Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Milei na dianteira presidencial: agenda pública sofre revés ultraconservador e antipopular

Com discurso violento e discriminatório, propostas do candidato significam uma volta ao neoliberalismo dos anos 90

Javier Milei na dianteira presidencial: agenda pública sofre revés ultraconservador e antipopular

por Maíra Vasconcelos – Especial para Jornal GGN

A candidata a vice-presidente, e hoje deputada nacional Victoria Villarruel, companheira de fórmula de Javier Milei, liderou o ato “Homenagem às vítimas do terrorismo”, na câmara legislativa da Cidade de Buenos Aires, no último 4 de setembro. O evento reivindicou a memória daqueles que morreram vítimas de ações da guerrilha armada de esquerda, durante a ditadura cívico-militar argentina (1976-1983). A candidata a vice pela coligação “La libertad Avanza” (LLA), não tem parentes, amigos e nem conhecidos que tenham sido assassinados em ações dos movimentos guerrilheiros, conforme dito em uma matéria no “El DiarioAr”. Mas Villarruel tem um tio militar, irmão de seu pai, este último falecido em 2021, que tinha um escritório próprio dentro do “El Vesubio”, centro clandestino de detenção, tortura e extermínio, que funcionava em “La Matanza”, Buenos Aires. Em 1977, o tio da candidata a vice-presidente, o capitão Ernesto Guillermo Villarruel, e ainda chefe da Divisão II de Inteligência do Regimento de Infantaria 3 de “La tablada”, ordenou uma batida na casa de Mario Rubén Arrosagaray, conhecido como Tato, e da esposa Guillermina Silvia Vázquez, “la negra”, no município de Quilmes, em Buenos Aires. Tato conseguiu fugir, Guillermina foi detida quando descia do ônibus 98, e até o dia de hoje permanece desaparecida.

Instalar no debate público uma releitura sobre a ditadura militar argentina, esta que reivindica a teoria dos “dois demônios”, quer dizer, a gravidade dos fatos se iguala, entre o terrorismo perpetrado pelo Estado, uma ditadura ao estilo nazi como foi o caso da Argentina, e as ações de violência cometidas pelos movimentos guerrilheiros. Desde a redemocratização, o país não via instalar-se com tanta presença na agenda pública, ações e debates contra os direitos humanos, memória e justiça pelos mortos e desaparecidos na época da ditadura; e, muito menos, que isso seja um movimento orquestrado por um partido que lidera uma eleição presidencial.

Junto à ascensão de Javier Milei, a Argentina vive um giro completo em relação às discussões políticas em voga, hoje, no país. Desde a privatização do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas), maior referência no desenvolvimento das ciências no país, até o fechamento do Banco Central e a dolarização da economia, a defesa de uma privatização ilimitada, o acesso a armas em larga escala e o apoio à violência policial, também a revogação do direito ao aborto, e a eliminação dos ministérios da educação, saúde, cultura, entre outros. E, assim, poderia ser resumido o que é a antessala da política argentina, às vésperas das eleições presidenciais de 22 de outubro.

Talvez pelo ineditismo de uma onda político-partidária qualificada, segundo a leitura de cada qual, como neofascista ou um menemismo reciclado, estudiosos e jornalistas argentinos tentam entender a ascensão dos libertários, esse movimento ultraconservador no quesito social e ultraliberal na área econômica. Meios de comunicação e jornalistas comprometidos e sérios, mesmo que sejam minoria, é bom lembrar que eles existem, têm se empenhado em entender o fenômeno Javier Milei, desde um ponto de vista histórico, social e político, após ter sido o candidato mais votado, com 30% dos votos nas eleições primárias de agosto. Também há uma tentativa em entender o lugar da coligação, “La Libertad Avanza” (LLA), dentro da linha de composição das alianças formadas entre movimentos de partidos tradicionais que polarizaram a política argentina, nos últimos 20 anos, o kirchnerismo e o macrismo, ambos surgidos após a chamada “crise de 2001”; quando em dezembro desse mesmo ano, após uma onda de protestos, 39 pessoas foram mortas, após repressão policial. Nesse então, a atual candidata presidencial, Patricia Bullrich, era ministra de Segurança do governo do ex-presidente Fernando De La Rua. Com 17% nas eleições primárias, representante da ala linha dura da aliança “Juntos por el cambio”, Bullrich, hoje, é tida como moderada. O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), principal referente da coligação, não escondeu sua alegria pela vitória de Javier Milei, de quem é amigo pessoal. Milei tem dito que caso seja eleito, Macri terá um “papel destacado”, e será convidado a ser embaixador em seu governo, “super embaixador”, nas palavras do libertário. 

Então, o que também está em jogo, caso Milei passe a ocupar a Casa Rosada, a partir de 2024, é uma possível e já discutida reacomodação da estrutura interna partidária na Argentina, uma mudança no peronismo e também no macrismo. Além do mais, quadros políticos de ambos movimentos poderiam se acomodar para ter lugar dentro de um futuro governo de Javier Milei; salvo a ala kirchnerista do peronismo. Essa movimentação interna é também considerada porque o próprio Milei, um outsider na política local, não tem organização e estrutura partidária suficientes, ou ao menos não como a de seus adversários, e por isso também é questionado por qual seria então seu poder de governabilidade. Por isso, também, o candidato libertário já estaria em contato com alguns movimentos sindicais, já que uma de suas propostas é a reforma trabalhista.

Na imprensa local, comenta-se que uma parte do peronismo vê Javier Milei como um novo Carlos Menem (1989-1999), ex-presidente responsável pela aplicação das políticas neoliberais da década de 90, na Argentina, etapa conhecida como “os anos da convertibilidade”, quando o peso argentino foi convertido ao dólar, “a época do 1 a 1”, um peso valia um dólar. No caso de um governo Libertário, essa seria a oportunidade para que uma ala do peronismo, “em sua permanente capacidade de mutação” e adaptação, volte a se inserir em uma nova etapa pró-mercado, algo que teria acontecido durante o menemismo, comentou o jornalista Carlos Pagni no podcast, “Odisea Argentina”.

Milei, que claramente arruma o cabelo para estar descabelado, é tido ora como anarcocapitalista, como o próprio candidato se autointitula, ora como neofascista, ora como desquiciado. O candidato se autodenomina pertencente a uma época democrática, a década de 90 do século XX, o que se traduz em uma reivindicação pública do ex-presidente Carlos Menem, como destacado em artigo no Le Monde Diplomatique. Algo que até então descansava num passado de neoliberalismo que nenhum outro partido ou político havia se vinculado, nem mesmo o macrismo, que assumiu com a promessa de um ajuste econômico, mesmo que nunca realizado, ao menos na medida em que pedia seu eleitorado; mas foi o governo que terminou contraindo o maior empréstimo da história do país junto ao FMI (Fundo Monetário Internacional).

Milei: retrato de uma época

No editorial de agosto, do jornal Le Monde Diplomatique – edición Cone Sur, José Natanson afirma que as acusações de “fascistas” a Javier Milei são “politicamente ineficazes”. Segundo o jornalista, seria necessário abandonar a ideia de que Milei irá implementar uma ditadura totalitária ou transformar a democracia argentina em um regime totalitário. “Não há estratégia menos ineficaz que aquela que adverte sobre um perigo que ninguém acredita realmente”.

“Uma candidatura neofascista”. Assim escreve o historiador Valerio Arcary, em artigo na Revista Jacobin, Javier Milei es una amenaza neofascista. Mas não somente. Acrescenta o autor de “O martelo da história”, “um governo de choque antipopular contra os direitos sociais e que afronta contra a liberdade dos direitos democráticos conquistados após a última ditadura na Argentina (1976-1983)”. Arcary aponta também a conhecida subestimação do crescimento da extrema-direita, tal como aconteceu no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. “Infelizmente, uma subestimação ingênua da extrema direita se instalou mais uma vez”, afirma Valerio, e logo interroga, “certamente há fatores nacionais (da Argentina) que explicam por que o “pêndulo” na correlação de forças políticas oscilou em direção ao neofascismo e não à esquerda”.

O jornalista Sebastián Lacunza acredita que o crescimento de Javier Milei vai além de sua própria figura e pode estar associado também ao ascenso de uma radicalização generalizada, típica desta época. Por isso, o jornalista lembra dois episódios recentes na Argentina. Os protestos pelo direito de não se vacinar contra o coronavírus, ao mesmo tempo em que chamavam a campanha pró-vacina do governo de Alberto Fernández de “infectadura”, palavra que faz alusão a uma “ditadura da infecção”. Como também a tentativa de assassinato sofrida pela vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, em agosto do ano passado, em frente a sua casa, no bairro portenho de Recoleta, quando Fernando Sabag Montiel disparou duas vezes a centímetros do rosto da ex-presidente. Em março deste ano, Sabag rompeu o silêncio, pela primeira vez, desde que foi preso. Ele disse que não se arrepende e que quis, sim, matar Cristina Kirchner, “pela situação do país”; “apertei o gatilho e não saiu”.

“A violência implícita e explícita do candidato libertário (Javier Milei) não se limita à sua figura; uma época o acompanha e o ultrapassa. Ela inclui as telas de insulto de todos os dias (televisão, telefone celular), os lutadores que saíram às ruas para lutar pela liberdade de se mobilizar e infectar à vontade quando o coronavírus surgiu, e o neonazista que, há um ano, foi convocado para atirar a centímetros do rosto de Cristina. Milei não é responsável por tudo isso, mas sua ascensão é inseparável da radicalização que se enraizou na mídia e no discurso político do horário nobre”, escreveu Sebastián Lacunza, em artigo no “El DiarioAr”, Estrategias de política líquida para hacer frente a la rebeldía reaccionaria.

Maíra Vasconcelos – jornalista e escritora, mora em Buenos Aires, publica artigos sobre política argentina no Jornal GGN e cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina.

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Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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