Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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A festa da luz ou o que se transmite entre gerações, por Ana Laura Prates Pacheco

Não foram poucos os dias em que chegamos a acreditar que o Mal absoluto existisse mais do que Papai Noel

A festa da luz ou o que se transmite entre gerações

Por Ana Laura Prates Pacheco

A festa da luz ou o que se transmite entre gerações
O Sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
(Nelson Cavaquinho/Élcio Soares)

Só tive a noção do quanto esse ano de 2019 foi particularmente difícil quando os dias foram adentrando dezembro afora e nada em mim se movia para arrumar a casa para o Natal, algo que acontece de modo espontâneo desde que nasci. Na minha pequena e atípica família, o Natal sempre foi uma festa muito importante, cheia de expectativas e ansiedades. Estava bem longe de ser um banquete oferecido ao templo do consumo. Havia comidas especiais e presentes, mas era tudo ritualizado, cheio de sentidos, aromas, sons e texturas. As crianças – meu irmão e eu – podiam tomar champanhe. Minha avó se fantasiava de Papai Noel. Sabíamos, graças à minha mãe que sempre foi mais existencialista do que cristã, que “Papai Noel não existia”, mas a performance de minha avó era tão perfeita – com máscara, saco de presentes, sino, bota e tudo o mais – que quase chegávamos a crer que, por qualquer milagre da existência, ele, o Papai Noel, por um minuto pudesse chegar a existir. Uma vez minha bisavó, já meio gagá, chegou a ficar com medo do tal Papai Noel de verdade. Minha avó tinha esse dom de criar verdades que ficam para sempre e viram realidade. Acreditem: é diferente de mentir. Outra vez eu fiz a pobre coitada ficar acordada até o primeiro galo cantar. E estávamos em São Paulo, na década de setenta. Mas não é que o galo cantou? Fomos dormir felizes, eu e minha avó inventadora de verdades. Morávamos então exilados em uma pequena cidade do interior, minha mãe, meu irmão e eu. Para nós, São Paulo era frio, a terra da garoa, o que fazia ainda mais mágico e misterioso o Natal. E meu pai, que também vivia em São Paulo, tentando sobreviver à perseguição da ditadura, sempre aparecia na casa da minha avó para fisgar um naco de tender com gim e guaraná. E rabanada, é claro. Era muita, muita emoção, expectativa, euforia, alegria jamais experimentadas igual. Na sobremesa, o pavê da família – que hoje é meu único orgulho culinário no quesito doce – e as nozes e avelãs abertas na hora com aqueles abridores de nozes e avelãs que parece que foram extintos.

Não sei bem a partir de quando começamos a passar o Natal em nossa já não tão pequena cidade. E aí fazíamos a festa junto com uma amiga. Eram duas pequenas famílias matriarcais que no Natal viravam uma só. Foi então que minha mãe começou a nos contar sobre a “festa da luz”. Ela dizia que o Natal origina-se de uma festa pagã: a comemoração do solstício de inverno no hemisfério norte, a noite mais longa no ano, a partir da qual, o sol começa a “voltar”. É o auge das trevas, do inverno, que indica, ao mesmo tempo, o retorno da luz, e com ela, da vida, das plantas, das flores, das plantações. Festejava-se, então, o eterno retorno das estações, mas ao mesmo tempo, o novo, aquilo que nasce e renasce sempre na vida. Dizia minha mãe – e eu acreditei – que os primeiros cristãos oportunamente fizeram Cristo nascer por aí, nos finais dos dezembros, transformando a festa pagã em festa cristã. E foi assim que, em nossa família, minha mãe seguiu transmitindo aos netos o seu cristianismo pagão existencialista, tão ímpar e paradoxal.

Paradoxal. Talvez esse seja um bom nome para dizer de algo que o capitalismo galopante vem destruindo com sua máquina de banalização das relações e de transformação de objetos e afetos em mercadorias. No lugar dos paradoxos e das tensões que eles nos obrigam a experimentar, ficamos apenas com o universo do que pode ser convertido em imagem. O resto – e o resto é gente – vai para a lata do lixo da história. Poderia falar do mundo, mas fico no meu quintal. Aqui na terrinha, vivemos um ano em que tivemos que nos deparar do modo mais obsceno com o que temos de pior em nosso laço social. Fomos forçados a encarar, sem filtro, o que há de mais abjeto em nossa história: a ignorância, o racismo, o preconceito, a violência, a segregação, o descaso, a destruição. O maniqueísmo, sorrateiro, aproveitou a oportunidade da vaga deixada pelo sono do paradoxo e se instalou ligeiro. Não foram poucos os dias em que chegamos a acreditar que o Mal absoluto existisse mais do que Papai Noel!

Quando isso acontece, tudo parece perder o sentido, e aquilo que não tem sentido algum, em Psicanálise, chamamos de Real. O sem sentido do Real está sempre presente, e mesmo que dele nada queiramos saber, ele faz parte de nossas vidas. E é a partir desse sem sentido que podemos, inclusive, inventar arte, poesia, ciência, conhecimento, amor e solidariedade. Mas, por outro lado, é a sua negação sistemática que produz, na mesma proporção, medo, culpa, ignorância, ódio e destruição. Em geral são as imagens que se dispõem a nos salvar do desamparo, tentando criar sentido e fantasia, mas elas não são muito eficazes se não estiverem ancoradas em palavras. Ah! E como estão degradadas e esgarçadas as pobres imagens, outrora tão cheias de si. Agora, correm soltas e desembestadas por aí, depois de terem desgraçadamente soltado as mãos das palavrinhas que zelavam por elas. É por isso que é recomendável que os três – o sem sentido, as imagens e as palavras – fiquem enlaçados, sem soltar a mão de ninguém, deixando sempre espaços vazios de onde se cospem as criações e invenções que nos humanizam e que se transmitem entre gerações.

A tradição cristã, dentre tantas outras menos poderosas e institucionalizadas, também sabe disso à sua moda, e escreve a história do Natal através dos símbolos da coroa do advento. Ali estão, inclusive, os símbolos pagãos dos quais essa tradição é originária: a forma circular, as ramas verdes, o laço vermelho, as luzes. A humanidade enlaçada, sem soltar as mãos, esperando a luz que essa tradição específica chamou de Jesus. Pelo que me foi transmitido, prefiro chamar de luz. Quando a luz não advém, em seu lugar, advém o Real. Mas a luz, ela não advém do nada, a partir da graça divina, como quer outra tradição. A luz: é preciso esperá-la, mas, sobretudo, é preciso preparar-se e preparar as condições para que ela advenha. As trevas do sem sentido absoluto estão sempre a nos rondar sorrateiras e silenciosas. O advento, portanto, não virá sozinho, mas sempre dependerá da disposição ao ato e do trabalho de muitos e talvez seja esse o aspecto mais importante que estejamos negligenciando, perplexos que estamos com a humidade, a sombra, e o frio que nos assolou.

Quando parecia que nada mais de terrível poderia acontecer em 2019, uma querida amiga adoeceu gravemente, revelando ainda mais o quanto a vida flerta com o sem sentido, e como a função da pressa faz parte da existência, sempre por um triz. A partir daí, entretanto, uma rede de solidariedade e amor se constituiu de modo muito parecido com quando, há muitos anos, meu filho ficou entre a vida e a morte. A solidariedade também se revelou no domingo, quando tive a sorte de visitar a Escola Nacional Florestan Fernandes, um centro de formação do MST (Movimento dos trabalhadores rurais sem terra). Essa escola é fundamental para a sustentação de um projeto comunitário e popular para o Brasil, ministrando diversos cursos que vão de alfabetização à
saúde comunitária e técnicas agroindustriais. Ela foi construída através de um mutirão de militantes – até os tijolos foram fabricados lá –, com a ajuda financeira de algumas personalidades como Sebastião Salgado, José Saramago e Chico Buarque, bem como de ONGs internacionais. Existe uma Associação de amigos da ENFP da qual, quem quiser, pode se tornar apoiador para ajudar a sustentar esse projeto. Um projeto de país.

Hoje é dia 24 de dezembro de 2019, ano de advento do Real, ano em que, pela primeira vez na minha vida eu não havia preparado a casa para o Natal. Mas ontem à noite, conversando com uma querida amiga sobre toda essa tristeza e devastação que estamos atravessando, decidimos passar o Natal juntas, unindo nossas pequenas famílias. A experiência coletiva do domingo e a amizade me fizeram despertar! Às 4:48h mais precisamente. Precisei levantar para escrever esse texto. E, agora, preciso terminá-lo. Ainda dá tempo de arrumar a casa e fazer o pavê. Que é pá vê e pá comê. E pá inventar verdades que serão transmitidas entre gerações. E pá trazer a luz de volta, que a gente não quer só comida! Feliz festa da luz!

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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