A era dos bárbaros bem remunerados, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A ruptura de um regime constitucional democrático pode ser lento ou gradual, mas o resultado nunca é isento de dor.

A era dos bárbaros bem remunerados, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O livro Cultura e Barbárie Européias, de Edgar Morin, foi publicado originalmente em 2005 e levou 4 anos para ganhar uma edição brasileira. Passados dez anos de sua publicação pela Bertrand Brasil, não posso deixar de refletir sobre uma passagem do livro:

“As trágicas experiências do século XX devem conduzir a uma nova reivindicação humanista: que a barbárie seja reconhecida pelo que ela é, sem qualquer simplificação ou falsificação. O que importa não é o arrependimento, mas o reconhecimento. Esse reconhecimento deve passar pelo conhecimento e pela consciência. É preciso saber o que de fato ocorreu. É preciso ter consciência da complexidade dessa tragédia colossal. Esse reconhecimento deve incluir todas as vítimas: judeus, negros, ciganos, homossexuais, armênios, colonizados da Argélia ou Madagascar. Ela é fundamental se quisermos superar a barbárie européia.

É preciso que sejamos capazes de pensar a barbárie européia para ultrapassá-la, pois o pior é sempre possível. No meio do deserto ameaçador que é a barbárie, estamos, por enquanto, sob relativa proteção de um oásis. Mas sabemos também que vivemos hoje em condições histórico-político-sociais que tornam o pior sempre possível, principalmente nos períodos paroxísticos.

A barbárie nos ameaça, por trás das próprias estratégias que supostamente se opõe a ela.” (Cultura e Barbárie Européias, Edgar Morin, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2009, p. 105/106)

Na Europa a barbárie deixou de ser algo possível. Ela já se tornou uma realidade. Em quase todos os países, com a honrosa exceção de Portugal, a extrema direita agressiva, racista, nacionalista e belicosa tem ganhado espaço eleitoral. Os tambores de guerra (contra a UE, contra a Rússia, contra os imigrantes, etc) já estão sendo tocados e interferindo nas agendas políticas de vários países europeus de uma maneira (onde a direita se tornou governo) ou de outra (onde a direita atua como principal força de oposição).

No Brasil, entretanto, a barbárie chegou bem antes. Ela começou a destruir o sistema constitucional do nosso país 1 ano depois de Edgar Morin publicar seu livro na Europa e 3 anos antes dele chegar ao Brasil. Isso ocorreu em 2006, quando o PGR apresentou a denúncia do Mensalão fundamentando a acusação em acusações jornalísticas e ilações sofisticadas que podem ser consideradas uma antecipação da síntese dos novos princípios anticonstitucionais do Direito Penal que foi feita por Deltan Dellagnol quando ele acusou publicamente Lula de ter recebido o Triplex “…não temos provas, mas temos convicção”.

A convicção acerca da culpabilidade do acusado foi o principal instrumento cognitivo empregado por Luiz Fux para condenar José Dirceu porque o réu não provou sua inocência. Entretanto, a substituição do princípio da presunção de inocência pelo da presunção de culpa não justificaria apenas o sacrifício ritual do Ministro-Chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff. A acusação e condenação de Lula porque uma construtora teria lhe atribuído o Triplex (caso único de condenação de alguém por causa de um ato unilateral que foi praticado por terceiro) ocorreu mesmo existindo provas testemunhas e documentais de que o ex-presidente não recebeu a posse ou a propriedade do imóvel.

O Impeachment fraudulento da presidenta Dilma Rousseff também se tornou possível porque, apoiado pela imprensa, o Congresso Nacional presumiu que ela havia cometido crime de responsabilidade. Quando a própria acusação faz presumir a culpa do réu, como tem ocorrido no Brasil desde o Mensalão, o direito de defesa já se tornou um simulacro. Mesmo assim, o defensor de Dilma Rousseff tudo fez para desmascarar a fraude no momento em que ela era construída e consumada.

O fato da presidenta petista não ter praticado qualquer conduta criminosa (algo reconhecido depois pelo Poder Judiciário) foi e continua sendo irrelevante. A imprensa brasileira continua insistindo que em 2016 não ocorreu um golpe de estado (como se o nome arbitrariamente dado ao episódio fosse mais importante do que sua essência).

No momento em que a Europa começa a mergulhar na barbárie – saindo do oásis em que se encontrava em 2005 – o Brasil reafirma sua vocação para produzir cadáveres em virtude das tendências autoritárias que sempre estiveram presentes e/ou latentes na sociedade brasileira. Não somos europeus, não somos índios, não somos negros, somos a negação da negação de qualquer civilidade. A barbárie tem estado presente no cotidiano brasileiro desde que Tomé de Sousa chegou ao Brasil em 1549 e mandou despedaçar alguns índios na boca do canhão. A degola dos negros no quilombo dos Palmares em 1694 tem sido reencenada diariamente nas favelas cariocas a mando de Wilson Witzel, governador que autorizou os policiais a “mirar na cabecinha… e fogo.”

Os varões da direita brasileira sempre fazem carrancas sérias quando acusam Lenin de ter assinado sentenças de morte em branco durante o período da guerra civil que ocorreu depois do sucesso da revolução russa. Mas eles ficaram felizes e sorriram quando observaram Sérgio Moro apresentar um Projeto de Lei autorizando policiais a matar impunemente suspeitos sempre que se sentirem ameaçados e Wilson Witzel proferir uma sentença genérica de morte revogando a proibição constitucional da pena de morte. Ao que parece eles não são apenas hipócritas e sádicos. Eles também são ignorantes: o direito de matar não vai nunca vai inocentar genocidas.

A destruição criativa dos princípios constitucionais do Direito Penal estão ganhando contornos mais dramáticos após a eleição e posse do “pedagogo do assassinato”. Agora, com ajuda da AGU, Bolsonaro quer criminalizar a autonomia universitária e a liberdade pedagógica. Os professores não podem ter liberdade de consciência e de expressão. A polícia deve frequentar as universidades para fiscalizar atividades subversivas dos mestres e alunos.

Consultei com calma a CF/88 e a Lei Complementar 73/1993. Não me parece que a AGU possa ser transformada numa “correia de transmissão ideológica” das ilegalidades e inconstitucionalidades pretendidas por um presidente fascista. Confesso, porém, que esta observação é irrelevante. Nesse momento em que defender a legalidade se tornou um ato revolucionário – como disse o professor Afrânio Jardim – é inútil tentar restabelecer o funcionamento normal de instituições que foram capturadas por facínoras para instrumentalizam a barbárie “…por trás das próprias estratégias que supostamente se opõe a ela.”

A ruptura de um regime constitucional democrático pode ser lento ou gradual, mas o resultado nunca é isento de dor. A destruição da nova ditadura também poderá deixar de provocar consequências dolorosas para os promotores, procuradores, advogados gerais da união e juízes que se tornaram bárbaros bem remunerados.

Uma jornalista veterana cuja família foi destroçada pela Ditadura Militar sintetizou bem o que está ocorrendo:

“Na ditadura foi assim. Depois começaram a controlar o conteúdo das aulas. Infiltraram dedos duros nos campi, demitiram e prenderam professores, proibiram estudantes de irem às escolas, os prenderam, torturaram e mataram.”

A barbárie praticada pelos tiranos fardados entre 1964 e 1985 chegou a ser reconhecida pelo Estado. Mas o resultado do trabalho da Comissão da Verdade não acarretou a punição de ninguém. Desde 2010 as autoridades brasileiras ignoram a sentença da Comissão de Direitos Humanos da OEA condenando o Brasil a revisar a Lei de Anistia para possibilitar a responsabilização dos policiais e militares que cometeram crimes imprescritíveis. O STF acintosamente considerou válida uma anistia cujos efeitos não podem ser reconhecidos em nosso país por causa daquela decisão.

Nós sabemos o que ocorreu de 1964 a 1985. Muitos querem que tudo aquilo volte a ocorrer novamente. No Brasil os verdugos se apresentam como vítimas. Como são infelizes os policiais e militares que não podem perseguir, torturar e matar como no passado… A civilidade imposta pela CF/88 é um entrave que vem sendo removido lentamente, pedaço por pedaço, desde o julgamento do mensalão. Não por acaso alguns juízes já começaram a tratar os advogados como se fossem criminosos porque eles ousam defender seus clientes.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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