O Plano Trienal meio século depois

Pensei mais de uma vez se deveria retornar a escrever sobre esse período da história brasileira e, após ler alguns artigos sobre o resgate da memória do presidente João Goulart, decidi arriscar algumas linhas. Antes disso, comentei rapidamente com a amiga Rosa Freire d’Aguiar Furtado que iria escrever algo sobre o Plano Trienal após meio século.  Rosa organizou, em 2011, a reedição do Plano Trienal no volume 4 dos Arquivos Celso Furtado, que pode ser consultado no Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

O ilustre paraibano Celso Monteiro Furtado foi uma grande inspiração intelectual na vida de muitos brasileiros. Posso dizer seguramente que o meu interesse por questões econômicas foi iniciado nas páginas dos livros do mestre. Estive com ele poucas vezes, sendo que em uma reunião no Iepes (Instituto de Estudos Políticos e Sociais), no início de dezembro de 2003, pude conversar um pouco com ele sobre como eu estava usando seus textos para compor parte da minha tese de doutoramento, concluída posteriormente em outubro de 2005.

Por obra generosa da roda da fortuna, fui então “encarregado” de representar meu saudoso amigo Antonio Carlos Peixoto, professor e grande cientista político, no debate sobre um artigo do Hélio Jaguaribe, decano do Iepes. Entrei mudo e saí quase calado porque a mesa redonda era composta por grandes intelectuais – Antonio Barros de Castro, Celso Furtado, Francisco Weffort, Hélio Jaguaribe e João Paulo de Almeida Magalhães. Creio ter saído do debate mais humilde quanto a certezas definitivas sobre o Brasil.

Li, naqueles tempos, no livro A fantasia desfeita (Paz e Terra, 1989), de Celso Furtado, algo curioso sobre o governo Goulart. Em setembro de 1962, o presidente chamou o célebre economista e lhe deu a missão de assumir o Ministério Extraordinário do Planejamento. Jango desejava preparar um plano de governo para a retomada do presidencialismo. Destacarei do livro em questão a sua sexta parte, que versa sobre o Plano Trienal.

San Tiago Dantas teria chamado a atenção de Goulart para o fato de que somente Furtado poderia executar um trabalho desses em espaço tão curto de tempo, três meses. Segundo afirmou Furtado, “sabia que aceitava uma missão que dificilmente poderia cumprir dentro dos padrões profissionais que me impunha a mim mesmo”. O desafio político dos desequilíbrios econômicos brasileiros era grande naquela época.

Chamou minha atenção a seguinte passagem do livro: “Em economia, como em tudo mais, planejar significa apenas disciplinar o uso dos meios para conseguir com um mínimo de esforço, fins previamente estabelecidos. Para que exista planejamento, é necessário, portanto, que a política econômica estabeleça com nitidez e coerência os fins a alcançar. Em segundo lugar, é necessário que exista compatibilidade entre esses fins e os meios disponíveis”. Mais adiante, Furtado argumenta ainda que “o plano deveria abrir caminho a reformas estruturais e, ao mesmo tempo, comportar ajustamentos de curto prazo”.

Desde então, o crescimento sustentado brasileiro exigia modificações estruturais antecipadas (ex ante) para evitar as pressões inflacionárias. A redução do custo social desse crescimento passava por questões dessa natureza. Conforme recordou Furtado: “A existência de um regime parlamentar, com reuniões regulares do gabinete e consciência de responsabilidade coletiva dos ministros, facilitava o meu trabalho. Mas sabia de experiência que não podia contar com a máquina administrativa”.  Entre os colaboradores do conselho de ministros, encontravam-se Otávio Dias Carneiro, Darcy Ribeiro, Eliezer Batista da Silva e alguns auxiliares recrutados de equipes da administração indireta foram importantes, como José Pelúcio Ferreira, Juvenal Osório Gomes e Casimiro Ribeiro.

Entre os vários pontos levantados no livro e que constituem as inovações do Plano Trienal, destaco: 1) “Criar condições para que os frutos do desenvolvimento se distribuam de maneira cada vez mais ampla pela população, cujos salários reais deverão crescer com uma taxa pelo menos idêntica à do aumento da produtividade do conjunto da economia, demais dos ajustamentos decorrentes da elevação do custo de vida”; e 2) “Intensificar substancialmente a ação do governo no campo educacional, da pesquisa científica e tecnológica, e da saúde pública, a fim de assegurar uma rápida melhoria do homem como fator de desenvolvimento e de permitir o acesso de uma parte crescente da população aos frutos do progresso cultural”. O Plano Trienal foi uma das primeiras experiências do que se posteriormente convencionou chamar de terapia gradualista de tratamento da inflação. Ele foi aprovado pelo FMI.

A primeira grande dificuldade mapeada por Furtado e equipe dizia respeito ao desequilíbrio do setor público, algo que exigia reforma fiscal profunda. Tal reforma, por sua vez, dependeria da composição político-ideológica do Congresso Nacional. Sabemos todos como o desenrolar dos acontecimentos políticos acabou em abril de 1964. Segundo Furtado: “Reconheci que as esquerdas haviam cometido graves erros. Mas estava convencido, disse, de que nada daquilo aproximava os comunistas do poder no Brasil”. Os parâmetros de ajustes do Plano Trienal foram ignorados, abrindo-se espaço crescente para os conflitos distributivos. Podemos tranquilamente afirmar hoje que aprendemos coletivamente algo com o passado? 

Os caminhos das reformas institucionais são múltiplos e sua lógica depende da inserção do povo no debate político. Nesse sentido, uma parte do instigante discurso de San Tiago Dantas, em homenagem recebida em 1963, merece destaque: “Os extremismos de esquerda e direita, na medida em que conseguirem comandar, mesmo temporariamente, o nosso processo político, ‘abrirão’ inevitavelmente a revolução brasileira, tornando-a mera subsidiária de um processo internacional, cujos interesses superiores nos serão impostos de fora, daí por diante. Manter ‘fechado’ o processo brasileiro não significa mantê-lo isolado do exterior. Significa mantê-lo, ao contrário, em contato, em correlação, em intercâmbio com o que se passa no universo, mas condicionado apenas a fatores internos e em busca de soluções de viabilidade máxima do ponto de vista nacional”. 

Com as commodities respondendo por quase 70% das nossas exportações de bens, alto déficit acumulado na conta corrente do balanço de pagamentos, juros altos e a persistentemente elevada concentração da renda, dificilmente podemos afirmar no presente que o estado de subdesenvolvimento foi superado. Melhorias certamente ocorreram entre nós recentemente, porém os desafios do desenvolvimento não estão encerrados.

Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Rodrigo Medeiros

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