“Era só um carinho”: TVGGN entrevista psicóloga referência no enfrentamento à violência infantil

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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O programa "Cai na Roda" deste sábado (24) recebe a psicóloga e fundadora do Projeto Renascer, Neusa Maria, que aborda o enfrentamento da violência contra a criança

Jornal GGN – Todos os dias, 234 crianças são vítimas de violência no Brasil. O Cai na Roda deste sábado (24/04) traz como convidada a psicóloga Neusa Maria, especialista em saúde mental, fundadora do Projeto Renascer e co-autora da cartilha “Eu me protejo”, colocando em cena os direitos das crianças e das mulheres, em meio a violências e agressões acentuados na pandemia.

O caso que assomou o noticiário brasileiro dos últimos dias, do assassinato de Henry Borel, 4 anos, por espancamento, não é isolado.

De acordo com um estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), pelo menos 2 mil crianças até 4 anos foram mortas por agressão no Brasil, de janeiro de 2010 a agosto de 2020. A estimativa de especialistas é que para cada caso registrado de óbito, outros 20 ocorreram, mas sem denúncias ou registros.

A especialista consultada pelo Cai na Roda lembra que os números são ainda maiores para as agressões: “De 2011 a 2018, 184 mil casos de violência doméstica foram notificados pelo Ministério da Saúde. Infelizmente, se não houvessem subnotificações, esse número poderia ser triplicado. A violência doméstica é a primeira maior cometida contra crianças no Brasil. A segunda maior é a violência sexual infantil, o abuso infantil”, apresentou.

Todos os dias, estes registros significam 243 casos de tortura, agressões físicas ou psicológicas contra menores. Durante pandemia, relata a especialista, a própria diminuição das denúncias e o aumento de mortes só comprovam que o cenário piorou. “O Estado não consegue proteger essas crianças, por isso que a violência aumenta, ainda mais”, lamentou.

Uma violência invisível e os sinais

Por se tratar de números ainda invisíveis e que a maioria dos casos ocorrem dentro da própria casa da criança, envolvendo pessoas de seu círculo familiar, principalmente os responsáveis, as crianças são reféns de seus agressores e não mostram as violências vividas.

E, seja pelas condição de viver com os seus agressores ou até por acreditarem que estes tipos de comportamentos são “normais”, as crianças pouco demonstram, ou quando o fazem, usam de outras linguagens para revelar a situação em que vivem.

Escritora de livros infantis, Neusa Maria destacou como as crianças manifestam que estão vivendo uma situação de violência, como os adultos devem escutar e entender estes sinais. “Ao brincar, a criança se expressa, comunicando seus conflitos. É como ela pede socorro, ajuda.”

Desenhos são pedidos de socorro

Segurando nas mãos desenhos de crianças feitos durante a preparação da cartilha “Eu me protejo“, um projeto de conscientização das crianças do qual a psicóloga é co-autora, Maria narrou as demonstrações:

“Nessa cartilha tem um espaço que diz ‘Desenhe como você se sente’. Em 2019, quando eu comecei a trabalhar com ela, eu pedi para essa criança fazer o desenho, ela desenhou o padastro, bem alto, com os braços bem compridos, e ao lado ela, a mãe, o irmão e a irmã. E a gente percebe que está todo mundo com a cabeça torta. Nós descobrimos que essa criança sofria violência sexual, o padrastro cometida essa violência contra a criança, a criança infelizmente teve uma doença venérea, que identificamos muitas lesões na boca, e ela entendia que era normal e que todo mundo fazia isso. Nós conseguimos descobrir através do desenho.”

Em outro desenho também da cartilha, Neusa Maria mostra que a criança desenhou duas casas, a da avó, colorida e com sol, e a sua, com chuva, trovão e preta. “Ela pintou a sua casa com tanta força que rasgou a folha”, disse. “A gente percebeu que essa criança também estava em uma situação de abuso”, continuou.

Políticas adultocêntricas e impactos na vida adulta

Segundo a especialista em saúde mental, parte do problema atual está na visão adultocêntrica para as políticas públicas pensadas para a infância. “Quando não há prevenção, há uma prevenção de direito. E hoje em dia há uma visão adultocêntrica da criança, a criança não participa de políticas sociais que dizem respeito a ela. Nós precisamos de políticas públicas efetivas relacionadas à infância.”

Os reflexos de uma criança vítima de violência também geram impactos na vida adulta. Para a especialista, ainda hoje, “as pessoas não entendem a gravidade que é a violência contra criança e contra mulheres, é cruel, é desumano, e isso desenvolve vários tipos de adoecimento e impede o desenvolvimento emocional saudável tanto dessas mulheres, quanto dessas crianças.”

Ao final da entrevista, Neusa Maria fez a leitura à redação do GGN do emocionante poema “Era só um carinho”, que reproduzimos abaixo:

"ERA SÓ UM CARINHO 
ERA SÓ UM CARINHO... 
E NINGUÉM PERCEBIA A TRISTEZA EM MEU OLHAR. 
UM BEIJO MELADO QUE MACHUCAVA A MINHA ALMA E ME TIRAVA O SORRISO. 
EU NÃO SABIA, QUEM PODERIA ME AJUDAR. 
ERA SÓ UM CARINHO... 
QUE ME FAZIA VESTIR DUAS CALÇAS AO MESMO TEMPO! 
QUE ROUBAVA A MINHA INFÂNCIA, ME IMPEDIA DE SER CRIANÇA, ME FAZIA SENTIR VERGONHA, TOMAR TODOS OS BANHOS POSSÍVEIS, 
ESFREGAR O MEU CORPO, ATÉ SANGRAR! 
ERA SÓ UM CARINHO... 
E EU...ME SENTIA FRACA E CANSADA.A MINHA VONTADE ERA FUGIR DE CASA,EU NÃO QUERIA VIVER! OS DIAS ERAM FRIOS COM CHUVAS DE LÁGRIMAS!O MEDO... 
ERA O QUE ME RESTAVA. 
ERA SÓ UM CARINHO... 
QUE DE DOR, DILACERAVA O MEU PEITO! E EU... ME SENTIA SUJA E CULPADA. EU ME PUNIA POR ESSE SEGREDO E ME AUTOMUTILAVA, A SOLIDÃO ERA A MINHA COMPANHIA. 
ERA SÓ UM CARINHO... 
QUE A MINHA BOCA PRECISAVA SER SUFOCADA! E EU... SENTIA NOJO DE MIM! ODIAVA O MEU CORPO! POUCAS PALAVRAS SAIAM DA MINHA BOCA.EU SÓ QUERIA, DORMIR PARA SEMPRE. 
ERA SÓ UM CARINHO... 
QUE O SILÊNCIO ME IMPEDIA DE PEDIR SOCORRO, LÁGRIMAS QUENTES ESCORRIA PELO MEU ROSTO, NINGUÉM ENXERGAVA O MEU SOFRIMENTO! PORQUE ERA SÓ UM CARINHO... QUE ME FAZIA, FAZER XIXI NA ROUPA, DE TANTO PAVOR! 
ERA SÓ UM CARINHO... 
DE QUEM DEVERIA ME AMAR E CUIDAR DE MIM. DE ALGUÉM QUE ESTAVA ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA. QUE ME DEIXAVA CONFUSA..PORQUE O CARINHO... ERA TERRÍVEL! 
ERA SÓ UM CARINHO... 
QUE EU... NÃO SUPORTEI E GRITEI! MAS NINGUÉM CONSEGUIU OUVIR! 
PORQUE ERA SO UM CARINHO.. QUE AOS 9 ANOS, O MEU CORPO JÁ SEM FORÇAS... 
NÃO CONSEGUIU RESISTIR!

Participaram deste episódio as jornalistas Lourdes Nassif, Patricia Faermann, Tatiane Correia e Maria Eduarda Cambraia (estagiária). Assista:


Sobre o Cai na Roda

Todos os sábados, às 20h, o canal divulga um novo episódio do Cai Na Roda, programa realizado exclusivamente pelas jornalistas mulheres da redação, que priorizam entrevistas com outras mulheres especialistas em diversas áreas. Deixe nos comentários sugestão de novas convidadas.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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