Affonso Pastore e a Matemática Básica, por Nathan Caixeta

Economistas defendem taxa neutra de juros e criticam gastos do governo, mas são os investimentos públicos que geram renda e crescimento econômico

Crédito: Rovena Rosa/ Agência

Affonso Pastore e a Matemática Básica

por Nathan Caixeta

Fui surpreendido pelo artigo de Affonso Celso Pastore, que estreou o ano questionando “Qual será a reação do governo quando o crescimento econômico se reduzir em 2024?”. A pergunta deixa explicita uma afirmação, de que o crescimento será menor no ano que chegou.

A explicação do ex-presidente do BC para o exercício de futurologia é curiosa e articula sabedorias sobre a dinâmica entre a política fiscal, a política monetária e o crescimento econômico. Segundo ele, a confiança do governo 

“De que um espaço fiscal maior gere crescimento pode levá-lo a elevar ainda mais os gastos, com reflexos acentuados sobre a taxa neutra de juros e sobre os prêmios de risco. Como o crescimento depende da taxa real de juros, é inevitável que, além de elevar a pressão para que o BC dê sua colaboração baixando um pouco mais os juros, force um aumento maior dos gastos. Este é o verdadeiro teste que revelará se o arcabouço é ou não aquele de que o País precisa.”

A “taxa neutra de juros”, diria qualquer Wickselliano, é aquela que equilibra o conjunto de recursos poupados pela sociedade (ou ainda, aquilo que ela deixa de consumir) e o conjunto de recursos demandados para operações de investimento (ou, o consumo futuro que a sociedade realiza para aumentar a produtividade). Esse raciocínio obriga o futuro a operar no presente, pois o aumento da produtividade e da riqueza da sociedade no futuro dependeriam da abstinência ao consumo no presente. Diriam outros, como os editorialistas do Estadão, que qualquer dona de casa sabe que “quem poupa sempre tem”.

Vamos imaginar que na Vila da dona de casa todos combinem em reduzir o volume de gastos para que, no futuro, possam disponibilizar seus recursos para hábeis alocadores de recursos. Seu Zé deixa de comprar pão na padaria. Dona Maria não vai mais com tanta frequência à feira. Seu João se ausenta do botequim da esquina. O que acontece?

Seu Zé, dono do botequim, não vende cerveja. Dona Maria, dona da padaria, não vende pão. Seu João, o feirante, assiste sua renda sucumbir junto às verduras que estragam. Se a renda de Seu Zé depende da cerveja que ele vende, a de Dona Maria depende da venda do pão, e a de Seu João vem das verduras que vende, se todos param o gasto, a renda de todos cai. Os aplicadores de recursos, ávidos por emprestar dos nobres poupadores, voltariam de mãos vazias, pois o banco só poderia emprestar o que recebe em depósitos (poupança), exigindo taxas de juros crescentes para remunerar a abstinência ao consumo no presente. 

Além disso, se Dona Maria, Seu Zé e Seu João se encontram com menos recursos, o que os aplicadores de recursos esperam é que as vendas de toda a Vila também caiam, não por força da abstinência, mas do desemprego. O feirante, a padeira, o dono de boteco são obrigados a demitir seus funcionários. Ao assistir o declínio generalizado da renda, os aplicadores não esperam lucros do negócio que desejavam montar, digamos, uma loja de roupas. O caso é que a queda do gasto implica na queda da renda, do consumo e dos lucros. Mas, pelo menos, na matemática dos equilibristas, a taxa neutra não se moveu, pois o volume de poupança e de investimento equilibraram-se negativamente.

A taxa de juros corrente permanece impávida, respeitando sua relação mágica com a taxa neutra. Mas os preços dos produtos caem, pois para salvar alguma coisa, todos resolvem vender seus estoques a preços mais baixos. Sendo assim, a taxa de juros real, da qual “vem o crescimento”, diminui. Com os lucros em queda, os aplicadores se recusam a pegar emprestado a poupança que, aliás, sumiu da prateleira do banco, o supermercado de dinheiro que, por acaso, não vende bananas. Sem investimentos, a produtividade cai, o crescimento capota junto.

Vamos olhar agora para o gasto do governo, o temível expediente de pressão sobre a dívida pública: o governo aumenta o gasto, resolve construir uma ponte entre a Vila e a escola da vila vizinha. Neste esforço, contrata quem foi demitido na Vila para trabalhar na construção. Qual o resultado? Os trabalhadores recebem salários, compram roupas, pães, verduras e tomam cerveja ao final do expediente. Seu Zé, Dona Maria, Seu João e os aplicadores veem suas expectativas de lucro restauradas. Mais emprego, mais renda. Mas e a dívida do governo? Especula Pastore:

“Embora o mercado financeiro não interrompa o influxo de capitais, o real não se deprecie e a dívida não dê um salto, seu crescimento continua insustentável. Quer devido ao ‘efeito riqueza’ provocado pela alta da dívida pública, quer devido ao efeito multiplicador dos gastos públicos, o aumento da demanda agregada decorrente da política fiscal expansionista e eleva a taxa neutra de juros.”

As motivações que apontam a insustentabilidade da dívida são ainda mais pitorescas. Os possuidores dos títulos do governo, percebendo aumento do patrimônio (dos preços dos títulos que detém), vão à forra e consomem mais, dando vida ao “efeito-riqueza”. Com o aumento dos gastos do governo, a demanda agregada cresce. Para quem não é familiarizado com o termo, isto quer dizer, que cresce a economia, a renda da sociedade como um todo. Sim, o professor Pastore afirma que a geração de emprego e renda é ruim para a trajetória da dívida pública, pois perturba o equilíbrio entre o que as pessoas poupam e o que as empresas investem. Novamente, voltemos à compreensão da dinâmica monetária.

O que está suposto na taxa neutra é que os gastos do governo têm efeito ilusório no longo prazo. O aumento da demanda no curto prazo a penaliza no longo, porque os juros sobem. Vejamos: o maior volume de gastos implica no aumento da renda, portanto, da poupança da sociedade. Parte dessa poupança acrescida pelo aumento da renda é arrecadada pelo governo. Como implicação do tal “efeito multiplicador”, o volume de renda que é gerado é necessariamente maior do que aquilo que é gasto, valendo o mesmo princípio para o aumento da arrecadação.

Se o governo, em decorrência do crescimento, aumenta sua arrecadação acima do gasto que executou, opera na diminuição da dívida pública e da taxa de juros real, pois a expansão da oferta “à frente” do novo nível de demanda garante a trajetória descendente da inflação. A queda da dívida e dos juros apontam uma tendência de insustentabilidade? Se sim, talvez tenhamos que mudar as regras matemáticas que definem a inclinação de uma curva ou finalmente admitir que a neutralidade da moeda (e da taxa de juros) é o ser fantástico que sustenta as fábulas sobre o “governo malvado”.

Ainda assim, a pérola mais preciosa está na relação dívida/PIB. O numerador cresce se o governo gasta mais do que arrecada, ou se paga mais juros aos detentores dos títulos públicos. O denominador cresce motivado pelos gastos da sociedade, ordenadamente, em investimento e consumo. Mesmo que a dívida não caia, o aumento da demanda agregada (do PIB), implica na queda da relação dívida/PIB. Ou vamos ter que inventar outro método para a interpretação de frações. Como já se disse: Pastore praticou matemáGica

Na hipótese de que a dívida se eleve mais rapidamente que o crescimento do PIB, portanto, que a taxa de juros real seja maior que a taxa de crescimento da economia, a questão está na fixação da taxa de juros. O BC fixa a taxa de juros no intuito de perseguir a Meta de Inflação. Na teoria partilhada pelo Dr. Pastore, esse expediente corresponde a formação dos prêmios de risco exigidos pelos detentores dos títulos do governo. Se eles esperam que a inflação vá além da Meta, incorporam esse “gap” na taxa de juros futura. O Banco Central na tentativa de “reancorar” as expectativas à Meta, responde elevando a taxa de juros corrente. Essa taxa de juros maior força o desequilíbrio da relação Dívida/PIB. Cabe questionar: como são construídas essas expectativas?

Surge do armário a figura cadavérica do Produto Potencial, o nível que a renda da sociedade pode atingir sem repercussões sobre a inflação. Essa é uma medida não observável, mas que pela mágica da estatística pode ser estimada. Quanto mais o PIB observado se aproxima do potencial, maior a probabilidade de uma inflação além da Meta. De duas a uma: ou seguramos o PIB observado, ou empurramos seu potencial para cima. Como o segundo é uma estimativa recheada de pressupostos, pode ser movido para onde quisermos. A ideia é que a economia não pode crescer utilizando mais do que a capacidade instalada de oferta. Se o governo gasta, gera emprego, e as pessoas têm mais renda para consumir, corre-se o risco de ultrapassar a capacidade da economia de produzir, forçando o aumento da inflação, dizem os Pastores da vida.

Seria no mínimo incômodo observar que a expansão da demanda passa, primeiro, pelo setor de bens de investimento, portanto pelo aumento da capacidade instalada e pelo manejo da capacidade ociosa. O PIB, empalado por sua “potência”, adquire movimento a partir da formação da renda, que move as expectativas de lucro, obrigando o aumento da capacidade e da produção. Como a demanda se comporta nesses modelos como uma variável-resultante e não como formadora da renda, dizem que, de modo agregado, ela sempre responde à capacidade de oferta. Se a oferta fica parada, aprisionando o PIB ao seu potencial, inaugura-se a dinâmica estática, filha querida do Equilíbrio Geral. Talvez por isso, a gleba de analistas tenha lançado seu pessimismo para o ano de 2023 e tenha errado olimpicamente. Pelo visto, já temos concorrentes à medalha do “gênio com J” de 2024.

Nathan Caixeta é economista, mestrando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP.

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Redação

2 Comentários

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  1. Essa turma mal esconde o que realmente desejam. Não se trata de taxa de juros ideal, domesticação da inflação, e todo o arsenal de maluquices que pretendem ser “ciência econômica”. Aliás, maldita hora em que físicos e matemáticos, gente geralmente sem muita empatia e com contato superficial com o resto da humanidade, se meteram a desenvolver a matemágica que essa turma de economeiros vive esgrimindo. Mas voltando ao assunto, o que essa gentalha toda quer, e disfarçam isso em mil continhas erradas, é a mas desavergonhada apropriação da riqueza gerada pelas mesmas camadas sociais de sempre. Marx pode ter errado em muitas coisas, mas nisto ele acertou em cheio. Só que hoje em dia, fora dos círculos esquerdistas ortodoxos, pega muito mal falar a verdade: capitalista, e seu apologistas, só querem mesmo é se apropriar da Mais Valia.

    Já estudei economia. Larguei, porque não suportava ver os caras defendendo com unhas e dentes na cátedra teorias que são lindas no papel, mas têm falhas fundamentais de lógica e de matemática. Toda vez que eu questionava alguma coisa, lá vinham os “ceteris paribus” justificar qualquer coisa.

  2. Esta semana eu vi um anuncío de um vídeo sobre ateus que rezam e vão aos cultos. Assim como ateus que rezam, existem pregadores da religião que não acreditam em Deus ou Deuses, mas como vivem disso, continuam pregando. Muitos dos economistas classificados como ortodoxos, que eu apelidei de ortocoxos, não acreditam no que no que pregam, mas como são bem remunerados pelo deus mercado, continuam a divulgar o que interessa ao dito cujo.

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