A dificuldade de enfrentar mitos, por Bruno Reikdal Lima

O subterfúgio imediato de Damares está nos modelos partilhados e socialmente reproduzidos todos os dias nas comunidades religiosas

A dificuldade de enfrentar mitos, por Bruno Reikdal Lima

No intuito ou sob o pretexto de evitar a ocorrência de gravidez na adolescência, o governo Bolsonaro lança por meio da pasta dirigida pela ministra Damares Alves uma campanha de abstinência sexual. Assumidamente sem pesquisas a respeito da eficácia desse tipo de campanha ou mesmo da abstenção do sexo como melhor caminho para evitar uma gestação precoce, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos segue sua cruzada gerando polêmicas, posicionamento de entidades religiosas e apoiadores, críticas de especialistas e até discordâncias dentro do próprio governo (sendo o ministro da Saúde, por exemplo, contrário ao programa).

No entanto, antes de uma questão “moral” ou ainda uma disputa por “o que é racional”, o fundamento dos embates está nos projetos humanos ou de organização social, nos projetos de como deve ser o futuro, que se chocam a cada instante. E nesse campo, incluem-se não apenas os sonhos de uma sociedade de mercado total e competição perfeita ou de uma sociedade sem classes e economia planificada, mas também do Reino dos Céus e outras utopias.

Na introdução de um pequeno livro intitulado O mito desenvolvimento, publicado pela Editora Vozes, Celso Furtado afirma que todo cientista social sempre traz consigo um conjunto de hipóteses que não podem ser testadas. A isso, Furtado chama de “mito”. Para se imaginar que existe a possibilidade de toda a humanidade consumir como um estadunidense médio, por exemplo, é preciso que se assuma o mito de que os recursos (e a própria vida humana) são infinitos, assim como tendentes à perfectibilidade, em um progresso contínuo de melhoras e aperfeiçoamento rumo a um futuro necessariamente melhor (e perfeitamente possível). Essas são hipóteses que não podem ser testadas, mas assumidas como ponto de partida ou mesmo como pressuposto necessário, tornam possível a interpretação da realidade e o desenvolvimento de projetos humanos, como afirma Franz Hinkelammert em seus livros (como, por exemplo, Crítica da razão utópica, publicado em português pela Editora Vozes, ou Totalitarismo del Mercado, recentemente publicado apenas em espanhol pela Akal). É condição humana ter um “modelo transcendental” para se posicionar e interpretar o mundo.

Damares partilha ou utiliza de um desses modelos. Um modelo histórico, fruto do desenvolvimento humano no tempo, materialmente, em comunidades com seus modos de produção, suas disputas, narrativas, organização etc. Especialistas em sexualidade, em geral, pelo menos os sérios, também partilham ou utilizam de outros modelos, diferentes, que também são frutos de processos históricos. E é necessário que tenhamos isso sempre em nossas discussões: primeiramente ou fundamentalmente temos modelos fundados em hipóteses que não podem ser testadas e que dão condições para que pensemos, planejemos, nos posicionemos, entremos em disputas (quando necessário).

No mito de Damares e de boa parte das comunidades brasileiras, entra no horizonte dos modelos transcendentais uma orientação de vida que visa encontrar um Reino futuro melhor do que a vida cotidiana “neste mundo”, mediado por práticas comunitárias religiosas que salvam ou garantem a passagem a cada pessoa para essa nova terra após a morte, dependendo de como se age hoje. Entre a lista de exigências, temos comumente restrições e mandamentos sexuais. Criar proteções para os tropeços dos ainda “não iluminados pelo Espírito” é justificável nesse projeto humano. Afinal, é dar oportunidade para que pessoas participem dessa utopia. A partir de outros modelos, a maioria dos especialistas em sexualidade (com quem estou de acordo nesse ponto), não se visualiza um Reino bom pós morte, mas a construção de uma sociedade com mais recursos que garantam o melhor controle possível sobre gestações e um melhor planejamento, evitando não apenas a gravidez, mas também DST’s, imaginando que há maior ganho na qualidade de vida próximas gerações levando em conta os resultados de pesquisas desenvolvidas e demonstráveis e, claro, a “educação sexual”, que iluminaria com informações diferentes grupos humanos. Mas qual utopia essa solução imaginada compõe?

A dificuldade que gostaria de indicar para os especialistas (e para mim) diz respeito ao modelo que o acompanha, em um espectro social maior, de projeto político e econômico mais amplo. Assim como o não demonstrável Reino de Deus promete uma terra perfeita para a eternidade e legitima a abstinência sexual como programa, a questão da gravidez na adolescência levada em conta por outros caminhos não está isolada de projetos políticos com hipóteses que não podem ser testadas, e que são completamente distintas. Ela pode compor, por exemplo, um projeto de mercado capitalista de pessoas voltadas exclusivamente para tarefas laborais. Pode ser fruto de uma imagem liberal de máxima responsabilização individual, seja em uma sociedade revolucionária ou em uma sociedade competitiva de mercado. O “mito”  que orienta o tipo de organização humana que se espera dá conteúdo para a solução cientificamente proposta por especialistas.

Esse modelo, quando fragmentado, ou seja, quando se discute apenas o ponto do tabu sem apresentar a rede maior de qual sociedade é esperada, não constitui comunitariamente alternativas para o que garante a aposta de parcelas religiosas da população no apoio à campanha de Damares. O que legitima uma tomada de posição – para além do mito moderno de uma sociedade automatizada por uma ciência perene e partilhada por todos os indivíduos humanos que tomariam suas decisões baseados em probabilidades e experimentos demonstráveis – é o modelo transcendental no qual estamos firmados. Seu conteúdo é constituído e justificado em um campo que não pode ser reduzido a um debate de “evidências” e nem a uma individualização de preferências, na qual cada um pode (ou deve) acreditar no que quiser. No caso, estamos falando de políticas públicas, que envolvem diferentes comunidades do mesmo território, com processos históricos distintos e modelos diferentes, projetos fundados em mitos diferentes, disputando a instituição moderna Estado nacional. Trata-se da construção de um “mito” (ou no mínimo de tornar explícito algum já existente).

Nas discussões em economia política, Hinkelammert mostra como os modelos transcendentais orientam, justificam e tornam possível os modelos econômicos. É uma das brechas para se discutir a “ideologia da economia”. Esses modelos são o que chamamos de conteúdos ou discursos ideológicos. Negativamente seriam a “falsa consciência” (como nos acostumamos a considerar o que é ideologia), mas positivamente, quando assumidos explicitamente, são as condições que tornam possível a transformação, melhoria ou abandono de instituições ou organizações sociais, tendo como ponto de partida um projeto humano alternativo, um “modelo transcendental alternativo”.

O subterfúgio imediato de Damares está nos modelos partilhados e socialmente reproduzidos todos os dias nas comunidades religiosas, que sem afirmar qual seu programa ou projeto político amplo, aponta para os ordenamentos sociais fundados na esperança de salvação futura. Subentende-se que o Reino de Deus é o plano desejado pelo governo, e suas ações vão de encontro para essa ordem social desejada. Mas qual é o modelo transcendental que permite o sonho de uma nova ordem social no qual outros programas de prevenção estão inseridos e que faz frente a isso? Qual o nosso mito?

 

Referências bibliográficas

FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Paz e Terra: São Paulo – SP, 1983.

HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão utópica. Editora Vozes: Petrópolis – RJ, 1984.

_____. Hacia una crítica de la razón mítica: el laberinto de la Modernidad. Ediciones Desde Abajo – Costa Rica, 2007.

 

_____. Totalitarismo del Mercado. Akal Editorial – Costa Rica, 2016.

 

Redação

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