O Brasil e o Desafio da Reindustrialização
André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach*
O Retorno do Ativismo Estatal
Nas últimas duas décadas, especialmente depois da crise financeira global (2007-2009) e com a pandemia da COVID-19, observou-se o que foi denominado de um “retorno” das políticas industriais. Os governos nacionais passaram a elaborar estratégias explícitas, incorporadas em documentos oficiais, para enfrentar desafios como a concorrência chinesa, as transformações climáticas, a disputa pelo domínio da nova fronteira tecnológica (robotização, inteligência artificial, internet das coisas, computação quântica, 5G, biotecnologia etc.), os crescentes riscos sanitários e geopolíticos, a crise no mundo do trabalho, dentre outros.
A Unido mapeou um incremento significativo das políticas industriais no período recente. A partir da base de dados as Global Trade Alert, verificou-se que, entre 2009 e 2019, a proporção destas no total de intervenções registradas passou de 20% para 47%. O universo investigado envolve 52,2 mil medidas com efeitos sobre o comércio global adotadas por 148 países. As economias avançadas (EAs) têm uma frequência de medidas que é cinco vezes superior àquela de países emergentes e em desenvolvimento (PEED). Constatou-se que 60% das medidas de política industrial são direcionadas a empresas específicas, indicando o caráter de seletividade das mesmas. Além da proteção tarifária, os instrumentos mais utilizados são apoio financeiro (financiamento público, mecanismos de incentivo à internacionalização, garantias, aportes de capital etc.), exigência de conteúdo local e compras governamentais. PEEDs também lançam mão, com frequência, de isenções fiscais. Há distinções importantes entre as capacidades estatais – orçamentária e de governança – entre EAs e PEEDs, com vantagens claras para os primeiros.
As motivações para esta guinada rumo ao maior ativismo estatal são múltiplas. Há um esgotamento da capacidade de diversas estruturas produtivas, notadamente dos países ocidentais em sustentarem elevação da produtividade e do crescimento econômico, mesmo em um contexto de inovações tecnológicas, como aponta Robert Gordon. Este processo se articulou com tendências crescentes de desindustrialização em economias maduras ou mesmo emergentes. Ao mesmo tempo, décadas de políticas neoliberais engendraram elevação acentuada das desigualdades sociais. Em anos recentes esses processos induziram o surgimento de agudas tensões políticas em diversos países.
Em síntese, ainda que não propriamente admitido pelos tradicionais formadores de opinião, observa-se o esgotamento do neoliberalismo e de suas estratégias de gestão econômica e social.
Desindustrialização Precoce e Profunda
O Brasil se caracteriza por vários dos dilemas acima identificados, potencializados por uma profunda regressão da estrutura produtiva, pelo baixo dinamismo econômico, o crescimento pífio da produtividade e a dependência crescente da exportação de recursos naturais. Em termos de sua estrutura de produção e de comércio exterior, a economia brasileira contemporânea se assemelha mais àquela herdada do período primário-exportador que predominou até meados dos anos 1930.
São amplas a evidências neste sentido no recém-lançado “Anuário Internacional de Estatísticas Industriais” da UNIDO (United Nations Industrial Development Organization). Em seu anexo (p. 98 e seguintes) compila-se um conjunto de indicadores sobre o desempenho da indústria, em geral, e da indústria de transformação, em particular. Para a maioria daqueles, as informações mais recentes correspondem ao ano de 2022. Assim, para este ano, verifica-se que o valor adicionado na indústria de transformação do Brasil atingiu o piso de 9,5% do PIB na série histórica derivada do Sistema de Contas Nacionais da ONU, cujo ano inicial é 1970.
Tal valor é muito inferior ao indicador para o conjunto da economia mundial (16,8%) e está abaixo das médias latino-americana (12,8%) e africana (10,4%). Das economias do entorno regional sul-americano, somente a Venezuela (3,8%) e Guiana (1,6%) estão em situação pior. Ao se analisar agrupamentos por nível de desenvolvimento industrial, o Brasil tem um parâmetro menor do que o dos países de renda alta (14%) e média (21,2%), situando-se mais próximo ao perfil de nações de renda baixa (9,3%). Seu resultado também está aquém do que se observa no G20 (17%), BRICS (23,9%), OCDE (13,9%), OPEP (9,9%) e do que nos países emergentes industrializados (25,7%). Dos 211 países com dados, o Brasil ocupa a 118ª posição neste indicador.
Em termos de valor adicionado na manufatura (VAIT) por habitante, o Brasil apresentou um valor de US$ 833 (a preços constantes de 2015), o que também equivale à menos da metade da média mundial (US$ 1.879) e está abaixo do valor médio da América Latina (US$ 1.096), dos países de alta renda (US$ 6.073), de renda média (US$ 1.227), dos emergentes (US$ 1.502), dos BRICS (US$ 1.682), do G20 (US$ 2.645) e da OPEP (US$ 5.393). Segue com níveis superiores aos países de baixa renda (US$ 70), africanos (US$ 207), e do agrupamento dos “menos desenvolvidos” (US$ 160) e de economias em desenvolvimento sem acesso ao mar (ou “landlocked”, com US$ 203).
Para se colocar em perspectiva, tal montante de US$ 833 de VAIT per capita é 25% inferior ao montante realizado em 2008 (US$ 1.107), que foi o maior valor desta série histórica. Ainda em termos comparativos, as médias de subperíodos selecionados foram as seguintes: (i) 1970-1984, no ciclo dos governos militares, US$ 867; (ii) 1985-1994, no contexto da redemocratização com a Nova República, US$ 952; (iii) 1995-2002, com a estabilização inflacionária e os governos de Fernando Henrique Cardoso, US$ 942; (iv) 2003-2015, no período de retomada de políticas industriais nos governos do Partido dos Trabalhadores, com US$ 1.032; e (v)2016-2022, período de instabilidade institucional após o impeachment de Dilma Rousseff, com US$ 860. Tais oscilações não alteram o quadro estrutural de semiestagnação na produção industrial brasileira.
O Brasil Voltou! …. ao século XIX
Ao longo de quase todo o século XX, pelo menos até o começo dos anos 1980, a indústria de transformação cresceu a taxas sistematicamente superiores àquelas observadas no conjunto da economia. Nas estimativas do prof. Wilson Suzigan, entre 1933 e 1980, o PIB brasileiro variou, em média, +6,7% a.a., ao passo que o valor adicionado industrial avançou +8,7% a.a. Por isso mesmo, a razão indústria/PIB alcançou patamares equivalentes a 25% nos anos 1970 e 1980. Nos termos usualmente apontados na literatura kaldoriana, a indústria funcionou como o “motor do crescimento” econômico brasileiro.
Tal sorte se inverteu depois da crise da dívida externa, quando o crescimento do PIB declinou para +2,5% a.a., e a indústria manufatureira apresentou taxas ainda menores, de +1,6% a.a. Por isso mesmo, o Brasil declina constantemente em termos de sua capacidade de competir, incorporar progresso tecnológico e manter uma estrutura produtiva complexa e diversificada. Se, na média dos anos 1980, a indústria de transformação brasileira respondeu por 3% do valor adicionado global, montante que equivalia à soma das participações de países como Coreia do Sul (1,0%) e México (2,2%); nos anos 2010, o país tinha pouco mais de 1% da produção manufatureira global, com a Coreia respondendo por 3,4% e o México por 1,6%.
Em seu terceiro mandato, o presidente Lula tem o desafio de reverter o quadro atual de vulnerabilidade produtiva. Aos poucos, o governo vai anunciando uma série de iniciativas nesta direção. Em maio, em artigo de opinião escrito com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, o presidente afirmava que “A indústria será, nos próximos anos, o fio condutor de uma política econômica….”. Planeja-se apresentar a versão integral da nova política industrial nos próximos dias, com o tema da descarbonização como central das suas ações. Há, portanto, expectativas criadas em torno da possibilidade de o governo central atuar com robustez e eficiência na recondução do país a uma trilha de crescimento econômico mais intenso, socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. Resta saber se, desta vez, tal promessa será concretizada. Para o influente Luís Nassif, o governo está na direção correta.
A experiência histórica sugere que, no Brasil, o Estado foi relativamente bem-sucedido na conformação de uma estrutura industrial complexa e diversificada, que chegou a ser a maior dentre os países periféricos e a oitava maior do mundo, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Todavia, o poder público não foi capaz de criar mecanismos efetivos na indução de ganhos de eficiência no setor privado, revelando-se, assim, frágil diante das pressões particularistas. Ao se comparar as experiências asiática e latino-americana, pode-se dizer que o caso brasileiro, particularmente entre os anos 1950 e 1980, revela que houve um desequilíbrio no binômio incentivo-disciplina, com viés excessivo na primeira dimensão. Não há, até o momento, sinais claros de que este padrão será revertido no governo atual.
Nos anos 1980 e 1990, a instabilidade macroeconômica e o avanço do ideário neoliberal reduziram o espaço do ativismo estatal. Nos anos 2000, o retorno da política industrial consubstanciou-se em três políticas, duas associadas ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) – a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior de 2004 (PITCE) e a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) de 2008 – e uma concebida no governo de Dilma Rousseff (2011-2016) – o Plano Brasil Maior (PBM) de 2011.
Nos governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), deu-se uma intensa inflexão de caráter neoliberal, marcada pelo enfraquecimento de instituições e de instrumentos utilizados na promoção do desenvolvimento. Assim, por exemplo, o BNDES, chegou a ter desembolsos de menos de 1% do PIB na média do período 2019-2022, significativamente abaixo da média 1995-2017, que foi de 2,3%.
Nada a Fazer ou Mais do Mesmo?
Em uma visão de conjunto, observa-se que as políticas industriais implementadas ao longo da primeira década do século XXI apresentaram resultados extremante modestos e formas incapazes de reverter as tendências impostas pelo neoliberalismo. Em realidade, tais políticas foram tanto modestas como frágeis, sendo facilmente descartadas no ciclo de governos conservadores que chegaram ao poder a partir de 2016, sob os aplausos de muitos dos beneficiários das próprias políticas. A desindustrialização no Brasil não é apenas prematura, como sugerem os trabalhos seminais de José Gabriel Palma, professor emérito da Universidade de Cambridge, mas profunda e estruturalmente arraigada na visão das elites e instituições locais.
O que se constata no plano internacional é que políticas industriais bem desenhadas se configuram em pilares fundamentais, porém insuficientes para a retomada do dinamismo economia. O país necessita enfrentar uma série ampla de complexa de desafios institucionais, regulatórios e de coordenação entre os instrumentos específicos e as políticas mais gerais, especialmente a macroeconômica. De maneira mais estrita podemos apontar a necessidade de incrementar a capacidade de entrega de bens públicos e externalidades positivas pelo Estado; a necessidade imperiosa de conferir maior coerência sistêmica ao orçamento da União, atualmente fragmentado por emendas impositivas que alocam recursos com base em critérios políticos; a adoção de maior rigor na concessão de subsídios e incentivos, os quais devem ser condicionados não apenas a geração de empregos, mas também a apropriação de tecnologia e ganhos de produtividade aptos a se disseminarem pelo tecido econômico; dentre outros aspectos.
A magnitude dos desafios brasileiros implica em não se descartar o risco de que políticas fragmentadas, mesmo que bem desenhadas, tenham, na melhor das hipóteses, efeitos modestos sobre o dinamismo econômico do país, em uma repetição de episódios anteriores. O contexto internacional impõe a necessidade de uma concepção capaz de viabilizar uma estratégia sistêmica para o país e que vá além de políticas focais, caso o objetivo seja o de retomar o processo de avanço civilizacional no Brasil. Trata-se de tarefa enorme, mas necessária e que transcende ao atual mandato. Sem o avanço nesta direção, sobraria a alternativa de assistir a continuidade do processo de degradação econômica e, por extensão, social e humana, cotidianamente observado no país.
*André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach são Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
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