A crise do pensamento crítico latino-americano, por Emir Sader

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do Blog da Boitempo

É no momento de auge dos enfrentamentos políticos e das grandes lutas de ideias na América Latina que se sente com mais força a relativa ausência da intelectualidade critica. No momento em que os governos sofrem as mais duras ofensivas da direita, buscando impor processos de restauração conservadora, valendo-se do monopólio dos meios de comunicação, o pensamento critico latino-americano poderia ter um papel importante, mas sua ausência relativa é outro fator que afeta a força do campo da esquerda.

A direita se vale desse monopólio e de seus pop stars. Vargas Llosa e Fernando Henrique Cardoso – os queridinhos da direita internacional – voltam com força a campo para apoiar Mauricio Macri, a direita venezuelana e atacar os governos do Brasil, do Equador, da Bolívia. Não lhes faltam espaços, ainda que lhes faltem ideias.

Ao pensamento crítico não faltam ideias, a briga é por espaços, mas falta muito maior participação, faltam entidades que convoquem a intelectualidade crítica para que participe ativamente no enfrentamento dos problemas teóricos e políticos com que se debatem os processos progressistas na América Latina.

À pobreza das propostas de retorno à centralidade do mercado, do Estado mínimo, das politicas de retorno à subordinação aos EUA, à apologia das empresas privadas, resta um marco amplo de argumentos e de propostas a serem assumidos pela intelectualidade de esquerda. Para desmascarar as novas fisionomias que assume a direita, para valorizar os avanços da década e meia de governos pós-neoliberais, de promover o papel desses governos, na contracorrente da onda neoliberal que segue varrendo o mundo e os direitos dos mais vulneráveis.

Esses governos fizeram a critica, na prática, dos dogmas do pensamento único, de que “qualquer governo serio” deveria privilegiar os ajustes fiscais. De que não era possível crescer distribuindo renda. De que as políticas sociais só poderiam existir como um subproduto do crescimento econômico. Que a equação do dinamismo sócio econômico se expressa sempre com mais mercado e menos Estado. Que não há alternativa à subordinação aos países do centro do capitalismo. Que o Sul é o atraso…

Enfim, tudo o que os governos progressistas desmentiram rotundamente são argumentos fortes para que o pensamento crítico se apoie neles e encare as dificuldades presentes nas perspectivas do aprofundamento desses processos e não do seu abandono. Isto é feito por aqueles que – da direita à ultra esquerda – se refugiam no triste consolo de um suposto esgotamento do ciclo progressista. A ambas forças lhes sobram motivações, por terem sido derrotadas, por uma década e meia de ciclo progressista. Mas lhes faltam razões: elas não podem projetar um futuro para o continente que não seja a reiteração do passado desastroso e superado ou o discurso sem prática.

É o momento do pensamento crítico deixar de lado as práticas burocráticas que neutralizam o potencial crítico do pensamento latino-americano e mediocrizam as entidades tradicionais, e voltem a protagonizar, na primeira linha, a lucha anti-neoliberal. Tornem a, sem medo, propor ideias audazes, novas, emancipatórias, que voltem a enlaçar a intelectualidade com as novas gerações órfãs de futuro.

A burocratização é uma doença fatal para o pensamento crítico, seja das estruturas acadêmicas, seja das praticas institucionais em outras instancia. Até quando a intelectualidade crítica deixará que os “intelectuais midiáticos” da direita ocupem praticamente sozinhos os espaços de debate de ideias, que formem novas gerações nos valores do egoísmo, dos preconceitos, do consumismo?

A burocratização leva à despolitização, que é o melhor serviço que se pode prestar à direita, subtraindo espaços críticos à luta de ideias para volta-los simplesmente à manutenção de cargos e de remunerações. São burocratas que, ainda que nominalmente pretendem pertencer ao campo da esquerda, a desmoralizam, pelo uso abusivo das palavras sem a prática correspondente ou com uma prática sem ideias, nem projeção política concreta.

Foi uma tragédia para a esquerda a separação entre uma prática sem teoria – que frequentemente se perde nos meandros da institucionalidade vigente – e uma teoria sem prática concreta.

Hoje é indispensável resgatar a articulação entre pensamiento crítico e luta de superação do neoliberalismo, entre teoria e prática, entre intelectualidade e compromisso politico concreto. Se os velhos caminhos se desviaram dessas vias, novos tem que ser abertos. Os espaços públicos conquistados estão aí para serem ocupados. Como canta Pablo Milanés:

“Los caminos que encontramos hechos
son deshechos de viejos destinos.
No crucemos por esos caminhos
porque solo son caminos muertos”

Sejamos fieis aos precursores do pensamento crítico latino-americano, mas sobretudo fieis aos novos destinos que apenas começamos a construir.

Quem perde a batalha das ideias está fadado à derrota política. Não merecemos perder nem uma, nem a outra.

***

Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros,Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da história.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

10 Comentários

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  1. O inimigo interno da Intelectualidade Crítica

    Da mesma forma que a direita se destrói sozinha (ainda bem, pese a todo o apoio do PIG), pelos seus argumentos notadamente antipopulares e pelas pessoas de baixa credibilidade que militam nas suas fileiras, a suposta intelectualidade crítica da esquerda criou (ou lhe criaram artificialmente) um mecanismo para sua autodestruição, graças à atomização das ideias progressistas para situações cotidianas e comportamentais, e não no campo político/ideológico. Ou seja, uma torre de babel.

    A intelectualidade crítica existe, mas, ela é utilizada para discutir comportamento social, dentro de uma nação que ainda nem foi construída. Os meios de comunicação não apenas estimulam esta autofagia da esquerda, mas também geram preconceitos que dividem e destroem pontes de convivência entre estados e países vizinhos. Dentro desse escopo, é muita generosidade chamar o Vargas Llosa ou FHC como pop-stars, num papel ridículo e submisso ante a economia global.

    A direita é muito fraca, no Brasil. Forte são os meios de comunicação e, principalmente, forte é a ideologia global dominante, que limita o nosso espaço de raciocínio. O brasileiro não consegue sair de um pensamento lineal entre esquerda e direita (esquecendo a projeção internacional desta opção). Por exemplo, existe direita internacional e direita nacional, onde a diferença está no local onde o seu final de vida é direcionado, sendo os tucanos os expoentes da direita internacional (com foco de vida em Miami), e o antigo PFL a direita local, de coronéis, do tipo ACM, embora ainda com desejos de serem ricos e coronéis, mas na sua própria terra. Anos atrás tínhamos uma esquerda muito “internacional”, direcionada pela URSS ou pela China, como havia sentimento de esquerda nacional, iniciada por Brizola e logo seguida pelo PT. Os “verdes” e alguns outros partidos, são vertentes de esquerda internacional, colaborando com a penetração colonial, pela via esquerda da mesma estrada que nos escraviza ao mundo dito desenvolvido.

    A nossa “intelectualidade crítica”, principalmente nestes últimos anos (com apoio da direita) apenas divide os indivíduos por causa da sua condição comportamental, não ideológica. O sujeito mais “modernoso” seria então de esquerda e, aquele evangélico, por exemplo, embora pobre, é “conservador” e, por tanto (na opinião limitada de algum observador) de direita. Uma população de milhões eleitores de evangélicos, apenas para indicar um grupo, foi forçada para entrar na “direita”, apenas porque alguns pastores são contra, por exemplo, do casamento Gay. Então, a nossa “intelectualidade crítica” os apresenta como inimigos conservadores, embora a maior parte destes seja de origem humilde, com todas as condições de apoiar e caminhar para uma sociedade como a que este governo popular representa.

    Obviamente, com a pátria salva e com o Brasil autônomo e desenvolvido, num futuro espero não tão longe, poderíamos voltar a discutir temas sobre gêneros, minorias em geral, saber se o pato é macho e outras “prioridades” da esquerda modernosa, que se acha o máximo em termos de liberdade de pensamento. Como a direita deve gostar disso!

    “À pobreza das propostas de retorno à centralidade do mercado, do Estado mínimo, das políticas de retorno à subordinação aos EUA, à apologia das empresas privadas, resta um marco amplo de argumentos e de propostas a serem assumidos pela intelectualidade de esquerda.”

    O Emir Sader nos lembra de que vivemos uma situação ímpar, considerando a pobreza das ideias do outro lado político, e colocando que teríamos um amplo marco de argumentos para assumir. Eu já acho mais, que temos uma excelente oportunidade de trazer para a esquerda plural e nacional muitos eleitores perdidos por discursos comportamentais, religiosos e de outro campo, que mostram apenas uma diversidade legitima entre cidadãos de uma mesma nação. Mas, primeiro devemos salvar essa nação.

    O Autor do post foca nas práticas burocráticas, como o principal entrave para a retomada da intelectualidade de esquerda. Não acho. A chamada esquerda burocrática tomou a parte pesada deste processo e, mesmo com o bote ainda cheio de coxinhas, pegou o remo e faz o bote andar, enquanto os “modernosos” brincam de quem é mais esquerda que o outro. Acho que, pelo contrário, devíamos todos assumir algum dos remos e levar este bote para um novo porto, onde içaremos a bandeira de um Brasil solidário, de liberdade plena e popular, com educação e saúde. Isso é um compromisso político concreto.

    Sugiro que, neste novo porto, possamos contar com uma sala grande de reuniões, onde a turminha modernosa volte a discutir sobre o se o pato é macho, sobre os gêneros e até sobre um eventual terceiro banheiro nos espaços públicos, espaços que agora serão brasileiros e de todos. 

  2. Engraçado Emir Sader tratar

    Engraçado Emir Sader tratar de crise de pensamento crítico.

    Logo ele que é um governista cego, incapaz de pensamento crítico. Mas capaz de pedir para a Gaviões da Fiel bater nos “vira-latas” sem-teto. Capaz de difamar, pedir repressão e prisão para manifetsantes e ativistas de esquerda.

    Emir Sader para mim faz parte da mesma direita de um Reinaldo Azevedo, só que jogam em escretes diferentes, num campeonato que os trabalhadores sempre ficam de fora.

  3. A esquerda tem essa mania,

    A esquerda tem essa mania, mania de fazer critica e autocritica em público. Nunca atacam a direita, não. Gostam de apanhar e fazer mea culpa supostamente elegante.

    Nas organizações partidárias, a mesma coisa: enfraquecem mais ainda os governos de centro e de esquerda crendo que assim podem levá-los mais à esquerda; não atacam, não, a direita, que cresce cada vez mais, e cada vez mais fica mais boçal.

    É a velha “tioria” da “caneta na mão”…

  4. economia

    Tanto a direita quanto a esquerda tem sérios problemas, falsa auto-crítica. Neoliberal?? Há alguma partido de direita no Brasil com força política hj? algum partido com coragem de fazer reforma previdenciária e trabalhista?? Li várias vezes aqui que se pode tolerar certa inflação desde que juros estejam baixos e que haja crescimento econônmico. Há sustentabilidade da economia latino americana? Saímos do ciclo pau-brasil, açucar, borracha?? pelo amor de deus. desde quando a direita ou esquerda latino-americana investiu na população?? desde quando nos demos o direito de procurar sair das commoditties???

    somos reféns porque somos corruptos de ideologia. Não acreditamos de verdade na cidadania, na democracia e no conhecimento. Os intelectuais latino-americanos são hipócratas e arrogantes. São como os ricos de higienópolis, não querem ver suas idéias contra-postas por gente que efetivamente é estudadadas. 

    No fim, a direita e a esquerda são farinha do mesmo saco. Sabem que pra um país crescer, a iniciativa privada é fundamental, que a regulação do Estado é fundamental e que  produçao de soja, ferro e petróleo não sustentam ninguém. No entanto, querem manter divisas, castas, sejam intelectuais, econômicas ou filosóficas. Não acreditam na democracia pq acham que sabem o que é melhor pra mim. 

    Desilusão.

  5. tem de aumentar

    tem de aumentar expressivamente o número de intelectuiais

    organicos nos partidos e nos movimentos sociais,,,

    pois esses intelectuais, mesmo  os que se dizem independentes,

    acabam curvando-se à predominancia escarnecedoramente hegemonica da grande mída…

    na verdade, acabam cooptados. pelo dito aparelho ideológico

    da direita.ou do chamado patrimonialismo…

    entram no dito mainstream…

    para estes, não há luta mais a ser travada,

    apenas a luta indicidual pelo espaço que os beneficiará individualmente….

    isto ocorre muito na área academica, onde o cara tem de publica

    ou publicar, se quiser desenvolver sua ascenção……..

  6. E ………………..

    Concordo em parte com a auto-critica do Emir, mas faço um porém.

    Porque os presidentes progressitas eleitos ultimamente, não cuidaram de regulamentar as mídias em seus países? Medo? O único que tentou com algum sucesso, mas que agora está a ruir, foi a Argentina,  mas com a eleição do Macri, voltará tudo como dantes no quatel de Abrantes! Então…………

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