Habitat, por Eliseu Raphael Venturi

Os confinamentos são velhos espaços de disciplinas, e nada de novo há nisso, senão a educação da mente, da subjetividade, a escola dos pensamentos, e então as pessoas se veem entregues ao confinamento

Picasso. L`homme au casque d`or (Rembrandt), 1969 .

Habitat

por Eliseu Raphael Venturi

Pela Coroa inaugura-se uma escrita do presente drástico, tomado de assalto pela progressão geométrica da contaminação: se a dor implica o pretérito, se o ressentimento é um confinamento do pretérito, uma nova escrita do presente nasce do milagre do fim do mundo.

O mundo morreu, finalmente: matamos o mundo, de novo, e morremos dentro dele porque somos areia seca. O desejado fim, chegou. A bomba biopolítica mais viva do que nunca, o presente mais intenso é o presente tangível, o tato do tempo na rugosidade do rosto: eu me deparo com minha vida que é o momento da enunciação e apenas existe a redação.

O modo indicativo é a lei do ser não-metafísico, apolítico, a cena nem da cinza, nem do zumbi: o corpo aberto como carne escancarada, penetrável pelo invisível, reprodutível, viróide da carne animal crua, ensopada de ferro, a multidão é inviável e renasce fora do bloco. Eu só posso falar em linha, e quando eu reviso, eu reescrevo.

A vida nos salva, nos resgata, nos foge, nos nivela e nos unifica: a lei da mortalidade nos equivale e os vírus possuem a crença como demônio que se crema. Eu já não existo fora do nós, eu sou um nódulo.

Os confinamentos são velhos espaços de disciplinas, e nada de novo há nisso, senão a educação da mente, da subjetividade, a escola dos pensamentos, e então as pessoas se veem entregues ao confinamento, mas a um confinamento diferente, o confinamento da verdade e não mais o confinamento da fuga do exterior, essa verdade títere e móvel, que poderia ser o confinamento da solidão, em que se confrontam consigo, ou o confinamento daquilo que mais idealizam, e então não há mais intermédios do consumo, ou do trabalho, ou da subjugação, ou da subordinação, da loja e do aglomerado de distrações, apenas as verdades da vida, as verdades biológicas, as verdades da derivação genética, entregues em toda sua carne e nudez, então as pessoas amadurecem, é um fato, uma suposição: vida, carne e trabalho se entrecruzam e explodem a casca da semente da pessoa em vírus, teletrabalho, telemensagem, precariado, vulnerabilidade, pandemia, álcool em gel e máscara, o virtual que se tornou o real inverteu o real em um virtual que se tornou sonho, entediante.

Negação. Estado de negação. Agente da negação. Não: será o confronto derradeiro com as crenças, o nó da família tensionado em suas ficções, uma explosão da teledramaturgia, um prato para os suicídios, os homicídios, e as novas formas de novas ficções. Fricções. Facções.

Caem mais prédios por todos os lados, daqueles sólidos e antigos que devolvem as pedras. Não há caçamba que contenha. E se eu não significar nada no confinamento? E se eu não tiver capacidade de leitura? E se eu não tiver capacidade de detimento? E se eu me vir improdutivo? E se afinal eu não souber parar e ficar quieto? E se eu for incapaz de meditação? E se eu não existir fora da leviandade e do trânsito? E se o dragão do controle fulminar a nuvem do confinamento? E se os campos verdes da coação florirem a ineficiência da liberdade presumida?

O momento de lavar as próprias roupas chegou, de descascar as próprias frutas, de se sujar no recanto privado. Alguns chamam de oportunidade, outros chamam de aprendizado, outros recorrem a textos estapafúrdios de um romantismo gasto e idealista.

Eu não me importo com nada além da constatação de que o milagre do novo mundo é dádiva apenas para aqueles que entenderam a verdade da metáfora da doença, que mergulharam nas águas profundas das penas intensas do confinamento, que sabem o sentido da margem, da fossa, do podre e do límpido.

Quem aguenta o espelho? Quem aguenta dentro do espelho? Quem vai sobreviver a si quando o si se tornou indiscernível do qualquer um sem ser massa amorfa? Eu digo que não passa de mais um exercício de adaptação: ao novo habitat que precisaremos nos encarar ser, por dentre as barbudas do elmo; a cura de Gaia.

Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba/PR.

Redação

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