A frágil empatia do Fantástico show da prisão, por Luís Carlos Valois

A empatia é um investimento onde estão incluídos carne, osso, dor e decepção.

A frágil empatia do Fantástico show da prisão

por Luís Carlos Valois

Quando escrevi aqui, neste mesmo espaço, sobre a matéria do Fantástico a respeito das mulheres trans encarceradas, dizendo o quanto o programa de TV havia romantizado a prisão, sendo um desserviço mesmo para milhares de mulheres nas mesmas condições, muitas pessoas alegaram que o mérito da matéria era causar empatia para com essas mulheres, pois dificilmente são enxergadas.

Logo em seguida, a matéria ganhou mais repercussão, uma das presas, a que recebeu o abraço carinhoso de Drauzio Varella, passou a receber milhares de cartas de solidariedade frente ao seu abandono no cárcere. Aparentemente, eu estava errado, mas não demorou também para alguém ir procurar saber o crime que aquela mulher tinha cometido, pois, afinal, parece óbvio, se uma pessoa está presa ao menos acusada de um crime ela deve ter sido.

Reviravolta, o ódio retorna ao seu lugar. A solidariedade, a empatia, some para dar lugar ao rancor tão presente ultimamente. O certo é que não adianta querer ou propagar empatia por outro ser humano se essa empatia está vinculada à doce ilusão de um ser humano só imagem, sem erros, sem história. A empatia é um investimento onde estão incluídos carne, osso, dor e decepção.

E mais, no caso da matéria em questão, estamos falando de um assunto dos mais delicados: a prisão; esse depósito de ódio, erros, violência e morte, reflexo de todos nós sociedade, um barril de pólvoras de sentimentos, principalmente os piores entre nós seres humanos, não só de quem olha a prisão de fora, mas também entre os que a habitam.

A solidariedade àquela mulher trans se transformou em ódio e é bem capaz que se transforme também em perigo de morte, porque o preconceito e o estigma nós já sabemos que vai agravar. Perigo de morte que não é só no começo do encarceramento que essas mulheres sofrem, como pretendeu mostrar a matéria, perigo de morte sofrido por 99% delas durante toda a pena.

Mostrar a prisão como algo inclusivo foi um erro, porque isso é tudo que ela não é, a não ser que estejamos falando de inclusão nas facções. Dizer que uma pessoa prefere ficar presa a ser solta também foi fantasioso, verdadeiramente fantástico, mas distante da verdade.

O que eu defendi, e defendo, é que a prisão seja vista e abordada sempre como instituição do Estado que deve cumprir a lei, coisa evidente, mas que a prisão não faz. Há uma Lei de Execução Penal, a Lei 7.210/84, reformada recentemente, mas que em cada uma de suas páginas há pelo menos um artigo que não é cumprido. Ou seja, a lei que prevê a própria prisão é violada constantemente, razão pela qual venho repetindo: toda prisão no Brasil é ilegal.

A matéria do Fantástico passa ao largo dessa questão, aliás, camufla, disfarça a ilegalidade diária e evidente do cárcere. Claro que a questão trans é muito importante, mas nunca podiam abordá-la, como se diz normalmente, passando o pano na prisão. Se a sociedade é homofóbica, a prisão é triplamente homofóbica, pois ela, a prisão, é o reflexo da sociedade, um reflexo sempre distorcido para pior.

Aparentemente o que se quis foi demonstrar o abandono social a que estão submetidas aquelas mulheres, mas o abandono do Estado, dentro e fora da prisão, é um dos motivos desse abandono social, porque deveria ser o Estado, dentro e fora da prisão, o primeiro a promover o respeito e a inclusão dessas mulheres.

O tratamento hormonal negado àquelas mulheres, por exemplo, mas em nada criticado no Fantástico show da prisão, é garantido pelo SUS, sendo recomendado pelo Conselho Federal de Medicina pela Resolução CFM 2.265/2019, portanto obrigatório seja na prisão, seja em meio livre.

Não sei se é verdade ou mentira o que estão divulgando sobre os crimes cometidos por aquela mulher trans abraçada pelo médico. Ele, o médico, divulgou uma nota dizendo que essa questão não lhe interessava, pois, afinal, ele é médico e não juiz.

Ora, se aquela mulher já está presa, condenada, já há uma pena pelo que ela teria cometido, o fato já punido não interessa nem ao médico e nem ao juiz. Esse é um princípio básico de execução penal, o crime se transforma na pena, é a pena que é executada. Se todas as vezes que se tratasse de um direito de um preso condenado fossemos procurar saber sobre o seu crime, ele seria punido duas, três, quatro, dez vezes pelo mesmo crime cometido, o que violaria princípios básicos de justiça.

Enfim, vincular o respeito ao encarcerado, seja que encarcerado for, à suposta empatia que ele possa produzir será sempre um erro, o respeito ao preso, seja que preso for, deve ser o respeito do cumprimento da lei, e para o preso basta o cumprimento da lei mesmo, o que invariavelmente não acontece.

Há uma lei de execução penal no Brasil e ela é violada todo dia!

Luís Carlos Valois – Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal pela USP, pós-doutorando na Alemanha.

 

 

Leia também: Mulheres trans no Fantástico show da prisão, por Luís Carlos Valois

Mulheres trans no Fantástico show da prisão, por Luís Carlos Valois

Redação

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O problema maior foi justamente o crime hediondo cometido, contra uma criança (que não negaram até o momento). A produção errou e muito nesta questão. Poderia ter selecionado presas trans acusadas de furto, tráfico ou mesmo assalto mas, jamais, crime que terminou em morte. Se já são excluídas diariamente no convívio social devido à sexualidade, mais ainda seriam, como bem alertou o autor, em caso de crime e pior, crime de morte.

    1. Quando Bolsonaro exaltou o Stroessner, sequestrador e estuprador em série de crianças, essa mesma turba passou pano pro ocorrido, agora querem impor seu moralismo de quinta categoria à Rede Globo? A emissora sabidamente imoral que ataca trabalhadoras e trabalhadores dia e noite em toda a sua programação? Não passa de reflexo lacrador de direita.

  2. Existem crimes e crimes.
    É motivo de escárnio a matéria vir e dizer que “se uma pessoa está presa ao menos acusada de um crime ela deve ter sido” quando se trata de um crime hediondo e abjeto contra uma criança de apenas 9 anos. Desculpe, existem coisas que não existe empatia e nem perdão.

  3. As pessoas poderiam pelo menos procurar saber o porquê que a pessoa está presa, o que ela fez, e por que que a própria família abandonou?
    Aos olhos da mídias todos são inocentes.

  4. Se nem aqui houve entendimento sobre o que escreveu o juiz Valois é que a coisa la fora esta bem ruim, mesmo. Mas continuamos escrevendo e explicando, que ha ainda portas de saida!

  5. O neonazismo atual que é muito bem representado pelo Bolso e demais tem uma relação simbiótica com a não esperada alienação dos progressistas. Apoio a um pedófilo assassino (coitado) por ser homossexual.

  6. Muitos magistrados deveriam ler seus posicionamentos e buscar se adequar, não porque vossa excelência é intelectual e dotado de títulos, mas sim, porque desenvolve um posicionamento justo, garantista e legalista. Nós operadores do direito, devemos vestir a camisa da justiça, das garantias e da legalidade, não fazer como muitos que vestem a camisa da acusação (MP), da defesa (OAB) e da condenação (juiz). O direito não comporta erros, vitimismo e ideologias religiosas, o direito comporta tão somente a aplicação da lei e seu respeito, mesmo que divergente do posicionamento empírico daqueles que operam a lei.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador