A tentação do câmbio, por Marcelo Miterhof

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

A tentação do câmbio, por Marcelo Miterhof

A atração de capitais com juros altos faz voltar pressões de revalorização do câmbio

O câmbio, alimentado pela crise política, teve forte desvalorização desde fevereiro. O aparente estancamento nesta semana favorece uma avaliação mais estrutural a partir das perspectivas do balanço de pagamentos.

Nesse sentido, é proveitoso o texto do professor da Unicamp André Biancarelli “Constrangimentos externos, de natureza financeira, ao desenvolvimento: um olhar dissidente sobre o Brasil no período pós-bonança”, que em breve será publicado pelo CGEE (Centro de Gestão de Estudos Estratégicos).

O saldo em transações correntes vem tendo deterioração em etapas. Depois de apresentar raros superavit em meados da década passada, teve no início do decênio deficit de 2% do PIB, que, mesmo com a economia estagnada, subiu para 4,2% em 2014, nem tão distante dos quase 5% registrados em 1999 e 2002.

O saldo comercial é a principal explicação: depois de chegar a um superavit de 5% do PIB, tornou-se levemente deficitário no ano passado.

As principais razões para essa trajetória foram: a queda dos preços das commodities de exportação (o risco de ter uma pauta concentrada), as dificuldades de Argentina e Venezuela (grandes compradores de manufaturados brasileiros), a queda da produção local de petróleo (em reversão), a agressividade comercial chinesa após a eclosão da crise financeira internacional, o esvaziamento das cadeias da indústria de transformação, entre outras coisas.

Exceto pelos dois últimos motivos, esse quadro mostra que a depreciação tem baixo impacto no saldo comercial.

O câmbio é uma tentação para países em desenvolvimento. Sua valorização só traz facilidade a curto prazo: a inflação cai, as possibilidades de consumo se ampliam, viajar pelo mundo fica mais fácil etc.

A longo prazo, o problema é que a apreciação vem da abundância de recursos naturais (“doença holandesa”): isso reduz a diversificação da estrutura produtiva e da pauta de exportações, limitando a capacidade de promover o crescimento, cujos estímulos internos vazam para as importações. Além disso, o câmbio favorável é necessário, mas insuficiente, para garantir o adensamento produtivo e tecnológico, que também exige política industrial.

O balanço entre benefícios e custos de curto e longo prazos é dificultado porque o processo de depreciação é dolorido e mal dividido, sobrecarregando os trabalhadores. Além de ter efeitos imediatos opostos aos da valorização, a tentativa de contrabalançar o choque de custos o torna recessivo.

A desvalorização costuma vir somente à força, como aconteceu em 1999 e 2002.

Mas a abundância de recursos naturais e a atração de capitais com juros altos fazem voltar pressões de revalorização. Nesse sentido, é relevante a avaliação do autor de que o país não deverá ter dificuldade para financiar o deficit externo.

Uma razão é que a economia brasileira está mais preparada para turbulências. Houve uma significativa redução do endividamento externo: de 42% do PIB em 2002 para 15% recentemente. Biancarelli também aponta a queda dos passivos externos denominados em dólar. Quase dois terços dos compromissos de carteira (ações e títulos de renda fixa) são em real, ante 8% de 2002.

Isso ocorreu graças à valorização cambial prolongada, que ofereceu aos estrangeiros ganhos adicionais ao aplicar em reais (de 2012 a 2014, a depreciação real de 50% fez o passivo externo em dólar recuperar parte de sua participação no total).

Boa parte do risco está agora com os credores, que numa saída de capital em massa arcam com a queda de preços dos títulos e com a depreciação cambial, murchando o passivo em escala muito maior que a fuga de capitais, como houve em 2008.

O autor ressalta que a desdolarização do passivo externo precisa ser mais estudada, mas parece explicar a maior capacidade da economia de conviver com deficit em conta-corrente. As contas externas tendem a não mais levar a depreciações descontroladas, em que o descasamento de moedas leva a crises bancárias (que no Brasil costumam ser estatizadas), como nos anos 1980 e no final dos 1990.

A notícia é boa, claro. Porém, no campo produtivo, aumenta a atenção para, passadas as trovoadas, evitar a revalorização cambial. Afinal, a melhor maneira de desvalorizar é não deixar apreciar. O diabo é lembrar Oscar Wilde: “O único jeito de se livrar de uma tentação é ceder”.

MARCELO MITERHOF, 40, é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco. Escreve às quintas-feiras nesta coluna.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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