A reindustrialização como necessidade civilizatória, por Marcio Meira e Juliane Furno

Na periferia capitalista, o processo de desindustrialização ocorreu de forma precoce, antes que se generalizasse os bens típicos da Revolução Industrial

Crédito: Divulgação/ Governo do Espírito Santo

A reindustrialização como necessidade civilizatória

Marcio Meira e Juliane Furno

Recentemente houve o anúncio, por parte do Governo Federal, da nova política industrial brasileira, a chamada Nova Indústria Brasil. O debate acalorado caminhou por muitas avenidas. Há aqueles que são mais temerários do passado recente do que esperançosos com o futuro próximo. Há, por outro lado, os esperançosos e prenhes de futuros após o desmonte da indústria do passado recente. Nessa contenda de opiniões subjaz um conflito de visão de sociedade, muito mais complexo do que sobre o melhor “desenho” de política industrial ou mesmo de elementos adjacentes como o quantum de subsídios/subvenções. 

A reindustrialização, ou a neoindustrialização, é uma necessidade civilizatória, sobretudo na periferia capitalista, onde o processo de desindustrialização ocorreu de forma precoce, antes mesmo que se generalizasse os bens típicos da primeira Revolução Industrial ou do surgimento do capitalismo. Além disso, em face ao drama civilizatório que é compreendido pelo prisma do divórcio litigioso do Homem com a Natureza, a questão ambiental exige tratamento célere e a passos firmes, o que – paradoxalmente – envolve “mais” e não “menos” indústria, ainda que seja uma indústria de outro tipo. É somente a indústria, em uma concepção alargada, que será capaz de gerar os ganhos de escala e eficiência necessários para que sigamos produzindo o necessário para a reprodução das nossas próprias vidas com menos energia e menos recursos naturais, preservando florestas, solos e águas. 

Em que pese esse preâmbulo, o que queremos apontar nesse texto é que a industrialização nacional forjou mais do que as bases para a constituição de um capitalismo com dinamismo próprio, mas uma sociedade progressiva, que vê surgir a grande empresa e, paralelamente, a moderna classe trabalhadora urbana e industrial, prenhe de contradições corporificada nas greves, na criação de organizações sindicais e populares. A presença não somente da grande indústria, mas que o processo de industrialização organiza mais do que a estrutura produtiva, ele dá corpo a uma estrutura social correspondente.

De forma distinta, do processo de colonização até a Revolução de 1930, a economia e sociedade brasileira sustentavam-se em bases agrárias e minerais. Em visão panorâmica, o açúcar, o ouro, o café e a borracha, até o início do século XX, eram os produtos – majoritariamente – que engendravam a riqueza nacional. A contraparte social e política dessa economia exportadora de matérias primas naturais foi o regime escravista e o sistema de dívidas dos trabalhadores na Amazônia gomífera. A representação política e cultural que emanava dessa base econômica foi, desde o sistema colonial, marcada pelas oligarquias que definiam os líderes políticos do país, os quais garantiram a continuidade do status quo selado tanto no regime escravista, como também do patrimonialismo patriarcal que persistiu hegemônico no Brasil, pelo menos até a década de 1930.

O que mudou a partir de então? A industrialização e urbanização do país.

Esses dois fenômenos fizeram emergir duas forças sociopolíticas:  os industriais e as classes trabalhadoras modernas. Ou seja, a tortuosa “modernização” do Brasil depois deveu-se ao fortalecimento desse campo socioeconômico e cultural baseado na indústria. Embora com contradições, foi a hegemonia dessas forças sociais e políticas que finalmente, no limiar dos anos 1980, promoveu a redemocratização do país, com a promulgação da Constituição cidadã de 1988. As elites nacionais, favorecidas pelo processo de concentração de renda e riqueza fortalecidas com uma industrialização que não veio acompanhada das reformas de base, provinham do setor industrial e coesionavam-se em uma bandeira de Estado forte para acumulação em bases industriais. 

Nas últimas duas décadas, porém, desde a emergência do capitalismo neoliberal como a face que organiza o novo regime de acumulação global, observamos o retorno a um padrão de exportação com uma pauta de especialização regressiva do ponto de vista da agregação de valor, voltando a predominar a venda de matérias primas como principal eixo dinâmico da economia brasileira.

Essa mudança trouxe repercussões regressivas (no sentido de volta ao passado pré-industrialização dos anos 1930) na esfera da política e da sociedade, que certamente tem influenciado de forma significativa a retomada do poder político pela extrema direita, que se refletiu, inclusive, na composição cada vez mais conservadora do Congresso Nacional desde pelo menos 2014. 

A desindustrialização levou à diminuição das forças políticas dos industriais e das classes trabalhadoras modernas, que constituem as duas faces de uma modernização industrial possível no Brasil, inclusive com importantes reverberações de caráter cultural e ambiental. Por outro lado, uma parte significativa da elite agroexportadora, que retomou as rédeas do poder político e cultural de parte importante do país, principalmente nas regiões interioranas do Brasil, representa um retrocesso sociocultural e ambiental. 

A repercussão de um novo plano de reindustrialização do país, deve ser visto também por esse prisma de longo prazo, o de grandes transformações exigidas pelas emergências que se avizinham no futuro não tão distante, marcadas pelos desafios climáticos e civilizacionais de uma país tão marcado pelas desigualdades como é o Brasil.

O processo político, cultural e produtivo do qual Lula e outras grandes figuras da política brasileira são filhos diretos, agoniza perante um novo Brasil em que as novas elites e os “novos ricos” são produtos do agronegócio. As regiões brasileiras que mais crescem pelo indicador do PIB são as localizadas no Centro Oeste, herdeiro da expansão da fronteira agrícola, agravadas pelos anos recentes. 

Dessa forma, as insistentes preocupações midiáticas com o retorno do “passado” miram no que veem e acertam no que não veem: miram nos governos petistas e nas diversas tentativas de soerguimento da economia brasileira, mas acertam no escasso medo do verdadeiro e temerário passado: aquele em que órfãos de indústria, nos mantínhamos reféns de uma dinâmica colonial, ainda que politicamente independentes, profundamente vulneráveis à dinâmica cíclica do comércio internacional; incapazes de criarmos uma sociedade de elevada renda média; carentes de empregos típicos de classe média; com incertezas crônicas no balanço de pagamento e restrições externas de toda ordem.

Precisamos voltar ao passado, mas aquele passado que porta futuro. Na verdade, precisamos nos haver com o passado. Nos darmos uma segunda chance para retomar a capacidade de selar um casamento harmônico entre a industrialização e as demandas sociais e ambientais, o que parece estar em sintonia com a Nova Política Industrial, uma vez que o programa não se constitui mais pelo clássico mecanismo de foco em “setores” produtivos mas, sim, em missões sociais, nas quais a indústria deixa de ser “fim” e passa a ser “meio”, enquanto o fim é a universalização do saneamento, a melhoria do sistema de saúde, o fortalecimento dos sistemas agroalimentares, o alargamento das margens de soberania interna com proteção do meio ambiente. 

Marcio Meira e Juliane Furno são Assessores da Presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

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