Inflação, Conflito Distributivo e a imoralidade da taxa de juros, por Maria Luiza Falcão Silva

Se sobem juros e lucros ganham os capitalistas e perdem os trabalhadores. Em um processo inflacionário de longo prazo perdem todos

Inflação, Conflito Distributivo e a imoralidade da taxa de juros

por Maria Luiza Falcão Silva*

Em 1987, em coautoria com MLR Molllo, escrevi um artigo intitulado “Inflação e Conflito Distributivo: Um jogo de cartas marcadas” publicado pela Revista Humanidades editada pela Universidade de Brasília. Ano passado, publiquei no Brasil 247 um novo artigo: “Inflação embute sempre um conflito distributivo entre capital e trabalho”. Lá se vão 37 anos do primeiro trabalho e a questão do conflito que a inflação mascara continua sendo objeto de más ou maldosas intepretações por economistas, formuladores de políticas, comentaristas econômicos e outros formadores de opinião. Sem dúvidas ganha importância nesse momento delicado pelo qual estamos passando no Brasil.

Na década de 1980, muitos economistas brasileiros trataram desse tema tendo em vista o período de hiperinflação que ocorreu no Brasil entre o final da década e o começo dos anos 1990. Alguns desses economistas consigo nomear: Pérsio Arida, Edmar Bacha, E. Modiano, A. Lara Rezende, dentre muitos outros. Todos buscando examinar os efeitos da hiperinflação brasileira dos anos oitenta do século passado sobre a distribuição da renda. 

Em 1989, a inflação no Brasil bateu 1.782% no ano. A hiperinflação corrói o poder de compra das famílias e desorganiza a produção. Em resposta a essa bagunça generalizada os brasileiros, depois de vários planos de estabilização fracassados, fizeram uma parada para arrumar a casa com a adoção do Plano Real, a partir de 1993, engenhosamente concebido por alguns desses mesmos estudiosos dos anos 1980 e que foram, muitos deles, anos mais tarde,  cooptados pelo mercado financeiro.

Os apelos recentes da sensata empresária Luiza Helena Trajano – maior acionista do Magazine Luiza, falando em representação às empresas de Varejo – sobre a necessidade premente de começar o processo de queda dos juros no Brasil, que hoje apresenta as maiores taxas de juros reais do planeta, sob sorrisinhos e gargalhadas do Presidente do Banco Central, o presidente político de um ‘suposto’ Banco Central independente, ao vivo e em cores, nas telas das televisões, iphones, computadores etc. causou perplexidade e chocou o país inteiro. Primeiro pela grosseria da atitude e segundo pela desfaçatez de um economista que obviamente sabe o que está em jogo por trás de um processo inflacionário.

Interpretar a inflação como resultado único do descontrole das finanças públicas e a taxa de juros como único instrumento para trazer a inflação para o centro de uma meta um tanto quanto “abstrata” é um sério equívoco. A ideia é que ao gastar mais o governo injeta dinheiro na economia, pressiona a demanda e os preços sobem. Contudo, isso só é verdade se a economia estiver aquecida. Usar aumento de juros para controlar inflação em países em que muitas empresas enfrentam capacidade ociosa e aumento de mercadorias prontas para venda acumuladas em estoques nas fábricas e nas prateleiras de lojas e supermercados, é uma política suicida, desumana que faz baixar a inflação sim, não há dúvidas, mas a um custo social insuportável com o crescimento do desemprego e emprego informal, deterioração das condições de vida das famílias de trabalhadores e quebras de pequenas e médias empresas voltadas para o mercado interno. Como bem colocou a sensata empresária Luiza Trajano, “é um remédio amargo que nem sempre resolve inflação…as empresas estão com excesso de produção …. é o emprego que salva as pessoas”.

Na conjuntura econômica global os impactos da guerra na Ucrânia e seu efeitos – aumentos no preço do petróleo e seus derivados, dos grãos, dos fertilizantes da inflação em escala mundial, da incerteza e das expectativas  afetando a todos em maior ou menor escala – pegam o Brasil em situação  de muita fragilidade com alto grau de desemprego e sobra de mercadorias por falta de poder de compra, com algo em torno de 33 milhões de pessoas em situação de pobreza e insegurança alimentar ou em linguagem mais clara, passando fome. Podemos inferir que a alta recente dos preços vem mais de pressões externas do que de fatores internos.

 O Banco Central não pode se eximir de olhar para a economia de forma sistêmica e humanitária e não como um banqueiro com uma visão tão estreita. Não importa se as pessoas padecem por falta de bens básicos para sobrevivência ou que mais empresas pequenas e médias quebrem. Só se preocupa em administrar o índice de preços de forma que apresente redução, a qualquer custo.

O regime de metas de inflação, estabelecido em 1999 pelo Gustavo Franco, tem como princípio o aumento da taxa de juros acima da taxa de inflação. Esse arcabouço técnico leva a uma alta da taxa de juros real e, portanto, da renda dos credores e a uma redução do salário real dos trabalhadores. Ao Banco Central (BACEN) confere um poder incomensurável. A principal função do BACEN é zelar pela estabilidade da moeda e o mercado entende, assim como a atual diretoria do BACEN, que a inflação desestabiliza a moeda e para trazê-la para a meta é necessário elevar, manter ou baixar a taxa de juros básica da economia (SELIC), a cada 45 dias, quando se reúne seu Comitê de Política Monetária (COPOM).  Veja bem: ao COPOM – composto pelo presidente e oito diretores do Banco Central – cabe decidir o resultado do conflito – quem ganha e quem perde. Ao elevar a taxa SELIC faz crescer a renda do capital, sob a forma de juros. Favorece os credores, os rentistas e penaliza os devedores. Isso não é um problema técnico. É antes de tudo um problema distributivo. Ao elevar os juros, encarece o crédito, penaliza as empresas que necessitam de capital de giro, desestimula o consumo o que faz com que as mercadorias não sejam vendidas, as máquinas parem e os trabalhadores sejam demitidos. A economia desacelera e os preços caem. Em resumo, é um jogo de cartas marcadas: os capitalistas ganham e os trabalhadores perdem duas vezes, têm os seus salários reduzidos e estão sujeitos a ficar desempregados.

O aumento dos juros sob os títulos do governo negociados no mercado de capitais (SELIC) foi muito brusca, no Brasil, a partir de março de 2021. Em março a taxa Selic estava em torno de 2,5%a.a., fechou em 2021 a 9,25%a.a. e em 2022 a 12,39 a.a.  Hoje está a 13,75% a.a. Descontada a inflação, as taxas reais são as maiores do mundo. Esses títulos têm bastante liquidez, alta rentabilidade e risco quase nulo. Se você é um investidor e dispõe de algum recurso extra para investir o que fará? Vai comprar títulos no mercado financeiro e ver o dinheiro fluir todo mês para sua conta bancária de forma garantida? Ou vai investir na produção quando a situação que se apresenta é de estoques não comercializados de mercadorias que se acumulam em pátios e prateleiras das empresas de varejo? O dinheiro migra da produção de mercadorias em direção ao mercado financeiro. A empresária do Magazine Luiza sabe o que fala: “entre a realidade e a teoria tem um buraco grande” que o presidente do BACEN finge não estar entendendo ou simplesmente gargalha. 

E as finanças públicas? É possível que ao diminuir os gastos estabelecendo tetos e outras restrições você até aproxime-se de contas equilibradas (déficit primário 0) nos próximos anos e a inflação diminua. Mas o que se vislumbra por fora do déficit primário? Como se comportam as despesas financeiras? Estas correm por fora do teto de gastos e/ou regras fiscais sob a forma de pagamentos de juros e amortizações aos detentores de títulos públicos que obviamente representam um número muito reduzido de brasileiros. Sobre o estoque da dívida do setor público incidia, em março de 2021, uma taxa de juros de 2,75 % a.a. Hoje a taxa é de 13,75% a.a. As estatísticas diferem a depender da fonte consultada, mas os valores a serem pagos de juros podem ser estimados grosso modo multiplicando o valor da dívida de R$7,2 trilhões pela taxa de juros vigente, o que nos dá algo em torno de R$ 960 bilhões. E quem paga? Toda a sociedade brasileira para os rentistas às custas da redução de investimentos na saúde, na educação, nos programas sociais etc.

Inflação embute sempre um conflito distributivo entre capital produtivo e financeiro, trabalho e um terceiro agente, o governo. Como a oferta de moeda é endógena, a quantidade de moeda ajusta-se às pressões inflacionárias, referendando a alta de preços praticada pelos fornecedores de mercadorias e serviços. Os salários quase nunca se ajustam no mesmo ritmo que os preços. Perdem os trabalhadores e ganham os que estabelecem os preços privados e públicos ou administrados – empresários e governo.

 Preços embutem custo das matérias primas, salários, juros, aluguéis, lucros e impostos.  Se o mercado de trabalho está frouxo – desemprego alto – os trabalhadores não conseguem se organizar para aumentar seus salários, ou seja, estão com baixo poder de barganha, sindicados perdem força. O resultado é claro, a inflação aumenta o abismo entre ricos e pobres. Se o mercado de trabalho está apertado – desemprego baixo, como viveu a economia americana no período recente, os preços sobem, mas os sindicatos se fortalecem e os trabalhadores até conseguem ter ganhos como resultado do conflito. Assim, retirados os custos das matérias primas e o desgaste dos equipamentos, enquanto componente dos preços, a inflação resultante de aumentos sucessivos de preços embute um conflito distributivo entre a classe capitalista, a classe trabalhadora e o governo. O ajuste dos preços ocorre via mark-up, onde o grau de monopólio das empresas públicas e privadas, e o nível de poder de barganha dos trabalhadores define a vantagem de cada grupo nessa disputa.

No curto prazo, na vigência de altas generalizadas e persistentes de preços (inflação), os trabalhadores compram cada vez  menos mercadorias e serviços com seus salários. Ou seja, de imediato caem os salários reais. Se sobem juros e lucros ganham os capitalistas e perdem os trabalhadores. Em um processo inflacionário de longo prazo perdem todos. Quando a inflação se torna crônica e fora de controle, os processos produtivos, os orçamentos das famílias, as contas públicas se desarticulam, se deterioram. A sociedade toda sofre as consequências. É a situação que vive hoje a Argentina, por exemplo, e a que viveu o Brasil antes do Plano Real, no final dos anos 1980.

Para o setor do agronegócio a lógica é diferente, mas não menos complexa porque os preços das commodities são regidos pelo mercado internacional. A escassez de alguns produtos por conta da pandemia da Covid 19 e da guerra entre a Rússia, de um lado, e os Estados Unidos/Otan/Ucrânia do outro, gerou escassez global de alguns produtos, grãos fertilizantes, desarrumou algumas das cadeias produtivas globais e alimentou um processo inflacionário em escala mundial. Há, igualmente, ganhos e perdas. Isso é assunto para um próximo artigo.

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*Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Redação

4 Comentários

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  1. Mas é precisamente quando, no longo prazo, começam a perder todos, que a autoridade monetária (leia-se, os bancos centrais, cartéis de banqueiros privados) começa a impor medidas para conter a inflação, ou adota as tais políticas anticíclicas. Somente quando já se esgotaram todas as possibilidades de lucrar com a inflação é que se tomam medidas para contê-la, apenas para retomar o processo. Para isso servem os chamados governos progressistas, com sua fixação em distribuição de renda, inclusão social, etc., ou seja, com sua fixação em aquecimento da economia, produtividade. Com isso, a economia cresce, o dinheiro circula, cria-se uma massa de valor que, por sua vez, a partir de um determinado momento, nutre a especulação e a possibilidade de gerar valor sem trabalho, e comprar bens tangíveis com moeda e negócios virtuais. Antigamente, chamava-se a isso ‘deixar o bolo crescer’. A expectativa da distribuição, no entanto, todos sabemos no que deu. Mas a financeirização tem outras coisas em mente; estimular a produção, gerar valor, e girar a roda financeira em cima dessas coisas reais, para auferir lucros a partir de coisas irreais – mercadorias para gerar lucros virtuais. Da última vez, esse período de “engorda” da economia real foi de 2003 a 2013. Os ciclos se tornam cada vez mais curtos, e a necessidade de colocar o bolo no forno vem mais rápido, e mais rápido ele fica pronto. Às vezes, sola. Mas isso não diz respeito ao sistema financeiro, que sempre vendeu gato por lebre.

  2. O efeito mais perverso dessas relações está em tudo o que o País perde ao não realizar o processo de evolução do seu conjunto econômico. Esse desequilíbrio provocado pela alimentação das questões inflacionárias, produz menor capacidade nos agentes produtivos de criar e desenvolver a interação de todos os setores participantes da economia. Isso restringe o surgimento de outras formas de geração de riqueza, o que teoricamente teria impacto no conflito distributivo. Todo o conjunto do País paga, como foi salientado pela autora, pois não consegue ter melhorias que traduzem maior qualidade de vida. Desenvolvimento econômico e social desconcentrando a geração de renda e criando novos motivos para soluções nessas relações. O congelamento das possibilidades de crescimento do País, que não se desenvolve nem se organiza. Aceitar o desafio do desenvolvimento é o que tem faltado desde o fim da situação hiper inflacionária.

  3. O governo precisa ser criativo para contornar as camisas-de-força financeiras em que foi metido, como essa autonomia do BC. Uma medida possível é estabelecer como regra de correção do salário mínimo a própria taxa SELIC, ou seja, inflação oficial + ganho real igual ao pago aos investidores; decerto muito semelhante à regra de inflação + PIB, mas com o bônus de trazer o patamar da SELIC para o centro da discussão. Fica claro para qualquer um que pagar juros com ganho real acima do crescimento do PIB significa transferência de renda para o topo em detrimento do Estado e do resto da sociedade; que o jogo aí é de soma zero, em que o rentismo necessariamente ganha a partir da perda pelos outros (diferentemente do caso de ganho real entre zero e o PIB, em que a disputa é mais pela apropriação do excedente/do crescimento do bolo, desde que observado o impacto populacional/variação da força de trabalho no crescimento). Se o argumento comum do patronato é de que só podem ser repassados para os salários os ganhos reais de produtividade da economia, por que aceitar então que juros reais possam furar esse teto? Se efetivamente queremos combater as desigualdades e fazer valer a Constituição, não se pode mais aceitar essa transferência descarada de riqueza via SELIC.

  4. O presidente do BACEN, não está nem um pouco preocupado com a situação de penúria em que vivem a maioria do povo. No fundo ele está preocupado em atingir o NIRVANA, dos rentistas: Alta taxa de juros e baixa inflação. Na concepção dessa gente, se o povo passa fome, que deixe de comer para não morrer de fome. É contraditório, mas as suas ações indicam para tal.

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