Nossa mente é um sistema organizado, uma rede, alocada em uma massa de neurônios. Conectados conjuntamente e entranhados nos trilhões de nodos computadorizados, comporemos uma grande mente coletiva que nos dominará, nos comandará, nos escravizará, nos coagulará. A ela nos entregaremos.

Imersos na mente colossal abdicaremos da realidade, mergulharemos no cerne da mente coletiva, em seus sonhos, em seus devaneios. Ali viveremos e sonharemos; ali criaremos e compartilharemos mundos e realidades.

No princípio será o verbo, e depois será criada a luz. E todas as criações se sucederão seguidamente.

Revelações sobre a morte: game over

A morte é a recarga do tempo. A noção de tempo exige a comparação entre intervalos presentes e passados, resultando em uma minimização constante dos intervalos de tempo presente; a inexistência de morte nos transformaria em frívolos devoradores de anos, de séculos, de milênios. Devoraríamos milênios como se fossem segundos. A morte zera a escala de tempo, permitindo sua fruição. Ao renascer os segundos voltam a ganhar a robustez originária, todo tempo é tempo, em sua natureza fractal.

Outra distorção existente em nosso software de percepção de tempo nos impõe uma inversão cruel. Esticamos a extremos os momentos tediosos, enquanto comprimimos absurdamente os instantes de euforia, fenômeno nitidamente percebido pelos apaixonados, evidenciado pelas longas, angustiantes e tenebrosas horas à espera da amada, estendidas até quase uma eternidade, para sua consumpção imediata, em um lampejo quase instantâneo, pouco importa quanto tempo tenha durado o encontro.

As horas passadas com a amada terão sempre durado um átimo, não importando o que documente o relógio, em contraste radical com a aflição dos instantes que antecederam o encontro, transformados quase em séculos. A distorção é cortesia da rede que nos governa; consiste no retesamento dos cordões que nos atam ao grande grupo, evitando a possibilidade de escape pelos apaixonados.

Pressupomos uma existência material evoluindo no tempo; uma semente embrionária se desenvolvendo, transformando-se em um corpo que cresce e depois morre. Pressupomos o desenvolvimento de um corpo material evoluindo no tempo, originado em um início, terminado em um fim. Nossa mente, no entanto, nossa consciência, é apenas uma rede, uma forma de organização. Nossa mente é um evento no cérebro, similar à atividade de um software em uma máquina, corresponde aproximadamente àquilo que vemos na tela do computador.

Analogamente ao programa em ação no computador, nossa mente ordena a máquina cerebral, organizando as conexões entre os neurônios como as memórias no circuito eletrônico. A neuronização permitirá a transferência das conexões que compõem a mente para a grande rede, para o imenso ser composto pelos trilhões de aparelhos computadorizados em conexão direta. A rede de redes.

A rede de redes, de redes, de redes… perdendo-se em vastidões quase ilimitadas.

O pressuposto se conecta a si mesmo, como ouroboros, ao se considerar o papel do tempo.

A não-extinção da humanidade em um tempo curto garantirá (além de dúvida racional) a construção de uma rede vastíssima englobando bilhões de cérebros e quantidade impensável de outros nodos embebidos em uma capacidade computacional desconcertante.

Essa vastidão quase ilimitada permitirá uma infinidade de simulações, de simulacros de mundos, de vivências imaginárias realizadas na máquina como atualizações de vídeos pelo you tube, ou pensamentos transcorrendo em uma mente.

As inúmeras vivências virtuais serão indistinguíveis das reais, e vastamente mais numerosas que elas. Mundos retrôs, baseados em informações sobre o passado serão criados aos borbotões, gerando uma infinidade de simulações para cada evento real. Mundos passados serão revividos em futuros distantes, seguidamente.

A tecnologia de entretenimento que gerou a fotografia, o vídeo e o cinema 3d, acabará por criar um sistema de imersão total em realidade virtual; será o resultado definitivo até que as hiper-realidades cativem algumas mentes mais arrojadas.

Ouroboros                                          

Fecha-se o círculo. A possibilidade de construção de inúmeros mundos passados colapsa o sistema. A realidade se condensa em um único ponto entre inúmeros outros. Dentre todos os infinitos mundos possíveis só houve um real, o primeiro. A probabilidade de estarmos nele é zero. A realidade se dissolve, perde o sentido. Explica-se, desse modo, a constatação de que nosso mundo tenha sido criado por um deus comediante.

Neuronização e imortalidade

A neuronização nos cativará, não permitirá que nos rebelemos. Acenará com a imortalidade. Reviveremos continuamente as inúmeras vivências, as alegrias e as tristezas, os fracassos e as glórias. Reviveremos as alegrias efusivas dos grandes feitos heroicos, e mergulharemos nos momentos mais trágicos, alegraremo-nos em sofrer os mais infaustos dramas, as desditas mais comoventes, os momentos mais fúnebres. Oh, admirável mundo novo!

Entregaremos nossas mentes, nossas almas, nossas vivências integrais e eternas ao grande ser com o qual nos mesclaremos, e que comporemos. Seremos nós a sua carne. Não haverá fronteiras, percorreremos o imenso ser como um pequeno conjunto ordenado de conexões, é tudo o que somos. E tudo a que aspiraremos será um momento de atualização de nossa mente no palco central, na mente do grande ser.

Ver também:

https://www.linkedin.com/pulse/sobre-o-absurdo-gustavo-gollo?published=u

Redação

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