O desmonte deliberado do Sistema Único de Saúde, por Letícia Bona Travagin

Desde o início da implantação do SUS, seus eixos estratégicos – o financiamento, o foco na atenção básica, a valorização dos servidores públicos e a regionalização – são negligenciados, evidenciando uma opção política. A PEC 55 não é a raiz do problema, mas um agravante

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O desmonte deliberado do Sistema Único de Saúde

por Letícia Bona Travagin

Em tempos de austeridade fiscal e recessão democrática no Brasil, tem sido recorrente destacar os problemas que toda esta crise política, econômica e moral delegam às políticas sociais brasileiras. Esta reflexão é necessária e legítima. No entanto, insisto em lembrar que a erosão das políticas sociais e especialmente da saúde pública, tema ao qual me dedico, não é nova, passageira ou resultado imediato de “descontrole fiscal”. O desmonte do Sistema Único de Saúde é um projeto privatista deliberado, que ocorre persistentemente desde 1990, com o respaldo do Estado brasileiro.

O estudo da economia política do Welfare State e do neoliberalismo esclarece que o processo de desmonte da saúde pública brasileira está inserido no processo global de ataques à Seguridade Social, promovido pela retórica neoliberal hegemônica desde 1980.

Desde então, as políticas social-democratas que passavam pela atuação do Estado como indutor do emprego, do investimento e da minimização dos riscos sociais, são tidas como excesso, assistencialismo, populismo e irresponsabilidade fiscal. Desta forma, o neoliberalismo impôs uma disputa ideológica e de recursos financeiros entre Estado e mercado, que se converteu em captura do setor público pelo privado.

Este processo tende a ser mais ou menos agressivo de acordo com a articulação do setor privado e sua influência na economia. Quando se trata do segmento de saúde no Brasil, o mercado é o rei.

A história da saúde no Brasil é privatista. O SUS foi concebido no processo de democratização do país após a ditadura militar, justamente em resposta a um modelo de saúde privatista e excludente, porque era baseado na compra de serviços privados pelo Estado e no vínculo previdenciário.

O que chamamos de “medicina previdenciária” começou a ser construída nos anos 30, mas tomou sua forma mais sólida durante o regime militar sob gestão do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), quando a saúde pública foi literalmente relegada.

O esquema médico-previdenciário não teve fim apenas devido à crise econômica dos anos 1980 e às inúmeras denúncias de fraude.  Ele foi superado pela luta política democrática na qual se envolveu o movimento sanitarista. Uma luta que desafiou os interesses do setor privado de saúde, pela construção de um sistema universal, público e gratuito, baseado na concepção ampliada da saúde. Os sanitaristas eram uma caixa de ressonância das demandas de uma sociedade exausta e, naquele período, politicamente esclarecida.

No entanto, o segmento privado de serviços de saúde, fortalecido e articulado, não precisou de muito tempo para contornar este “obstáculo”. Bastava um governo simpático aos interesses privados para que o SUS fosse desmantelado antes de ser executado. A “Constituição Cidadã”, promulgada em 1988, já sofreu seus primeiros golpes em 1990.

O governo Collor abraçou aquela retórica neoliberal mencionada acima e impôs as primeiras restrições à implantação do SUS: foram 26 vetos na Lei Orgânica da Saúde, atacando itens relativos ao orçamento e à participação social, além da nomeação no mínimo estranha da presidência do Inamps para executar o processo de descentralização que levaria ao SUS (através da NOB nº 1). O impeachment não barrou o processo. Itamar Franco retirou do SUS o direito de receber recursos do Fundo de Previdência e Assistência Social (FPAS).

O governo de FHC trouxe as maiores dificuldades à saúde pública, e isso se relaciona mais uma vez com a retórica liberal. A reestruturação macroeconômica do país, com vistas à estabilidade monetária (metas de superávit, metas de inflação e câmbio flutuante) conflita com a implantação das políticas sociais ao limitar austeramente os gastos públicos, sobretudo os gastos sociais.

A Reforma Gerencial do Estado de 1995 serviu aos propósitos de redução do aparato estatal e delegação de serviços públicos ao setor privado, por meio das Organizações Sociais (OS), perniciosas no caso da saúde pública.

Lembro que o Banco Mundial empenhava uma força considerável em disseminar este discurso aos países subdesenvolvidos, nos anos 1990. O Banco dedicou publicações à questão da saúde, recomendando a focalização da assistência pública nos pobres, contenção de gastos, restrição do sistema à atenção primária e, sobretudo, o incentivo ao setor privado de saúde.

A insistência na focalização das políticas sociais e na ineficiência do gasto público é uma estratégia argumentativa usada para justificar a ampliação do mercado de saúde, em detrimento do sistema público.

A questão não foi resolvida nos governos do PT. O SUS continua sem bases estáveis de financiamento. Os governos petistas tampouco enfrentaram a questão dos privilégios ao setor privado de saúde, a quem muito interessa o sucateamento do SUS, e é fonte de influência dentro das duas casas legislativas do Brasil. Em 2016, em meio à crise político-econômica, sob um governo ilegítimo e o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, as perspectivas são mais desanimadoras.

Com tudo isso, quis mostrar a construção histórica de um vínculo deletério entre Estado e setor privado de saúde no Brasil, com influência do mainstream liberal internacional. Todos os eixos estratégicos do SUS foram negligenciados (o financiamento, o foco na atenção básica, a valorização dos servidores públicos e a regionalização). O sistema enfrenta obstáculos de todos os lados, que ou contornam ou ignoram a Constituição. Podemos citar a judicialização da saúde, a ênfase nos setores complementar e suplementar, a segmentação dos planos privados, as renúncias fiscais, e o expressivo crescimento do setor privado lucrativo.

O sucateamento da saúde é uma questão política e não será resolvida com remendos administrativos. A PEC 55 não é a raiz do problema, mas é um agravante e também a expressão de interesses econômicos canalizados no Estado brasileiro.

Nota

Este texto é baseado em dissertação de mestrado orientada pelo professor Eduardo Fagnani, no Instituto de Economia da UNICAMP. A dissertação completa pode ser acessada pelo link: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000972316&opt=1

Letícia Bona Travagin – Graduada em ciências sociais (IFCH/Unicamp) e mestra em Desenvolvimento Econômico, com ênfase em Economia Social e do Trabalho (IE/Unicamp)

 

Redação

3 Comentários

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  1. O SUS é uma das poucas coisas

    O SUS é uma das poucas coisas decentes que vocês fizeram e vocês deveriam protegê-lo. Ou vocês correm o risco de se verem na mesma situação que acontece na minha terra aonde se você tiver que passar por uma cirurgia mais séria você morre se não tiver (muito) dinheiro ou se não estiver disposto a ficar devendo para o resto da vida.

  2. Fragelos

    Eh engraçada essa dicotomia brasileira sobre o pepel do Estado. De um lado manifestam-se nas ruas pedindo mais saude, mais educação, mais infraestrutura, por outro, no cotidiano, as pessoas não querem o Estado presente nas suas vidas, dizem que se paga muito imposto, que não serve para nada. Desde que se copia o que vem dos estados liberais, diz-se que saude e educação deveriam ser privadas…. mas, quando aparecem na frente de uma câmara, dizem que querem mais educação e saude publica…. E no entanto, votam contra.

  3. Bom dia !  Vale apena lembrar

    Bom dia !  Vale apena lembrar que a saúde pública foi desestatizada nos governos fhc.  Implica que, as verbas mensais para aplicação na saúde municipalisada, agora vão para as mãos os prefeitos que, com certeza, sendo a maior delas, desviam e fazem aplicações em outras prioridades.  Defendo a restatização da Saúde já !

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