Alimentando o racismo e o nacionalismo, por Arnaldo Cardoso

Na evolução do carnaval ao longo dos tempos, as crises políticas e sociais passaram a ganhar cada vez maior espaço nesses festejos e, no de 2019, os registros deixados são eloquentes do nosso tempo

Carnaval de Dusseldorf
Alimentando o racismo e o nacionalismo
por *Arnaldo Cardoso

O carnaval como festa popular é expressão da cultura local, da história de cada povo, mas em todos os lugares mantém seu espírito comum de exaltação da liberdade e igualdade, de abolição de hierarquias, de confronto de tabus e regras sociais que perpetuam status quo de desigualdades.

Em estudos sobre as origens e evolução do carnaval, é sempre reconhecida a influência italiana que remonta aos bailes de máscaras de Veneza no século XIII e, posteriormente, a Commedia dell’Arte dos séculos XVI à XVIII donde surgiram personagens como o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, o Pierrot, entre outras.

Na evolução do carnaval ao longo dos tempos, as crises políticas e sociais passaram a ganhar cada vez maior espaço nesses festejos e, no de 2019, os registros deixados são eloquentes do nosso tempo.

Na Itália, o “grito de carnaval” neste ano foi dado no sábado (2) em Milão, numa animada manifestação política de protesto contra o governo de extrema-direita que chegou ao poder através de eleição ocorrida exatamente há um ano, sendo este o primeiro carnaval sob o governo Salvini-Di Maio. Cerca de 200 mil pessoas percorreram ruas da cidade e se concentraram em frente a Catedral de Milão embalados pelo lema “Prima le persone” (as pessoas primeiro), em oposição ao lema amplamente utilizado por Salvini “Prima gli Italiani” (primeiro os italianos) de forte apelo anti-imigração.

E foi sobre a política italiana, com foco em Salvini, que se viu a mais emblemática manifestação crítica no carnaval de 2019 na Europa. Foi no carnaval de rua de Dusseldorf, importante cidade alemã que se notabiliza pela concentração de empresas do setor financeiro e de telecomunicações, onde o carnaval também se destaca e é tido como o mais politizado do país, que o líder da extrema-direita italiana e propagandista anti-europeísta foi nominalmente satirizado.

Rodeado por muitos foliões, um carro alegórico ostentando um boneco de Matteo Salvini concentrou atenções e ganhou destaque em jornais de toda a Europa além de viralizar na internet.

O politico italiano foi retratado com enormes seios amamentando dois bebês com as inscrições “Racismo” na testa de um e “Nacionalismo” na do outro. E os detalhes como uma tatuagem de um coração com a palavra máfia no ombro esquerdo de Salvini e bandeiras em suas mãos com a inscrição “Brutta Itália” completaram o triste quadro. Sobre o significado e alcance mais amplos dessa crítica ocorrida num outro país, é importante lembrar que Matteo Salvini está engajado em um movimento político para levar a extrema direita e o populismo a uma vitória inédita nas eleições para o Parlamento Europeu em maio próximo.

Também significativo foi o fato de Salvini, que chegou ao poder através de uma violenta e suja campanha eleitoral servindo-se das redes sociais para instigar ódio e preconceito e dividir a sociedade, ter postado em sua conta no twitter a foto do horrendo boneco que muito mal-estar provocou em parte da sociedade, adicionando um emoji de riso. Poucas horas depois do post de Salvini, o mesmo contava com 3.690 curtidas e 805 compartilhamentos, além de muitos comentários, sendo a maioria de seus seguidores minimizando o teor da crítica ao ministro, contra atacando e manifestando apoio ao político. Salvini mantém atividade cotidiana em sua conta no twitter, aberta em 2011, que conta com 997 mil seguidores e, através da qual, alimenta sua comunicação “direta com o povo” apostando na fórmula que lhe ajudou a chegar ao poder, agora como ferramenta para governar.

No Brasil o carnaval também foi marcado por numerosas manifestações de crítica política por todo o país, marcadamente contra o atual governo de extrema-direita que assumiu o poder há dois meses. Ratazanas com faixa presidencial, sambas com letras críticas a discriminação, racismo, ataque aos direitos humanos, misoginia, homofobia, além de variadas homenagens a vereadora e militante pelos direitos humanos Marielle Franco assassinada há um ano, e cujos assassinos ainda estão soltos, foram algumas das simbólicas expressões do carnaval.

O carnaval brasileiro que sempre recebeu atenção de jornais pelo mundo, neste ano recebeu um olhar diferente por ser o primeiro sob o novo governo que tanta inquietude tem provocado no país e pelo mundo afora dado sua identidade explicitamente autoritária e pelos já vários escândalos que protagonizou em tão pouco tempo e pelos que ainda se desdobrarão de investigações em curso envolvendo vários de seus membros.

Diante desses registros eloquentes de um estado de coisas na Itália e no Brasil, somos levados a reconhecer traços inconvenientes de semelhanças ainda que com um mundo de diferenças. Dos laços culturais históricos que mantemos com os italianos, marcados por significativas contribuições no passado de modernização política e econômica do Brasil, e através de seus enormes contingentes de imigrantes, é lastimável que o que nos aproxime hoje sejam apostas em respostas equivocadas para crises políticas e econômicas.

Na quarta-feira de cinzas no Brasil, depois de um post feito na noite anterior pelo presidente da República, outro traço de semelhança pode ser invocado para uma avaliação do cotidiano político dos dois países. Utilizando de sua conta no twitter, que conta com 3,5 milhões de seguidores, para reagir por meio de contra-ataque às numerosas manifestações críticas ao seu governo realizadas durante o carnaval, o presidente postou vídeo com conteúdo impróprio, revelando gritante falta de compreensão das responsabilidades e significados do cargo que ocupa.

Tanto na Itália quanto no Brasil os atuais governantes parecem desconhecer os conselhos do sagaz pensador político florentino Nicolau Maquiavel que alertam sobre as dificuldades para bem governar e manter-se no poder, bastante diferentes daquelas enfrentadas para a conquista do poder.

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*Arnaldo Cardoso é cientista político, pesquisador e professor universitário.

 

Redação

1 Comentário

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  1. Excelente Arnaldo! Gostei muito da reflexão e do paralelo trazido entre a Itália e Brasil. As semelhanças são tantas, que não dá para deixar de acreditar em um movimento orquestrado, algo e global…
    Ao mesmo tempo, será que o alerta de Maquiavel trazida no final do texto (…) “as dificuldades para bem governar e manter-se no poder, bastante diferentes daquelas enfrentadas para a conquista do poder.” é a que devemos guardar da reflexão? Pergunto, pois nos leva a crer que há um erro na estratégia de ambos, mas me questiono se não somos nós no campo progressista que estamos perdendo as batalhas, usando fórmulas de reflexão e análise que não conta de entender o “sucesso” de uma nova maneria de conduzir o embate.

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