Do sequestro de simbologias ao discurso eleitoral: o 7 de setembro de Jair

A proposta neste artigo é fazer uma abordagem ampla do evento “discurso” e seus desdobramentos no 7 de setembro

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Do sequestro de simbologias ao discurso eleitoral: o 7 de setembro de Jair

por Anna Christina Bentes e Eliara Santana

A data simbólica do 7 de setembro foi, mais uma vez, sequestrada pelo bolsonarismo. E neste ano, o candidato Jair Bolsonaro tomou o lugar do presidente da República e protagonizou um espetáculo bizarro e triste para o país. No dia 7 de setembro de 2022, aniversário de 200 anos da Independência do Brasil, o presidente da República Jair Bolsonaro, após a parada cívico-militar em comemoração ao bicentenário, em um palanque especialmente armado para isso, produziu um ato de campanha. Naquele momento, falou, por quase 11 minutos, o candidato Jair Bolsonaro.

No discurso, ele levou ao público os temas importantes de sua agenda política – e não fez qualquer menção à simbologia da data ou ao país. Mais do que isso, a cena para a efetivação daquele discurso de campanha foi muito bem preparada para provocar muitos efeitos de sentidos na plateia e nos apoiadores do presidente/candidato.

Neste artigo, a nossa proposta é fazer uma abordagem ampla do evento “discurso” e seus desdobramentos, trazendo uma breve descrição da cena no interior da qual seu discurso é produzido, dos temas, das ações e da coerência deles tanto em relação à cena montada como em relação à agenda política de Bolsonaro. Por fim, queremos discutir também algumas das repercussões desse discurso, especialmente em relação ao uso do termo “imbrochável” para si mesmo, o que o obrigou a recategorizar esse termo em sua live da semana após o 7 de setembro.

Pelas mãos de Bolsonaro, a data simbólica do 7 de setembro propiciou momentos bastante questionáveis (talvez bizarros), contexto em que o discurso com o mote “imbrochável” se insere. Propomos analisar esse momento a partir de alguns aspectos principais que destacamos neste terceiro artigo da série “Desinformação, Política e Linguagem”.

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O “imbrochável e as repercussões do discurso de Bolsonaro

O discurso de Bolsonaro na comemoração dos 200 anos da independência do país foi muito mal-recebido pela mídia corporativa brasileira, pelos demais candidatos à Presidência da República e por parte da população, em especial, o público feminino. O discurso foi categorizado como “um ato de campanha”, o que seria proibido pela Lei Eleitoral. Foi reconhecido oficialmente como tal a partir do momento em que o TSE decidiu que Bolsonaro não poderia usar em sua campanha na TV e no rádio os vídeos desse e do outro discurso pronunciado no Rio de Janeiro. 

Quase todas as análises centraram fogo na enunciação do “imbrochável”. As análises e os comentários ressaltaram o caráter machista e grotesco da manifestação de Bolsonaro sobre si mesmo. Não houve qualquer menção ao modo como a enunciação foi construída, como resultado de uma interação com o público que estava ali para ouvi-lo. É claro que a manifestação foi claramente uma provocação, parecida com tantos outros usos grotescos da linguagem verbal já performatizados por Bolsonaro. O discurso como um todo e seus possíveis efeitos positivos foram deixados de lado. Também houve pouca menção à agenda positiva instaurada por Bolsonaro ao longo de sua fala.

É importante ressaltar que a enunciação de “imbrochável, em um autoelogio machista de caráter sexual instigado por seus seguidores, não foi o único momento em que Bolsonaro fez uma provocação às normas instituídas: aconteceu também o beijo na primeira-dama em um evento oficial que deveria ter como tema central o bicentenário da Independência do Brasil (nesse momento, o vice-presidente da República Hamilton Mourão que testemunhava a cena de perto, abaixa a cabeça para não continuar testemunhando), o ataque à imprensa e à esposa do candidato opositor e que está à frente nas pesquisas.

Como as avaliações negativas da mídia corporativa recaíram sobre a enunciação do termo “imbrochável”, Bolsonaro, em sua live da semana reafirma o autoelogio, buscando minimizar o caráter sexual e machista do termo, retirando-o do contexto em que foi produzido e atribuindo-lhe o sentido de “resistência”: “Imbrochável quer dizer que eu resisto, não vou dar pra trás, vou reagir, como temos que reagir a tudo”.

Talvez, seja importante afirmar: com seu discurso de um pouco mais de 10 minutos para um público grande que aguardava sua palavra, Bolsonaro atingiu seus objetivos entre seus seguidores: retomou seus compromissos como a chamada pauta moral, reforçou sua identidade de liderança política de extrema-direita, com todas asa características descritas acima, e se colocou como o centro das discussões no dia 07 de setembro, tanto na mídia corporativa nacional como internacional, mesmo que de forma negativa.

O palanque de Bolsonaro no 7 de setembro de 2022

O palanque do presidente/candidato Jair Bolsonaro para o discurso na comemoração do bicentenário da independência do Brasil – um carro de som – chamou a atenção por sua composição predominantemente civil. Ao longo de seu discurso, três figuras se destacaram na cena: a primeira-dama, Michele Bolsonaro, e dois empresários, sendo um deles Luciano Hang, conhecido como Véio da Havan. Um pouco mais atrás, também era possível ver o vice-presidente Hamilton Mourão. Um dos empresários, vestindo um grande chapéu de cowboy, ficou filmando com seu celular Bolsonaro e o público. Luciano Hang ficou, na maior parte do tempo, olhando na direção de Bolsonaro, prestando atenção em seu discurso.

Já a primeira-dama, Michele Bolsonaro, teve um papel importante ao longo do discurso, fazendo cenas e trejeitos bastante eloquentes em vários momentos (como vocês pode ver pela imagem abaixo). Ficou levemente atrás de Bolsonaro, com a sua mão direita nas costas do presidente Bolsonaro, numa atitude que pode ter, sendo bem encenada, um sentido de carinho e de proteção. Sorrindo bastante, muitas vezes ficou olhando para seu marido enquanto ele discursava ou ficou dando adeus, mandando beijos e fazendo coração com as mãos para as pessoas do público.

Ela teve um papel fundamental na enunciação do termo “imbrochável” por parte de Bolsonaro. Quando Bolsonaro estava em um pouco mais da metade de seu discurso, logo após ter feito um elogio ao papel de sua mulher em sua vida e depois de ter lhe dado, aparentemente de forma inesperada, um beijo na boca, quando ele estava exatamente começando a agradecer por sua “segunda vida”, Michele chama a atenção de Bolsonaro para o que estava dizendo um grupo perto do carro de som, e que estava gritando para o presidente o referido termo. Bolsonaro, então, resolve repetir o termo cinco vezes, como uma palavra de ordem de autoelogio, logo após a cena do beijo e aos conselhos dados por Bolsonaro aos homens solteiros. A cena se completa com ele olhando diretamente para Michele, rindo em sua direção e jogando o seu corpo na direção dela, em mais uma demonstração de intimidade entre eles. Ela, ajeitando os cabelos, ri com o rosto virado na direção paralela a do público, como se estivesse um pouco envergonhada do que acabara de acontecer.

Além disso, Michele fazia questão de dizer “amém”, muitas vezes com os olhos fechados, outras vezes olhando firmemente para o público, logo depois de certas afirmações de Bolsonaro, como podemos observar pela transcrição de alguns momentos abaixo:

Essa postura de Michelle no discurso do marido Jair reforça a ideia construída – e disseminada amplamente pelas redes bolsonaristas como um ideal feminino – da mulher religiosa, que acompanha o marido e o apoia em todos os momentos. 

Por fim, Michele Bolsonaro, sempre levemente atrás de seu marido, muitas vezes não apenas diz “amém”, como também balança a cabeça, concordando com o que ele está dizendo. Ela estrategicamente intercala momentos de completa atenção ao discurso que está sendo proferido por seu marido e momentos de interação com o público. A interação entre eles ao longo do discurso revela uma boa sintonia e papeis bem demarcados para ele e para ela. Como sabemos, nesse modelo, a mulher, de bom grado, se coloca como uma pessoa que está de acordo com as ações de seu marido e que tem o papel importante de apoiá-lo em sua jornada vitoriosa rumo ao sucesso de seu empreendimento, seja ele qual for.

 As ações e os temas do discurso de Bolsonaro

O discurso de Bolsonaro no 7 de setembro buscou três objetivos: reafirmar sua agenda, demonstrar força e firmeza (pela capacidade de mobilização) e reforçar sua identidade como homem religioso, bom marido e como um político que, apesar de enfrentar dificuldades, defende para seu povo valores fundamentais: a liberdade e o conhecimento verdadeiro sobre o país.

Bolsonaro parecia contente e bem à vontade ao discursar. Tanto que inicia seu discurso com um grito típico de eventos de rodeio. Em seguida, tece elogios ao país, em um discurso claramente ufanista, categorizando o Brasil como “terra prometida”, “pedaço do paraíso”, dado que “nenhum país do mundo tem o que temos”, “Temos tudo para sermos mais felizes ainda”. As categorias do discurso religioso foram também amplamente utilizadas na fala do presidente. Elas foram marcadas pelas ideias de missão (“Com a graça de Deus, que me deu uma 2ª vida, e pela missão também que me deu de comandar o nosso país”), de fé em Deus (“Hoje vocês têm um presidente que acredita em Deus”), de uma “luta do bem contra o mal”, entre outras, e ressaltam o tom messiânico da fala do presidente.

Sua agenda política, que reflete a agenda política da extrema-direita, retoma os seguintes valores e temas, afirmando:

 A liberdade eterna (mais do que oxigênio, a liberdade é essencial para nossa vida);

A pátria cristã (“que não quer a liberação das drogas, que não quer a legalização do aborto, que não admite a ideologia de gênero (…), que defende a vida desde a sua concepção, que respeita as crianças na sala de aula, que respeita a propriedade privada e que combate a corrupção para valer”);

A busca pelo conhecimento e pela verdade (“Hoje, todos sabem quem é o Poder Executivo, hoje todos sabem o que é a Câmara dos Deputados, todos sabem o que é o Senado Federal e, também, todos sabem o que é o Supremo Tribunal Federal”).

Sua identidade como um homem crente em Deus é encenada de várias maneiras:

Quando afirma Deus lhe deu uma missão: a de lutar contra o “mal”, os governos petistas que duraram 14 anos;

Quando afirma que tem uma “mulher de Deus” ao seu lado;

Quando agradece a Deus por sua “segunda vida”;

Quando relata que pede a Deus “mais que sabedoria, tenho pedido força para resistir e coragem para decidir”;

Quando se mostra um homem humilde, passível de erros: “Todos nós mudamos, todos nós nos aperfeiçoamos, todos nós podemos ser melhor no futuro (…)”

Sua identidade como político comprometido com o povo é reforçada por uma narrativa que implica a menção a um passado de “corrupção e de desmandos”, passado este vencido com a eleição dele em 2018. Depois, discorre sobre os percalços de seu governo – a pandemia e a guerra na Ucrânia – e a luta contra aqueles que fizeram a economia fracassar (o “fique em casa”). E, finalmente, evoca a reconstrução que agora acontece em função de uma política acertada (“a economia pujante, a gasolina barata, a deflação, um programa social abrangente, a criação de empregos”).

Essa identidade de “lealdade ao povo” é ainda reforçada pelos elogios a esse mesmo povo: “O povo está do nosso lado, o povo está do lado do bem, o povo sabe o que quer. A vontade do povo se fará presente no próximo dia 2 de outubro”; ““A voz do povo é a voz de Deus”. Além disso, exalta as características positivas do povo: “honesto”, “trabalhador”, que quer “o bem da nossa pátria, o bem do nosso país”.

Sua identidade como chefe de uma “família de Deus”, como um marido dedicado e apaixonado por sua mulher se revela quando Bolsonaro explicitamente elogia a esposa, dizendo que ela não anda ao seu lado, mas muitas vezes, à sua frente. E, também, quando aconselha os homens a casarem com uma princesa – nesse momento, Michele faz uma performance, colocando sua mão abaixo do seu rosto, pendendo rapidamente o rosto e o corpo de forma a indicar que ela é a princesa de quem ele estava falando. Além dessa performance da primeira-dama, toda a encenação descrita na seção anterior deixa transparecer a proximidade, a intimidade e o compromisso com as mesmas causas que Bolsonaro e Michele parecem compartilhar.

Também é notável a interação de Bolsonaro com seu público. Vaiaram o STF quando ele implicitamente pede uma manifestação sobre esse poder da República, entoaram “Lula ladrão, seu lugar é na prisão” logo depois de ele falar que “a voz do povo é a voz de Deus” e conseguem fazer com que Bolsonaro repita um jargão inventado ali, naquela hora, por um grupo de homens bolsonaristas.

Sendo assim, Bolsonaro, em seu discurso, faz poucos ataques (“Aqui não tem a mentirosa DataFolha. Aqui é o nosso data-povo”; “Podemos fazer várias comparações, até entre as primeiras-damas. Não há o que discutir”). Muito ao contrário, ele performatiza um conjunto de ações discursivas positivas, que estruturam seu discurso:

elogia sua mulher e seu povo;

agradece a Deus por sua vida;

conta a história de seu mandato, no interior da qual ele, vencendo um conjunto de grandes obstáculos, é o personagem que, ao final, propicia a liberdade, o bem-estar e o conhecimento para seu povo;

afirma que está empenhado em vencer “o mal” que “quebrou o Brasil por muitos anos”.

Um discurso inócuo

O discurso protagonizado pelo presidente/candidato nas comemorações do 7 de setembro, bicentenário da independência do Brasil, pode ter empolgado seus seguidores e reforçado a imagem de um líder político que defende os valores morais e cristãos, como listamos no decorrer do artigo. Também contribuiu para talvez mostrar que Jair se deixa conhecer, estrategicamente, tanto como um homem comum, “estourado”, que diz o que pensa, que é “verdadeiro”, que faz provocações à ordem instituída, como os ataques às instituições da República, à mídia e aos adversários por ele orquestrados, como um homem temente a Deus, um marido exemplar, um político leal ao seu povo.

No entanto, já que houve a transposição da figura do presidente para a figura do candidato no 7 de setembro, precisamos dizer que o discurso se mostrou inócuo para este segundo personagem. O candidato Bolsonaro precisa conquistar o voto feminino e precisa ultrapassar o primeiro colocado – que mantém a distância e está em tendência de alta segundo as últimas pesquisas. E pela repercussão negativa do discurso de Jair Bolsonaro, parece que as brasileiras e os brasileiros não estão nem um pouco interessados em saber se o candidato/presidente é ou não imbrochável. 

Bolsonaro obedeceu à orientação de campanha de amenizar sua imagem, chamando a atenção para suas qualidades de homem preocupado com seu povo e apaixonado por sua mulher, numa clara tentativa de disputar com as performances públicas do ex-presidente Lula.  No entanto, como sua principal doutrina é a do choque, não conseguiu deixar de produzir o grotesco na linguagem, que tanto lhe apraz. E isso acabou ofuscando o seu discurso centrado nas suas qualidades positivas e nas qualidades positivas de seus seguidores. A quebra da coerência, mesmo que apenas localmente, emergiu com muita força e isso revelou o rei nu. Nu com a mão no bolso.

Anna Christina Bentes é professora livre-docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp). Eliara Santana é pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. As duas estão coordenando o curso de extensão “Desinformação, Linguagem e Política no Brasil”, que começa em outubro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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