As elites e o pós-golpe nos Governos Provisórios de 1889 e 2016, por Tiago de Castilho

Por Tiago de Castilho Soares

As elites e o pós-golpe nos Governos Provisórios de 1889 e 2016

Quando se fala em história política do Brasil, normalmente se quer tratar de sucessão de governos ou de biografias de personagens políticos. Nada mais pernicioso do que querer restringir a história política às coletâneas de diários oficiais, editados pelos próprios governantes, ou aos retratos ou perfis parlamentares, pintados para satisfazer os egos das elites. A história política é a história do poder, de sua organização e sua profusão; é história de bastidores e escaramuças, de confrontos e alianças. Por isso, elevar o impeachment de Dilma Rousseff à categoria de golpe de Estado faz bem à memória nacional, faz resgatar um mecanismo organizador do Estado brasileiro, escamoteado pelo discurso tradicional da história política.

Acusar o impeachment de golpe reorienta o olhar para a sociologia das elites e resgata o sentido trágico da política: de seu caráter cíclico, multifacetado, antilógico, confrontador de valores e que se distancia das escolhas humanas. Por esse viés, o golpe do impeachment serve para revelar o esqueleto do Estado brasileiro, longamente formado por detrás da pele da legalidade, constituído por conflito, violência e conspiração das elites e entre as elites.

Após a Princesa Isabel, Regente à época, ter assinado a Lei Áurea, o Barão de Cotegipe vaticinou: “A senhora acabou de redimir uma raça e perder um trono!” O golpe da República sobreveio como reação das elites à abolição da escravatura. No Rio de Janeiro e mesmo em São Paulo, onde a escravidão entrava em desuso, a abolição foi sentida como um ato despótico, de desapropriação sem indenização, uma expropriação levada a cabo por um governo tirânico, sob o comando de uma mulher beata. As elites jamais aceitariam ficar sem a devida contraprestação e lutaram por vantagens arcadas pelo poder público.

O Ministério de João Alfredo, indicado pela Regente Isabel para promover a abolição, ali esteve para transigir com os interesses econômicos das elites agrárias e ofereceu, com isenção de juros, empréstimos aos bancos para que estes subsidiassem as atividades agrícolas. Todavia, a ambição da elite agrária não foi saciada com as medidas de João Alfredo ou as de seu sucessor, Ouro Preto, que escancarou as portas do Tesouro Nacional à ganância dos fazendeiros.

Era necessário um governo que propiciasse a imigração europeia protestante, e não a católica, preferida pela princesa, para formar a classe de assalariados. Era necessário um governo que não fosse empecilho aos maçons, como era a D. Isabel, que poderia limitar as relações entre as autoridades católicas e a maçonaria. E, sobretudo, era necessário dar às elites paulista, mineira e carioca autonomia para gerirem as terras públicas e os impostos pagos em seus estados. Mas como tudo isso se tornaria insuficiente, era necessário dar às elites agrárias do sudeste todo o governo.

No golpe da República, a elite paulista, liderada por Campos Salles e Prudente de Morais, reunida em torno de um partido fortalecido pela adesão de “republicanos de última hora”, uniu-se à classe militar e angariou o governo do país. As razões republicanas serviam como discurso legitimador para as conquistas políticas das elites, interessadas na ampliação dos poderes locais.

Rui Barbosa, que esteve à frente do Ministério da Fazenda, foi o testa de ferro do grande banqueiro Francisco Mayrink, de quem recebeu uma mansão e para quem decretava. A bolha especulativa iniciada por Ouro Preto, com empréstimos sem juros e a perder de vista, foi inflada por Rui Barbosa até se romper. O eminente republicano permitiu aos bancos a emissão de papel moeda lastreada em bônus, ao invés de ouro, pois o golpe inquietou os investidores estrangeiros e provocou uma imensa fuga de capital do país. O padrão-ouro não poderia ser mantido. Contudo, na execução da política de emissão, Decreto de 17 de janeiro de 1890, favoreceu-se escandalosamente o banco de Francisco Mayrink, permitindo-lhe emitir dinheiro sem nenhum lastro. Para arrefecer a contestação da elite paulista foi decidido que São Paulo também contaria com um banco de emissão.

Ainda, pela pena de Rui Barbosa definiu-se que se poderia negociar ações na bolsa de valores de empresas que tivessem integralizado apenas dez por cento de seu capital social. Assim, com a injeção cavalar de dinheiro no mercado e o estímulo a não responsabilidade e iliquidez nos negócios, alimentou-se o ambiente de oportunidades especulativas. Era o Encilhamento.

Nesse clima de corrupção e irresponsabilidade do Governo Provisório, a especulação financeira favoreceu a elite agrária, agora rentista, e socializou os ônus entre a pobreza e a incipiente classe média de trabalhadores e comerciantes. Rui Barbosa, por sua vez, após sair do Ministério da Fazenda assumiu diretoria de empresa de Mayrink.

Dilma Rousseff foi a primeira presidente mulher e Princesa Isabel foi a primeira chefe de Estado do Brasil, assumindo o governo por três vezes, sendo a última entre 30 de junho de 1887 e 22 de agosto de 1888. Acusada de ser católica fervorosa, contra os interesses da maçonaria, e abolicionista, contra os interesses dos racistas e escravagistas, Dona Isabel foi deportada. Não há registros de “Tchau querida!”, mas o tom das elites era esse.

Na dinâmica dos golpes, o governo, enfraquecido e sob ataque dos interesses de elites, rompe para dar espaço a um novo governo, refém de lutas entre as elites. Lá e aqui, os Governos Provisórios apresentam-se instáveis e propensos a contragolpes de grupos e elites ressentidos com a reorganização do poder. No pré-golpe há concessões às elites, no pós-golpe há livre acesso, mas luta entre as elites.

Quem costuma sair dos golpes ileso e com vantagens é o Poder Judiciário. Pedro II, diante da forte campanha republicana, aliciava o Judiciário com promessa de incremento de poderes. Ao despedir-se, em julho de 1889, de Lafayette Rodrigues e do republicano Salvador Mendonça, que partiam aos Estados Unidos, recomendou: “Estudem com cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça de Washington. […] Entre nós as coisas não vão bem, e parece que se pudéssemos criar aqui um tribunal igual ao norte-americano, e transferir para ele as atribuições do Poder Moderador de nossa Constituição, ficaria esta melhor. Deem toda atenção a este ponto”.

Hoje e ontem o Poder Judiciário, diferente dos poderes Legislativo e Executivo, é mais coeso e menos plural, sobretudo em seus interesses corporativos. O golpe da República ofereceu ao Judiciário a promessa do Império, que se traduziu no controle de constitucionalidade dos atos do executivo e das normas do legislativo. Criou-se, pois, o STF e dividiu-se o Judiciário em estadual e federal, assegurando-lhe a independência com as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos para os juízes.

Houve dificuldades de reconhecimento externo do Governo Provisório de Deodoro e a pressão internacional, principalmente na Inglaterra com os banqueiros Rothschilds, determinou a realização de uma Constituinte para legitimar o governo. Nesse cenário, Rui Barbosa apresenta um projeto de Constituição que deveria ser aclamado: esse foi o teor do Congresso de 1890-91, que se reuniu durante trinta e três dias para votar e aprovar a Constituição apresentada pelo Governo Provisório.

A imprensa que apoiava o golpe da República e queria ver Constituição do governo aprovada foi cáustica em relação aos debates que se formaram na Constituinte, pois era necessário velocidade na aprovação do projeto do Governo Provisório. Difundiu-se nos jornais a denúncia de haver excesso de retórica no parlamento.

Hoje, a denúncia pelos partidários do Governo Provisório da existência de uma “retórica do golpe” vai no sentido de tentar evitar o debate político. Os deputados que votaram pelo prosseguimento do impeachment, em 17 de março, abdicaram da retórica parlamentar para expressar sentimentos. Reforçando esse viés, é emblemático o discurso de posse de Temer, em 12 de maio: “Não fale em crise, trabalhe. Eu quero ver até se consigo espalhar essa frase em 10, 20 milhões de outdoors por todo o Brasil, porque isso cria também um clima de harmonia, de interesse, de otimismo, não é verdade? Então, não vamos falar em crise, vamos trabalhar”.

É importante para os frágeis governos golpistas posicionar-se contra a retórica e buscar eliminar espaços de debates, porque a negociação, a formação de consenso e a exposição de razões à opinião pública costumam corroer os poderes, reelaborar sistemas de legitimidade e questionar autorizações, proibições e autoridades.

Nada acontece outra vez, os acontecimentos tornam-se diferentes quando lançados ao fluxo da história, mas hoje, transformados pela vivência do golpe do impeachment, somos mais perspicazes ao reconhecer no passado a livre expansão da ganância das elites, a misoginia na política, o horror ao debate público e a existência de espectadores bestializados.

Tiago de Castilho Soares é autor da tese: Retórica e Política no Congresso Constituinte de 1890-91, que pode ser lida aqui

Redação

5 Comentários

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  1. Uma coisa que ultimamente tem

    Uma coisa que ultimamente tem me chamado a atenção, com esta conversa de realização de plebiscito: em 1889, ninguém perguntou ao povo o que ele queria porque deviam saber que o povo iria preferir continuar tendo um Imperador pra chamar de seu…

  2. República?

    Muito bem observado. Traço também paralelos entre o golpe de 1889 e o de 2016.

    Em 1889, havia o medo de uma mulher ocupar o trono. Se a princesa Isabel não tivesse tido filhos (D. Pedro Augusto, filho de D. Leopoldina e sobrinho de D. Isabel, foi por muitos anos o príncipe herdeiro, até o nascimento de D. Pedro, filho de Isabel e do conde d’Eu) provavelmente a conspiração que levou ao golpe de 1889 não teria ocorrido. A elite da época defendia que D. Pedro II, “pelo bem da nação”, retirasse de D. Isabel e de sua descendência os direitos ao trono do Brasil. D. Pedro II nunca deu azo a tais conspirações, embora fosse público a predileção que Pedro II tinha por seu neto mais velho, Pedro Augusto. Com a renúncia de Deodoro, a ditadura de Floriano Peixoto, a guerra Federalista e a Revolta da Armada, havia certo consenso na restauração da monarquia. D. Pedro II já estava morto; a condição que se fazia para a restauração era que Isabel transferisse seus direitos ao seu filho primogênito, D. Pedro, e continuasse ela a viver fora do Brasil. Isabel recusou a oferta. Entrementes, acusavam a princesa de ter destruído as finanças do Império com a abolição da escravatura. Temia-se também o catolicismo fervoroso da princesa, que poderia legitimar algum tipo de reformismo. É impressionante notar que mesmo um conservadorismo ultra-católico, tradicionalista e monarquista assustava nosso establishment por conta das mínimas implicações sociais. Havia também a formação, dentro do Partido Liberal de elementos radicais e modernistas, tendo como representante o visconde de Ouro Preto, chefe do gabinete em novembro de 1889. Nesse contexto, um grupo de oficiais conseguiu organizar o golpe de 15 de novembro. Em princípio, o golpe não visava mudar o regime; os positivistas e republicanos do grupo queriam apenas desgastar ainda mais o velho regime. O escopo se resumia simplesmente em depor o primeiro-ministro e forçar o imperador a convocar novas eleições parlamentares. Na época, defendia-se também a necessidade do federalismo, e 15 de novembro poderia forçar a adoção do federalismo. Faltava um líder. De última hora, convenceram Deodoro da Fonseca, próximo do imperador, a aderir ao golpe, por conta da sua antipatia em relação ao visconde de Ouro Preto. Um boato de prisão de Deodoro e o falso boato de que D. Pedro havia chamado Gaspar da Silveira Martins (inimigo pessoal de Deodoro) para formar novo ministério, acabou por esquentar os ânimos e levar a proclamação da República. Que a república tenha sido proclamada e o velho regime abolido, foi ótimo, excelente. Em quaisquer circunstâncias, o regime monárquico já se tornou, nos últimos 250 anos, obsoleto e anacrônico. No entanto, no caso brasileiro, naquelas circunstâncias particulares, o golpe que ocosionou a república foi de grande retrocesso. A casa grande aderiu eufórica ao novo regime. Políticos que até o dia 14 de novembro eram monarquistas convictos, no dia 16 já eram adeptos do “fato consumado” e gritavam “viva a República”. E o povo? Estava de fora. A figura mítica de D. Pedro II, o imperador órfão e triste, e a aura da princesa Isabel como a “Redentora” tornavam o velho regime popular.

    O paradoxo brasileiro: a república que deveria ser uma conquista da população e a afirmação de valores nacionais, contemporâneos e modernizadores, no Brasil, foi a consequência de um golpe militar, liderado por um monarquista traidor, e este golpe foi legitimado pelas elites latifundiárias do país. Como bem lembrado pelo articulista, banqueiros brasileiros e britânicos e os cafeicultores paulistas fizeram a festa. Esta é a República que o Brasil conhece desde então. Quando se imaginou que a nova República estabelecida pela CF de 1988 havia se formado e consolidado, eis que uma campanha de desconstrução de uma figura mítica (mal comparando e comparando de maneira completamente arbitrária, Lula da Silva com Pedro I e Pedro II) e a destituição de uma presidenta por crimes inexistentes (tal qual Isabel, que com todos os seus defeitos e limitações, as únicas fraquezas imperdoáveis era o fato de ser mulher e de ter demonstrado ao longo de sua vida sensibildiade social). A república de hoje é a mesma de 1889, isto é, uma farsa.

     

  3. O home de maior visão que

    O home de maior visão que este País já teve sempre foi o mais mal compreendido. Houvessem diversos D. Pedros II e este país seria outro… Como sempre, o cavalo passou selado e continuamos deitados em berço esplêndido…

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