A identidade, as experiências negras e a alma que sangra, por Kiusam de Oliveira

A "cauterização das experiências negras" acontece quando abrem uma ferida em nosso corpo e ele sangra ainda que por dentro: sangra porque corpo e alma estão dilacerados.

A identidade, as experiências negras e a alma que sangra

por Kiusam de Oliveira

Em minha dissertação e tese trabalho um conceito criado por mim “cauterização das experiências negras” (2001). O que é? Quando nos movemos autonomamente não faltam brancos que tentarão nos colocar, na fala deles, em nossos “devidos lugares” porque numa sociedade racista, como é a nossa, eles ainda se acham proprietários de nossos corpos, mediante de um processo de abolição que eu acredito ainda não ter acontecido.  Para isso, agem de forma violenta para nos tirar o chão ou dificultar qualquer forma de reação no momento da agressão. São cruéis e o cinismo com o qual recobrem tal violência, torna-se mais cruel ainda. Na minha lógica, a abolição tal e qual se deu também deveria ser considerada um crime de lesa humanidade, como a escravidão é considerada, afinal a lei áurea tratou quase 400 anos de escravidão com apenas dois artigos: 1) Está extinta a escravidão no Brasil; 2) Revogam-se as disposições em contrário.

Na época, ninguém pensou em como seria o 14 de maio para quase 20 milhões de pretos. Sem dinheiro, o que fariam? Onde morariam? Quem daria emprego para eles? Não se pensou em políticas públicas para a inserção dos negros na sociedade brasileira. Um crime, como eu disse, de lesa humanidade. Assim, o branco trata nosso corpo ainda dentro do conceito de posse e é por isso que, por exemplo, alguns professores insistem em achar que podem mandar nos corpos negros ditando o comprimento do penteado Black Power; também é por isso que os/as policiais zoam nossos penteados crespos e/ou trançados: sim, zoam, chutam, socam e expõem nossos filhos, primos, sobrinhos, tios, pais, avôs sem o menor constrangimento.

A “cauterização das experiências negras” acontece quando abrem uma ferida em nosso corpo e ele sangra ainda que por dentro: sangra porque corpo e alma estão dilacerados. Para estancar o sangue, pegam um ferro quente e o coloca sobre a ferida. E o ferro quente queima a pele estancando o sangue e com esse trauma, a ferida fecha. “Chora para dentro, rapaz”. Por fora, vai parecer que tudo está sob controle e com o tempo até cicatriza, mas por dentro… Afirmo, então, que por dentro tudo está como um vulcão que engole a lava: o que não impedirá que várias implosões aconteçam.

Notório é que esse jovem precisa ser salvo, pois ele guardou a lava quente dentro do vulcão que é o próprio corpo que acabou de passar por um trauma irreparável. Temo que esse jovem de 16 anos imploda até desaparecer. Ele decidiu que vai cortar o cabelo e a mãe o apoiou. Para mim, será a forma mais rápida dele desaparecer, apagar a sua identidade, sua semelhança conosco, negras e negros que resistimos e nos reconhecemos também enquanto grupo. Ele aprendeu que RESISTIR É PERIGOSO, foi “cauterizado”.  Somos muitos em movimento, em ação e podemos mostrar para ele que, apesar de tudo, preservar nossas raízes é o que nos mantém vivos, de pé caminhando com dignidade.

Ele precisa ser salvo. Eu preciso ser salva. Nós precisamos ser salvos. Nossa autoestima precisa ser resgatada de qualquer forma.

Fatos assim não devem continuar acontecendo com nossos meninos, jovens e homens negros. Nosso homem preto amadurece precisando de apoio, envelhece sem lidar bem com o AMOR e isso é fruto de todo desamor que vive e viveu em sua vida desde a escravidão. Nós carregamos crenças que nos impedem de ser feliz e, com o homem negro não é diferente e tudo isso ocorre no nível de DNA e ferramentas como o Thetahealing é capaz de promover a cura no nível histórico, ancestral. O homem negro necessita de apoio, mas não só. Nós, mulheres negras, temos de lidar constantemente com as rejeições, medos, complexos. Defrontamo-nos com homens negros mais fragmentados que nós, sem compreender ou mergulhar em suas emoções, de fato. Ainda que recolhessem nossos cacos, está para nós o olhar cuidadoso para nossos meninos e jovens negros. Todos eles.

Esse jovem que passou por tal violência racista foi “cauterizado” e o policial que fez isso foi a mão do Estado, mais uma vez. Esse jovem necessita de apoio psicológico intensivo e para já, bancado pela PM, pelo governo do Estado.

Uma pergunta não sai da minha cabeça: Podemos processar o Estado e/ou as instituições juntando dados estatísticos, provas, conteúdo das ouvidorias, enfim, todos os dados que estão publicitados, por conta destas ações recorrentes?

A lucidez que ainda busco preservar mediante o caos que vivemos, aponta-me a necessidade de caminhos coletivos para os embates e reivindicações. Só assim estaremos a salvo de tanta hipocrisia.

Redação

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