Mário Novello e o surgimento da massa inercial

Por Mariano S Silva

O bóson de Higgs: To Be or not To Be

Recentemente, em um artigo na Scientific American Brasil julho/2011, o cosmólogo brasileiro Mário Novello divulga para o público em geral o resultado de um trabalho recente sobre o mecanismo de surgimento da massa inercial (comumente conhecida como massa mesmo) de todas as coisas. Como a proposta dele compete com o famoso mecanismo de Higgs, penetrando em uma área de debates muito quente na física (experimentos de vários bilhões de dólares) e que possui profundas implicações filosóficas, achamos que vale a pena trazermos o assunto para os leitores do blog. Quem se dispuser a ler em inglês o comentário de um debate quente entre Stephen Hawking e Peter Higgs, dê uma olhada em:http://web.archive.org/web/20050416064223/http://millennium-debate.org/ind3sept023.htm

O mecanismo, baseado em argumentos da teoria quântica de campos, que foi proposto por Peter Ware Higgs na década de sessenta, foi explorado em muitos detalhes em inúmeras publicações técnicas, artigos de Scientific American, livros de divulgação e textos técnicos em teoria quântica de campos. Para quem desejar ver mais detalhes a nível de divulgação científica, o livro: O tecido do cosmo – O espaço, o tempo e a textura da realidade de Brian Greene / Companhia das Letras (2005). Para aqueles que quizerem mergulhar em detalhes técnicos: An Introduction to Quantum Field Theory – Michael E. Peskin and Daniel V. Schroeder / Addison Wesley (1995).

A idéia básica consiste em postular um campo de forças escalar, ou seja, uma função que assume um valor numérico em cada ponto do espaço-tempo e que possuiria a forma do famoso “sombrero” mexicano, o qual ao interagir com as partículas de massa zero dos campos, produziria a massa observada das partículas constituintes do Universo. A coisa toda brota no contexto das chamadas teorias de calibre (gauge) que se tornaram muito populares ao explicarem experimentos onde se observa a unificação da força eletromagnética com a força fraca de origem nuclear (desintegração radioativa). Também, resultados mais recentes, parecem corroborar a unificação destas com a força forte nuclear (o cimento que une protons e neutrons no núcleo do átomo). A conjunção da tripla unificação é conhecida como modelo padrão (standard model) e constitui uma das obras mais vistosas da física contemporânea. A unificação com a última das forças conhecidas, a gravitação, ainda está por ser feita e repousa em problemas técnicos formidáveis, atualmente.

Me estendi um pouco em detalhes para poder facilitar o vislumbre das paixões envolvidas na defesa do mecanismo de Higgs, e por conseguinte, de todo o modelo padrão. Dá para se compreender que décadas de trabalhos de milhares de pessoas e bilhões de dólares dos contribuintes não irão ser abandonados sem muita luta, mesmo que o LHC não produza o famoso bóson de Higgs. Nietzche tem muita razão quando foca o aspecto da mente da vontade (da emoção ou do coração) como prevalente nas relações humanas. Jesus Cristo coloca isto com muita clareza há dois mil anos atrás; daí a ênfase no coração puro…Tenho sempre enfatizado este aspecto muito humano (demasiadamente humano…) do debate científico. Qualquer discussão envolvendo argumentos lógicos passa antes pela paixão da defesa de nossas verdades! Tenho feito experimentos sociológicos ao defender algumas de minhas ideias polêmicas neste blog e observado a resposta apaixonada a elas.

Deixando o aspecto passional da discussão, vejamos o lado filosófico das ideias contidas no modelo padrão. As teorias de calibre repousam em simetrias locais que geram efeitos globais. A estrutura matemática destas é formulada no que se entende por espaços fibrados, que podem ser visualizados, grosseiramente, como um tecido de espaço-tempo (4 dimensões) com cabelos (as fibras). É nestes “cabelos” que residem os campos de calibre. Estes “cabelos” não são unidimensionais e são, na verdade, espaços (vetoriais) com múltiplas dimensões existentes em cada ponto de nosso espaço-tempo. Quanto maior a unificação dos campos de força, mais dimensionalidade e complexidade residem nestes “cabelos”. O que é importante para o aspecto filosófico que queremos sublinhar é que estas simetrias (de calibre) são locais e reproduzem o global a partir de operações locais. Há um livro que foca o debate filosófico nessas simetrias locais: How is Quantum Field Theory Possible? de Sunny Y. Auyang / Oxford (1995).

Este resumo extremo das coisas é o que se pode chamar de “field theoretic approach” para a solução do problema de explicar a massa dos objetos no Universo. A comunidade “field theoretical” é de longe a dominante na física e isto não é de se estranhar, tendo em vista o enorme volume de dinheiro envolvido em experimentos, bolsas de pós-graduação, salários de professores e desenvolvimento industrial na periferia dos laboratórios. Correndo em paralelo a este “mainstrean” glamuroso da física, a comunidade dos relativistas, cosmólogos (só recentemente respeitados como cientistas) e dos astrônomos / astrofísicos, ficava confinada aos departamentos da academia. Na visão deste grupo a gravitação desempenha um papel mais que coadjuvante na explicação da realidade física. Alguns, inclusive, como Mário Novello, postulam a ideia de que a cosmologia seria uma nova ciência e que a física (das observações locais) dependeria daquela. Voltaremos a este ponto mais adiante.

A ideia de se gerar massa a partir de interações não-lineares de campos de massa nula (partículas que viajam à velocidade da luz) com outro campo de força, não é nova, o problema são os detalhes técnicos. Eu mesmo, há algumas décadas atrás me diverti com um “toy model” de interação de dois fótons de mesma energia contra-propagando em direções opostas (momenta opostos) em um campo escalar do tipo quadrático. A ideia é similar ao batimento homodino em rádio-comunicações. Como usei ondas planas, obtive objetos de simetria planar: um plano carregado oscilando com a frequência de “zitterbewegung” e alguma coisa que longiquamente se poderia chamar de massa. Se fizermos uma mudança de referencial (uma TL) o objeto se move como uma “partícula” (planar, é claro). O meu grande espanto foi quando descobri em um livro russo, na época, que eles haviam feito o experimento com feixes de laser contra-propagantes de mesma frequência em um plasma (meio não-linear) e haviam observado o plano oscilante de carga elétrica!

A linha de ataque ao problema da geração de massa proposta por Mário Novello provém da linhagem relativista, através do princípio de Mach. Ernst Mach propôs ainda no século IXX que a massa inercial dos objetos materiais seria devida à interação gravitacional com a massa de todo o Universo. Ele não formulou equações que dessem suporte às suas ideias, as quais herdou do Bispo de Berkeley, contemporâneo de Newton. Entretanto, motivou Einstein a desenvolver sua teoria da relatividade geral no século XX. Existe ainda alguma discussão se a relatividade geral (RG) inclui o princípio de Mach ou não e há um livro excelente que aborda em mais detalhes este e outros pontos: Essential Relativity – Special, General and Cosmological de Wolfgang Rindler, ed. Van Nostrand Reinhold (1969).

O trabalho de Novello (http://arxiv.org/abs/1003.5126v2) começa assumindo a existência da constante cosmológica ^ que interage (não-minimamente) com um campo escalar universal de força. Embora este último seja descrito como um campo local a constante cosmológica é de origem global e representa a ação do Universo como um todo em cada ponto de Si-mesmo (princípio de Mach). Como resultado dessa interação o campo escalar de massa zero ganha massa que é diretamente proporcional à constante cosmológica ^. Portanto, o campo de Higgs (escalar) adquire massa da interação com o restante do Universo através de ^. Uma linha de trabalho que deve estar em andamento é a extensão desses resultados aos demais portadores das forças do modelo padrão (bósons vetoriais). Em seguida Novello usa uma equação para férmions (partículas da matéria: elétrons, prótons, neutrons, etc) de massa nula e demonstra que estes também adquirem massa da interação com a gravitação, e que esta massa é também diretamente proporcional à constante cosmológica. Moral da estória: campos de forças, ou de matéria, de massa nula, ao interagirem (não-minimamente) com a gravitação tornam-se massivos e sua massa depende do resto do Universo! Em outras palavras: a inércia das coisas é o resultado do Todo agindo nos uns!

O resultado acima acoplado a inúmeros experimentos recentes nos fundamentos da mecânica quântica, que demonstram claramente ações globais (emaranhamento e colapso da função de onda) na natureza, abre a porta para novas concepções filosóficas que se afastam do “zeitgeist” cultural, herdado de Newton / Leibnitz, fundado em interações locais. É claro que a conveniência de se lidar com uma matemática local que expressa muito bem a lógica de Aristóteles na análise de “caixas” isoladas do resto do mundo, nunca será abandonada. Urge, entretanto, o desenvolvimento de novas ferramentas (lógicas e semânticas) para lidar com o global. Desenvolvimentos recentes na classificação dos espaços de Calabi-Yau na teoria das cordas parecem apontar na direção desses novos métodos na matemática.

O mundo não pode ser dividido em caixas isoladas e as lições dolorosas desta tentativa primeira de entender a realidade que nos cerca, estão brotando na ecologia, no clima, na economia, etc. Uma nova disciplina começa a ganhar asas: a biologia quântica. Fenômenos insuspeitados pipocam no que se pensava como o mundo das identidades isoladas: seres vivos, mentes e ecosistemas. A rutura deste dogma (da isolabilidade de sistemas) finalmente nos libertará para compreender o Universo que nos cerca. Eis a tão desejada síntese ocidente / oriente, também homem / mulher, na humanidade!

Por Bruno Carneiro da Cunha

Texto hermético o suficiente para ser entendido apenas por quem já tem conhecimento técnico em física de altas energias. Não estou certo que um foro como este é o melhor lugar para se discutir esse tipo de ideia, pois sem matemática tendemos ao debate filosófico. Mas enfim.

Há várias considerações, alguns equívocos, e algumas perguntas que se põe, principalmente para quem quer deixar de lado a pecha de “rebelde inocente” e realmente se debruça sobre o Modelo Padrão da Física de Partículas tentando entendê-lo. Vou me ater a dois:

– O modelo de Novello para o surgimento de massa funciona via a interação com a constante cosmológica. É um efeito de renormalização, e assim quântico. Porém o quântico está apenas na interação (campo escalar ou espinorial) e não na constante cosmológica (a gravitação). A gravitação continua clássica, e assim o problema não requer conhecimento de gravitação quântica para a emergência de massa. Desta forma, é difícil ver o ganho conceitual deste modelo sobre o mecanismo de Higgs, que essencialmente usa os mesmos ingredientes (energia de ponto zero e modo homogêneo de um campo escalar ao invés de um campo gravitacional). Incidentalmente, esta ideia de Mach que a inércia local é definida pela distribuição de matéria no espaço já é incorporada pela Relatividade Geral. Ressalto que Mach estava longe de ter uma visão clara sobre a emergência da inércia e muitas das ideias propostas por ele eram contraditórias ou simplesmente erradas. Felizmente, em ciências naturais, o apelo à autoridade não vale nada frente ao apelo à Natureza.

– O fato do Higgs existir ou não está em aberto, de fato. Porém a sua existência indireta já é medida nas propriedades de essencialmente todas as outras partículas do modelo padrão. A mais direta são as massas dos bósons vetoriais massivos. Qualquer modelo proposto com o intuito de substituir o modelo padrão tem que dar conta desses dados já existentes antes de ser levado a sério. Por último, o fato de não haver uma partícula de Higgs associada a um campo de Higgs também não implica que o último não exista. Há vários modelos, principalmente em matéria condensada, em que as interações são tão fortes que é impossível criar um pacote de onda coerente a partir das excitações do campo. Se algo assim está acontecendo aqui, não se sabe. Mas é o que parece que a reserva de Novello ao mecanismo de Higgs é muito mais filosófica que baseada em argumentos físicos.

Luis Nassif

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