Os Desafios da Soberania Informacional, por Afonso de Albuquerque         

O controle soberano sobre as informações que circulam no país é essencial para que o Brasil possa exercer o papel de protagonismo

Reprodução

por Afonso de Albuquerque*, coordenador do INCT-DSI (Disputas e Soberanias Informacionais)

O novo governo que tomará posse em poucos dias enfrentará inúmeros desafios após quase seis anos de destruição sistemática do aparato estatal e de instituições públicas pelos desgovernos Temer e Bolsonaro. Um dos mais importantes desses desafios é restaurar a soberania nacional, atacada por todos os lados – de governantes entreguistas a megaespeculadores e governos estrangeiros interessados em prevenir a emergência de competidores em escala global.

Soberania é, essencialmente, o direito de caminhar com as próprias pernas e traçar os próprios caminhos. Ameaças à soberania nacional ocorrem em diferentes planos: político, econômico, militar, dentre outros. Um aspecto menos considerado desse fenômeno diz respeito à soberania intelectual, isto é, a capacidade de determinar quais temas ganham relevância no debate nacional e o modo como eles são tratados.  

A vitória na “guerra das ideias” é uma das maneiras mais eficientes pelas quais uma sociedade pode empregar para obter controle sobre outras. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos fizeram das universidades e das mídias uma trincheira fundamental em sua estratégia de hegemonia global. Por meio dessas instituições, eles buscam formar elites dóceis e moldar a opinião pública de outros países, de modo a que elas ecoem perspectivas e defendam interesses das elites estadunidenses. O lançamento do National Endowment for Democracy (NED), em 1983, representou um passo fundamental nesse sentido, na medida em que passou a coordenar um amplo leque de instituições como parte de um esforço sistemático de dominação intelectual em escala global. Instituições tão variadas quanto universidades, associações científicas, infraestrutura de difusão do conhecimento acadêmico (periódicos, por exemplo), think tanks, ONGs, fundações ditas filantrópicas, empresas de mídia e, mais recentemente, plataformas de mídias sociais atuam em sintonia com aparatos do Estado, tais como agências de inteligência, militares, Departamento de Estado, dentre muitos outros.

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A Operação Lava Jato – que destroçou o Brasil do ponto de vista econômico e alimentou a polarização política numa escala nunca vista – oferece um trágico exemplo dos riscos associados à falta de soberania intelectual. Em sua base reside uma concepção neoliberal da corrupção, formulada originalmente pelo Banco Mundial e tornada canônica pela literatura acadêmica internacional. Ela associa a corrupção fundamentalmente ao Estado e, dentro do Estado, ao Poder Executivo em particular. Nos termos desta lógica, as instituições de controle, sejam elas públicas (o Judiciário, o Ministério Público, dentre outras) ou privadas (a imprensa, organizações não governamentais como a Transparência Internacional, dentre outras) são os verdadeiros garantidores de uma democracia saudável (ou na terminologia neoliberal, “boa governança”).

As diretrizes da atuação dessas agências vêm, invariavelmente, de fora do país. A Lava Jato deixou isso muito claro. O vínculo da sua equipe de investigação tornou-se notório. Menos divulgado (mas não menos importante) foi o papel que as instituições acadêmicas estrangeiras desempenharam nesse processo. Sérgio Moro circulou nos Estados Unidos, ciceroneado por um cientista político estadunidense especializado em estudos sobre corrupção foi premiado por universidades daquele país. Obras acadêmicas saudaram a Lava Jato como momento redentor da política do país. A mídia brasileira dedicou uma verdadeira barragem de cobertura em favor da operação. A mídia estrangeira também interferiu no debate nacional sobre a Lava Jato, como o demonstra o caso da série O Mecanismo, exibida pela Netflix às vésperas da campanha presidencial de 2018.

Zelar pela soberania informacional (e intelectual) é, portanto, um objetivo estratégico, se queremos evitar que sejamos novamente vitimados pelos processos que levaram à quebra de ordem democrática no país e, em última análise, criaram as condições que permitiram a ascensão de Bolsonaro. Cabe às universidades desempenhar um papel importante nesse processo. A criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Disputas e Soberanias Informacionais (INCT-DSI) pretende oferecer subsídios que ajudem a mapear os fatores que ameaçam a soberania nacional no campo da informação. Criado em 2008 e reeditado em 2014, o programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) objetiva criar grupos de pesquisa de ponta em áreas estratégicas, unindo pesquisadores de diversas universidades. Além da pesquisa e formação de recursos humanos, os INCTs têm como objetivo central transferir conhecimento para a sociedade, auxiliar na formulação de políticas públicas e prover as bases de um diálogo acadêmico internacional que promova os interesses nacionais. 

O INCT-DSI inclui pesquisadores de alto nível, sediados em diferentes universidades do Brasil, e conta também com a participação de colaboradores estrangeiros de diversos países. O projeto se propõe a investigar os desafios que se apresentam à soberania informacional em três níveis distintos: 1) o campo da produção e circulação da informação científica; 2) o papel exercido pelas mídias no processo de transmissão de informações para a sociedade; 3) a atuação de algoritmos e plataformas na intermediação das informações que circulam nas mídias sociais. Em cada um desses níveis, aparatos sociotécnicos concentram nas mãos de poucos agentes o poder de definir o que é a realidade. Pesquisas têm sido realizadas sobre cada um desses níveis isoladamente, mas o esforço em considerá-los conjuntamente ainda é incipiente.

O tratamento integrado dessas dimensões é essencial para dar conta adequadamente de problemas como o da desinformação. Os acampamentos bolsonaristas à frente dos quartéis (só mais 72 horas…) alimentados por cascatas de desinformação difundida através das mídias sociais ilustram o risco que esse problema apresenta para a democracia. É preciso ter claro, contudo, que o uso de desinformação para fins antidemocráticos vai além do bolsonarismo. Afinal, a desinformação foi peça chave na peça acusatória que levou Lula à prisão (um triplex que não lhe pertencia). Essa desinformação foi bancada pela grande mídia e recebeu status de verdade nas mãos de um Judiciário capturado por interesses políticos. Para além disso, o controle da desinformação se apresenta particularmente desafiador quando se considera a atuação transnacional das plataformas de mídias sociais e o modo pouco transparente pelo qual operam seus algoritmos. Finalmente, existe o problema ainda mais central de quem define o que é ou não é desinformação. No Brasil atual, definições sobre esse tópico são frequentemente importadas dos Estados Unidos e trazem, implícitos, valores e interesses oriundos daquele país.

O controle soberano sobre as informações que circulam no país é essencial para que o Brasil possa exercer o papel de protagonismo que lhe cabe em um mundo cada vez mais multipolar. O INCT-DSI pretende contribuir para esse processo, através de uma rede internacional de pesquisadores centrada no Brasil. Dessa forma, ele pretende criar condições estruturais para que o país enfrente as inúmeras questões ligadas ao trânsito de informações e desinformações nas mídias e plataformas sociais de forma soberana. 

*Afonso de Albuquerque é professor titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Coordenador do INCT-DSI (Disputas e Soberanias Informacionais) e Membro do Comitê Editorial do Journal of Communication, International Journal of Communication and Communication, Culture & Critique.

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