Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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O problema da agricultura é o Estado? Por Rui Daher

Por Rui Daher

Agricultura e Estado

Da CartaCapital

É provável que o Brasil tenha mudado completamente nos últimos dez anos e tanto eu como Rita Lee andamos meio desligados.

Não notamos que o País deixou para trás uma das piores distribuições de renda do planeta, populações miseráveis à beira de esgotos a céu aberto, hospitais sem vagas para atendimento nem mesmo em corredores, jovens (e graças ao Dr. Cunha, em breve crianças) hospedados em centros de treinamento para o crime, que o governo priorizou o setor produtivo e nossos ricos entenderam que ajuste fiscal inclui sacrifício deles e não só de trabalhadores.

Se tudo pode ter mudado, como posso analisar a agropecuária brasileira a partir do Censo do IBGE, publicado em 2010, com dados de 2006.

Talvez, nem fosse período tão longo para ilações, caso a percepção popular não fosse levada pelas folhas e telas convencionais a confundir onde somos maracujá doce ou estrume fedorento.

Na ousadia e independente de estatísticas e conceitos, insisto e reforço um de meus mitos: a agricultura familiar, assim denominada por imposição terminológica e legal, representa a maior fatia da produção primária de alimentos do País.

Não preciso do IBGE para afirmar isso. Apenas ando meu andar, vejo meu olhar e ouço todos os causos. Quem assim não faz, evita reconhecimento imediato e pede números e desenhos.

Da mesma forma como ocorreu com o pequeno comércio em regiões urbanas de grandes metrópoles, a formação antropológica, social e econômica da agricultura, em suas mais importantes etapas, depois do período colonial, seguiu a orientação das colônias imigrantes.

A colonização portuguesa primeiro se concentrou nas faixas litorâneas do Sudeste até o Nordeste e, com intensidades regionais inversas, se amalgamou a negros e índios, respectivamente.

A partir do fim da escravidão, o fluxo migratório trouxe para o Sul populações espanholas, germânicas, polacas e italianas. Em São Paulo, aglomerados mercantis puseram árabes e judeus nas imediações do Mercadão e do Bom Retiro, italianos no Brás, japoneses na Liberdade.

O movimento retrata o que aconteceu na agricultura, em progresso a partir dos Sul e Sudeste. Esta agricultura, eminentemente familiar, apoiada em clima favorável e protecionismo federativo, foi o embrião da industrialização do País. Aconteceu no “Sul Maravilha”, por mais rico. Faltou ao Nordeste, por mais pobre.

Tal perfil só começaria a mudar, a partir da década de 1970, por uma exigência do mercado internacional. Enxergou-se a necessidade de expansão da fronteira agrícola para os Cerrados, em busca de grãos.

A partir de meados do século 20, por incentivo do Estado, começamos a deixar os ciclos monocultores predominantes desde o Descobrimento, e a agricultura, em 40 anos, chegou ao atual nível de diferenciação orientado pelo mercado.

Curto e grosso: o apoio intenso à agricultura familiar e aos assentamentos agropecuários reproduz o mesmo resgate das dívidas sociais da nação com mulheres, negros, índios e quilombolas.

Simples retribuição de um Estado que, durante séculos, ignorou um modelo agrário mais distributivo, produtivo e socialmente inclusivo.

Se o modelo concentrador não estrebuchou por completo foi devido aos rearranjos autonômicos, desde sucessão geracional até incorporação tecnológica. Foi o que nos impediu ser uma África mais bonitinha.

Neste ponto da coluna permito-me uma intervenção gabola. Esteve recentemente no Brasil, dando entrevistas (Valor, 26/05) e palestras, a economista italiana Mariana Mazzucato, professora na Universidade de Sussex, e autora do livro The Entrepreneurial State: Debunking Public vs Private Myths (Anthem Press, 2013). Seu estudo, inclusive, foi citado por Luiz Gonzaga Belluzzo, em artigo (Valor, 02/06).

Encomendei a 1ª edição do livro, lançado nos EUA e Reino Unido, e o citei em vários de meus textos. Como Belluzzo, em contraposição à conotação equivocada que, no Brasil, se dá à ação do Estado.

Se o título parece complicado, sua tese não o é. Mostra o quanto o Estado tem sido o principal patrocinador das inovações tecnológicas creditadas à iniciativa privada.

Nele, há um capítulo fundamental para quem estuda a agropecuária e o agronegócio. Em tradução livre: “Empurrar e Cutucar a Revolução Industrial Verde” (Cap. 6). Simples: sem a intervenção do Estado, nós, bobinhos, devemos parar de falar em sustentabilidade.

Caríssimos, hoje em dia, no Brasil, discute-se Estado como se ele fosse governo. Tremenda confusão. Desde o filósofo e matemático inglês Thomas Hobbes (1588-1679), na obra Leviatã (1651), até Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920), apesar de divergências e convergências, a noção de Estado é sempre de poder total. Na luta política, este é tomado pelos governos e orientado para os interesses das classes sociais. 

Em seus mais amplos papéis, seja como promotor de bem-estar, projetos de infraestrutura, inovações tecnológicas, ao contrário da iniciativa privada, desmistificada por Mariana Mazzucato, os governos precisam pertencer a partidos políticos com programas explícitos.

É aí, caríssimos, que os buracos saem do lugar, e perdemos a noção de onde inserir nossos cartões.

Deslocam-se para cima, para baixo, para os lados. Assumem formas fantasmagóricas, autoritarismo, meritocracia para fazer fortes os que sonegam e roubam, republiquetas enormes sem ter chegado à civilização, castração de cidadanias.

O que Mariana Mazzucato não disse: a merda não somos nós ou o Estado, leitores e leitoras, como querem nos fazer crer, mas quem pomos lá para governá-lo.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

7 Comentários

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  1. Tempos atrá quando estive

    Tempos atrá quando estive numa chácara de pequenos agricultores pude ver a satisfação deles apesar do trablaho intenso para manter a produção de verduras sem agrotóxico, viveres, ovos, queijo e frutas.,,,eles me disseram que na Era FHC aquilo seria possivel pq, pra começo de conversa, eles nao tinham condiçoes de arcar com os custos da eletrificao rural e que o preço de um poste era impagåvel mas que com o Programa Luz Para Todos chegou de graça.,,…e eles nào perdiam os produtos que levavam para a cidade de Silvânia-go, um grande supermercado do DF COMPRAVA TUDO E, QUANDO SOBRAVA ALGUMA COISA, VENDIAM PARA PROGRAMAS DO GOVERNO COMO O DA ALIMENTAÇAO ESCOLAR, ASILOS, CRECHES, hospitais.,,..ai da pra enter o motivo do ódio a Lula e ao  PT.

  2. “Não notamos que o País

    “Não notamos que o País deixou para trás uma das piores distribuições de renda do planeta, populações miseráveis à beira de esgotos a céu aberto, hospitais sem vagas para atendimento nem mesmo em corredores, jovens (e graças ao Dr. Cunha, em breve crianças) hospedados em centros de treinamento para o crime, que o governo priorizou o setor produtivo e nossos ricos entenderam que ajuste fiscal inclui sacrifício deles e não só de trabalhadores.”

    Certo, deixou prá trás… parei por aqui…

      1. Prezado Celso,

        nunca me lembro do perigo que é colocar trechos irônicos no texto sem colocar uma onservação: é ironia. Embora, certos leitores, pararem e não continuarem a ler o texto é até melhor. Não entenderiam o demais.

  3. No Estado democrático, o governo reflete o povo

    Brasil português começou pela Nordeste e foi descendo, os baianos cansados da viagem pararam em Minas, os demais, na sua maioria, foram para o Rio de Janeiro.

    ACM insistia que pais deveria juntar Minas e Bahia, como uma região dada as características em comum.

    Colonização do Sul do Brasil foi mais agressiva como resultado das migrações da Europa fugindo das guerras mundiais e menos em decorrência do fim da escravatura.

    “… industrialização do País. Aconteceu no “Sul Maravilha”, por mais rico. Faltou ao Nordeste, por mais pobre ” .   Vejo industrialização no Brasil a partir dos anos 50 acontecendo inicialmente no Sudeste e porque o poder estava mais forte na mãos de paulistas e mineiros.  Governantes de então, concentram recursos do Estado e politicas econômicas para favorecer os estados do Sul / Sudeste, razão do desequilíbrio regional nos dias de hoje.  Além disso, aos políticos nordestinos, tal como os Sarneys   era conveniente manter os Estados atrasados, com as feudais grandes extensões de terras improdutivas nas mão das mesmas famílias e a população pobre.

    No Estado democrático, o governo reflete a condescendência do povo.  Talvez aconteça uma revolução à francesa para as mudanças em favor da igualdade de condições e fim dos privilégios. 

    1. Muito bem observado:

      “Governantes de então, concentram recursos do Estado e politicas econômicas para favorecer os estados do Sul / Sudeste, razão do desequilíbrio regional nos dias de hoje.  Além disso, aos políticos nordestinos, tal como os Sarneys   era conveniente manter os Estados atrasados, com as feudais grandes extensões de terras improdutivas nas mão das mesmas famílias e a população pobre”.

      Grato pela leitura e interpretação.

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