Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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De como a Coreia do Norte inaugurou o mundo multipolar, por Ion de Andrade

De como a Coreia do Norte inaugurou o mundo multipolar

por Ion de Andrade

A Coreia do Norte parece mais um país saído de um universo ficcional inverídico: é uma espécie de monarquia que sobreviveu ao… comunismo. Parecem quadrinhos dos anos cinquenta (ruins). Para além disso, o pouco que nos chega não nos permite firmar opinião clara, mas a imaginamos como um… estalinismo monárquico… (um esdrúxulo conceito). Não sabemos se haverá guerra entre esse país e os EUA. Até aqui não houve e parece que há muito a considerar antes que os Estados Unidos desfiram um ataque preventivo.

Sun Tzu n’A Arte da Guerra diz que os maiores generais não são conhecidos, porque ninguém soube das guerras que eles ganharam sem lutar. A guerra até aqui não havida entre a Coréia do Norte e os Estados Unidos, à qual a mídia ocidental não vem dando qualquer relevância (sinal que é importante), parece estar sendo vencida de forma esmagadora pela Coreia do Norte. Essa “não guerra” está definindo parâmetros cruciais para os próximos conflitos e para o futuro e bem que poderia constar nos livros de história como o evento de inauguração do mundo multipolar. O meu acompanhamento pobre vem sendo feito pelo Google, com “North Korea” e selecionando a “última hora”. Sem querer prever o que virá, a ênfase das notícias vêm saindo da guerra propriamente dita e migrando para os aspectos morais do regime de Piong Yang, sinalizando a meu ver uma perda de temperatura. O episódio envolvendo um estagiário americano preso por lá e devolvido quase morto à família não permite, é verdade, alimentar muitas ilusões sobre o regime. Porém, no contexto das relações internacionais esse “não conflito”, ainda que se converta num conflito de verdade, parece configurar uma virada decisiva na história contemporânea.

Guerra Nuclear

Após ter lançado a mãe de todas as bombas no Afeganistão e uma dezena de mísseis na Síria o governo Trump pretendia encostar alguns porta aviões e submarinos nucleares na costa Norte Coreana e fazer o país se ajoelhar. Porém, a vida continua a correr normalmente por lá e o país continua, aliás, à sua vontade, a realizar todos os testes balísticos que deseje, tranquila e ostensivamente. A não guerra da Coréia provou que o risco de um ataque nuclear torna qualquer guerra impagável. Não interessa se os Estados Unidos têm mais bombas, maior capacidade bélica ou o que for. A armada americana que se dirigiu até lá, com mais de um porta aviões e pelo menos dois submarinos nucleares parece ter feito uma viagem no tempo, e não para a Coréia do Norte. Partiram como o florão naval do país mais poderoso do mundo e voltam como latas velhas imprestáveis, exceto para meter medo em países onde nem os cientistas militares e nem a indústria de defesa são importantes…

Tecnologia Convencional

A capacidade bélica da Coreia do Norte torna a guerra impagável até mesmo do ponto de vista convencional. O teste de um míssil anti-navio (terra-mar) da Coréia do Norte obrigou a invencível armada americana a afastar-se da costa coreana onde poderia ser… alvo fácil.

Rússia e China

Ora, a inviabilidade (ao menos até aqui) de uma guerra entre Estados Unidos e Coréia do Norte tornou aquela já esquecida aventura militar americana contra a China (que na doutrina Trump substituiria a aventura da Rússia, tão cara a Hillary Clinton) totalmente inviável. Não interessa mais saber quantas ogivas cada lado tem, como parecia ser o caso até o mês retrasado, quando os milhares de ogivas americanas pareciam substancialmente mais numerosas do que as duzentas e tantas da China… A Coréia do Norte mostrou que basta ter um punhado de mísseis nucleares para ser dissuasiva. Contra quem? Contra os Estados Unidos. Os caríssimos Porta Aviões também se encontraram com a obsolescência, pelo menos em se tratando de conflitos entre países que dignamente façam parte do concerto das nações o que, obviamente, não nos inclui.

Lições da segunda guerra mundial

Na segunda guerra mundial, que foi uma guerra total para a maior parte das nações europeias, não foram empregadas as bombas de gás que já existiam desde a primeira guerra mundial. Nem os nazistas nos seus últimos suspiros a utilizaram, nem nenhum país em suas heroicas e extremas guerras de resistência nacional. O fato de todos terem a arma evitou, na verdade, que fosse utilizada. A Coréia do Norte vem, ao menos até aqui, demonstrando que esse mesmo fenômeno está se repetindo. Detendo a arma dissuasiva por excelência, a bomba nuclear, conseguiu garantir a paz em suas fronteiras sem recuar em nada, mesmo tendo às suas portas a maior força militar já reunida pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial.

E o que acontece depois?

Essa demonstração de fraqueza dos Estados Unidos complicará enormemente a sua busca de hegemonia na Ásia, onde a China emerge como potência cada vez mais difícil de rivalizar. Se não há guarda-chuva nuclear contra a Coréia do Norte, o que poderia ser feito contra a China? Na Europa a OTAN teve que repensar a sua estratégia de enfrentamento da Rússia quando essa sinalizou que a sua expansão para o leste era inaceitável. A Rússia avisou que começaria a fazer ataques preventivos com armas nucleares táticas a quaisquer instalações militares que pudessem ser entendidas como ameaça. Obviamente que isto sinalizou à época, e foi acompanhado dos exercícios civis correspondentes, um claro preparo para a guerra total. Desde então a temperatura caiu. Impagável a guerra nuclear, vamos sendo devolvidos à diplomacia que é uma geografia política bem mais complexa do que a da força bruta. Como dizem os indianos estamos vivendo o fim da era Vasco da Gama na qual o Ocidente recua.

Uma importante pergunta nessa quadra, a ser respondida pelos americanos e europeus é: como será o capitalismo num contexto em que a imposição pela força está irremediavelmente fissurada no jogo principal que se joga entre os grandes? A Rússia também sinalizou que qualquer tentativa de retirá-la da Síria seria entendida como um ataque à Rússia e converteu, galhardamente, o país num seu protetorado, ao arrepio de Israel e da OTAN.

Desdobramentos atuais

Se os porta-aviões americanos retornarem ao país sem ter disparado um tiro teremos entrado numa nova era, porém e isso é a pior notícia para os Estados Unidos, se houver guerra também. Há sempre o risco de que uma guerra comece por acidente ou por loucura e isso não está descartado na Coréia do Norte. Esse risco não altera, em absoluto, o contexto de mudança de era em que o, até aqui, “não conflito” está imerso. Se ocorrer a guerra assistiremos à materialização da nova era sob a sua expressão mais sombria: milhões de mortos em toda parte, a Coréia do Norte varrida do mapa, assim como o Japão, a Coréia do Sul e talvez um punhado de cidades americanas.

Essa é a razão pela qual a Coréia do Norte realmente posicionou o sarrafo alto demais até mesmo para a América. O encontro desse limite pelos Estados Unidos inaugura, quer se queira, quer não, o mundo multipolar.

Não para nós, é claro. 

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

9 Comentários

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  1. Mesmo que a Coreia do Norte

    Mesmo que a Coreia do Norte não tivesse um arsenal atômico, dificilmente os EUA a atacariam. Pois atacar a Coreia do Norte é na prática atacar a China, o único país com o qual o regime norte-coreano tem alguma comunicação no mundo. 

    É um paradoxo da nossa época = o mundo só não caiu numa terceira guerra mundial até agora [amanhã só a deus pertence rs ] porque as principais potências contam com uma arma de destruição total. Então do que adianta entrar numa guerra em que o vencedor – se houver – terá como prêmio terras devastadas e inundadas de cadávares e escombros?

  2. Isso eu já tinha comentado.

    Isso eu já tinha comentado. Os yankees, na Coréia do Norte, calçaram o sapato que deu certo no seu pé. Tenho a impressão que a não guerra, não será digerida internamente. Alguém vai ser o culpado da desonra. Sobrará para o Trump.

  3. os falcões da guerra acharão um meio de driblar o impasse

    Bom Dia, Ion. Ótimo texto e muito coerente. Muito animador, por sinal, pois esta questão de que as Super Potencias possuem o mesmo armamento tão perigoso e impraticável, a arma nuclear, que isto leva a um impasse que impede que ocorra uma terceira guerra mundial. Até ocorrem guerrinhas menores, envolvendo de um lado países não detentores de armamento nuclear, mas estas não possuem risco a nível mundial.

    Mas, de repente, imaginar que os falcões da qguera, o pessoal da indústria bélica e os generais que precisam ter uma guerra pra tentar se equivaler a Napoleão ou Alexandre o Grande, é difícil imaginar que esta galera vai tger que aceitar qeu as suepr guerras, contra os grandes , invejados, incomodos e odiados inimigos, estas são impraticáveis e irrealizáveis, devido ao risco de aniquilação mútua assegurada.

    Quem não garante que tais super portencias nãod esenvolvem secretamente meios de invadir os sistemas computadorizados qeu controlam as ogivas nucleares dos inimigos para, assim, desarmá-los por duas horinhas que sejam, e esvaziar seus silos nucleares sobre eles? Ou talvez tomar o controle dos sistemas nucleares inimigos e jogar as ogivas sobre o próprio país? Talvez tal sistema esteja em testes avançados, talvez a´te já exista, ainda que sem testes, e seja guardado como arma secreta, caso seja um enorme interesse dar all in na mesa e declarar uma guerra?

    Sei que não me parece lógico que vai seguir este impasse de efeitos pacifistras por tempo indefinido e prolongado. Não parece algo típico de capitalistas, generais e outros tipos gananciosos humanos.

  4. de….

    Lembremos que não existem 2 Coréias. Apenas 1. De um lado invadida pelos interesses russos e posteriormente chineses. e do outro por interesses norte-americanos. Não existe liberdade em nenhum dos lados. Uma Nação invadida por um país estrangeiro. E quem tem seu destino imposto por tais. Aqui no Ocidente, em especial no Brasil, tentam mostrar o lado ocidental ou do Sul, como referência. Referência de que? Tão escrava quanto o lado do Norte. Mas revela em muito como a Politica é exercida por interesses e hipocrisia em benefícioi de alguém com um fundo justificável. Aprendamos. 

  5. A China não quer guerra

    Essa lenga-lenga da China bancar a Coréia do Norte no conflito já é um mito. No atual tabuleiro, Russia é quem está dando as cartas e impulsionando  Coreia a desenvolver os motores de sua ogivas.  Acuada pela irresponsável cooptação da Europa oriental pelos EUA-OTAN, Russia vai responder a cada uma das provocações para salvaguardar suas fronteiras. Ucrânia, Letônia, Lituania (principalmente esta última  que tem o enclave Russo de Kaliningrado) que se cuidem. EUA farão provocações a partir da Lituânia com  objetivo de acuar  a Russia. Diplomaticamente e taticamente  é de uma arrogância total. Uma pergunta aos especialistas: até quando dura o governo fascista da Ucrânia que foi financiado pelo ocidente?  Russia não vai precisar mexer suas forças na Ucrânia. Lá como cá, o governo vai cair de maduro estrangulado economicamente. Merkel não vai cair nessa de salvar a Ucrania.

  6. Não há comprovação alguma de

    Não há comprovação alguma de que a Coreia do Norte tenha capacidade de colocar um bomba nuclear em um missel e que este tenha a blindagem e o disparador, tecnologias chamadas de segunda fase e que levam vinte anos para desenvolver,

    isso na suposição de que tenha a bombas, há apenas sinais disso por medições de tremores em possiveis areas de teste.

    A Coreia do Norte tem eletricidade em apenas 30% das casas, sua produção de energia é a carvão e hidro, não em

    nenhuma usina nuclear para produzir energia, grande parte dessa narrativa de potencia pode ser puro blefe.

    Os EUA mandam porta aviões e sunmarinos para zonas de atrito apenas pelo conceito da “fleet in being”, usado desde a Primeira Guerra Mundial, quando a existencia de uma frota serve à função de, sem entrar na luta, reter ou congelar

    situações, como fez a grande armada do Imperio Alemão em 1914, ficando nos portos orbigava os britanicos a manter um terço de sua Marinha na saida do Mar Baltico apenas porque a frota alemã tinha que ser bloqueada.

    A multiplicação ao infinito de uma suposta capacidade militar da Coreia do Norte é mais uma lenda da esquerda saudosista e serve bons propositos comerciais à industria bélica americana qu precisa de uma permanente ameaça de guerra como

    indução para novos pedidos. Para a China a Coreia do Norte é ao mesmo tempo um estorvo, porque não produzem nem para comer e a China precisa sustenta-los e ao mesmo tempo é uma ameaça manipulada pela China como peça no jogo do poder geopolitico vis a vis os EUA, até certo ponto, quando o ditador Kim se excede a China sabe como coloca-lo no lugar.

    Para Trump a Coreia do Norte é um inimigo de proveta, ideal para a demagogia populista  que distrai o povo.

    A grande piada e levar a serio esse Pais de chanchada como se fosse uma potencia mundial

     

    1. Antes da WW1

           Doutrina Mahan ( Alfred Thayer – Almirante USN ), colocada pela 1a vez em prática no governo Teddy Roosevelt, em 1907 com a ‘ The Great White Fleet “.

            Para quem gosta do assunto sugiro um livro recente: Chinese Naval Strategy in the 21st Century : The turn to Mahan

    2. É a não-guerra, estúpido!

      Entre a ponderada e realista avaliação do Ion de Andrade e a reação passional pró-americana do André Araújo existe um abismo de escala.

      É simples: a escala da geopolítica não é a mesma escala da estratégia militar, mesmo que essa última albergue as invocações logísticas como pretenso “determinante em última instância”.

      A geopolítica muda a lógica da guerra, mas talvez não sua “arte”.

      O argumento logístico fenece exatamente diante do fenômeno que o Ion de Andrade bem chama de “impagável da guerra nuclear” (e a coleção de bibelôs nucleares vai muito além da disponibilidade de vetores de lançamento; eles podem responder pelo nome, por exemplo, de bomba de pulso eletromagnético).

      E finalmente, a confirmação dessa hipótese não está nos movimentos militares, mas nos fatos consumados: OS ESTADOS UNIDOS NÃO ATACARAM E NÃO ATACARÃO A CORÉIA DO NORTE.

  7. Faltam estudos sobre a Coreia Popular
    É impressionante nossa ignorância acerca do Regime Norte Coreano, que garante saúde e educação para toda a sua população. Preferimos posar de comunistas liberais à prestar solidariedade aquela nação que erradicou o analfabetismo é garante àduras penas soberania em quase todos os setores econômicos, inclusive de internet. Somos espionados e controlados 24h por dia pelos senhores q adoramos dizer q combatemos, mas na verdade apoiamos a “liberdade ocidental”, somos coniventes com nossa própria escravidão.

    Lá existe uma liderança militar disposta ao sacrifício, vive 24h por dia na mira da maior potência mundial da história, na mira de serviços de inteligência do maior império que já existiu. Essa liderança vive para garantir que os serviços sejam públicos e os valores de comunidade e sociedade sejam passados de geração em geração, é o que nossa “esquerda” faz? Corrobora com o discurso liberal, caricaturam um país inteiro. Sugiro entrevistas com o embaixador da Coréia Popular no Brasil q é muito acessível, sugiro a leitura de cientistas políticos sérios sobre o tema, como Vicentini.
    Até lá, longa vida à Coréia Popular.

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