Anti-intelectualismo: o empobrecimento do discurso e o governo da vontade, por Nathália Meneghine dos S. Rodrigues

Necessário grifar que estratégias antidemocráticas, como a do anti-intelectualismo, têm aderência num cenário onde condições históricas específicas foram, anteriormente, estabelecidas.

Anti-intelectualismo: o empobrecimento do discurso e o governo da vontade

 por Nathália Meneghine dos S. Rodrigues

Não é segredo para ninguém os ataques que escolas e Universidades Públicas vêm sofrendo nos últimos anos, mais especificamente, podemos usar o ano 2004 como o ano em que esse ataque ganha corpo, através da criação do Movimento Escola Sem Partido[1], que em 2015 se desdobrou em um Projeto de Lei. No entanto, não é óbvio na mesma medida, que não se trata de um fenômeno aleatório, nem mesmo que não se limita ao Brasil. Ao contrário, vários países do mundo, têm atravessado cenários de ataques a Educação e seus agentes, com métodos e discursos semelhantes.

Necessário grifar que estratégias antidemocráticas, como a do anti-intelectualismo, têm aderência num cenário onde condições históricas específicas foram, anteriormente, estabelecidas. Minar a realidade com teorias da conspiração e notícias falsas, fazem parte da “preparação desse terreno”.

Escolhemos tratar aqui do anti-intelectualismo, não só pela experimentação diária que vivenciamos do mesmo no Brasil atual, como pela especificidade de seu efeito de destruição, que incide sobre a Educação e a Linguagem, dois terrenos muito caros para qualquer sociedade que se pretenda, de fato, democrática.

Sendo assim, torna-se inevitável nos interrogarmos sobre as origens, extensão, e, sobretudo, do que se trata isso, que quer parecer aleatório e ‘fruto natural’ de reflexões de uma parcela da sociedade. Analisar e contextualizar as entranhas desses ataques, passa por desbastar os discursos, entender a estratégia, para que possamos – de uma melhor posição discursiva ou, ao menos, mais avisados – lidar com eles.

Para os Governos de ultradireita, adeptos aos princípios antidemocráticos, a escola deve se ocupar apenas de transmitir aos alunos a cultura dominante e versões de um passado mítico, como via de sustentação do mito de nação gloriosa (ultranacionalista). Isso, exige, que não exista terreno disponível para relações dialógicas, alteridade ou especialistas (que podem desmascarar as versões míticas e parciais). Nem mesmo, pode haver uma linguagem suficientemente elaborada para representar a realidade e suas complexidades.

Ou seja, as instituições acadêmicas são visadas como engrenagens fundamentais para que as narrativas totalitárias possam se instalar e prosperar num país. Controlar o que nelas se transmite é tarefa de primeira ordem dos que abusam do poder. E solapar a credibilidade dessas instituições, faz parte da estratégia de conquistar esse controle.

Embora nos afete a situação do que se passa no Brasil, esses ataques à Educação e a Linguagem, vem acontecendo em muitos países também: EUA, Hungria e Turquia são alguns exemplos disso. A defesa da “terra plana” não é produto, exclusivamente, nacional!

Jason Stanley[2](2020) faz um apanhado interessante desses ataques pelo mundo afora, e não deixa dúvidas de que não são aleatórios, ao contrário, são bem estratégicos. Reza a cartilha ultranacionalista: questionar a credibilidade das instituições, atacar o ‘politicamente correto’, questionar a estabilidade institucional de professores (concursados), selecionar as disciplinas acadêmicas (estudos de gênero são sempre excluídos, pois conflitam com a ideologia patriarcal do Fascismo), dizer que se faz “doutrinação comunista” nessas instituições, menosprezar a Ciência.

Para melhor exemplificar, temos o governador republicano Pat McCrory, na Carolina do Norte/EUA, quem em 2010 se dedicou a atacar o trabalho da Universidade da Carolina do Norte, dizendo que lá promoviam “ideologias tóxicas”, e sugeriu que alguns cursos fossem excluídos do currículo público. Adivinhem quais? Sociologia, Filosofia…

Na Turquia, em 2016, o presidente Erdogan demitiu mais de cinco mil reitores e acadêmicos de Universidades turcas, por suspeita de sentimentos ‘pró-esquerdistas’.

Qualquer semelhança, não é mera coincidência!

O ataque a ciência e o desprezo aos especialistas merece especial atenção, sem precisarmos nos deter em exemplos dessa operação no Brasil, já que as condutas do atual Presidente frente a pandemia de COVID19, são abundantes no negacionismo e nas tentativas de investir descrédito no discurso científico.

O menosprezo pela expertise científica é típico do ultranacionalismo, pois ela poderia vir a contestar todo o deslocamento da verdade engendrado pela política autoritária. Vejam, as estratégias são articuladas e interdependentes. Para sustentar a estratégia do passado mítico, faz-se necessário sustentar o anti-intelectualismo, e assim por diante.

Por sua vez, o anti-intelectualismo precisa degradar não só a expertise da Ciência, mas também degradar a Linguagem.

A impressão que temos de um discurso ‘rasteiro’, por vezes confuso e desencadeado, sem fidelidade aos fatos, apelando para expressões ‘chulas’, também fazem parte dessa estratégia. Dessa forma, não se concede espaço para o debate sofisticado, nem ao contraditório.

Vale lembrar que Hitler preocupava-se, sobremaneira, com empobrecer o discurso público, chegando a escrever em Mein Kampf: “A capacidade receptiva das massas é muito limitada, e sua compreensão é pequena; por outro lado, elas têm um grande poder de esquecer. (…) pontos devem ser destacados na forma de slogans.”

Em última instância, o objetivo da oratória, na política autoritária, não é convencer o intelecto, mas influenciar a vontade! Governar a vontade de seu povo é o objetivo de todo líder autoritário (o caminho para a idealização do líder e formação da massa, tratamos em texto anterior[3]).

No entanto, por mais efeito massificante que tenha a estratégia do anti-intelectualismo, há escapatória, já que a vontade (essa tão cobiçada), no sujeito, pouco governa.

Não obstante, o discurso anti-intelectualismo pode ser escutado como denegatório, portanto, os ataques direcionados à Academia são, justamente, as provas de sua relevância na sociedade brasileira para fazer frente ao abismo do assujeitamento, que um governo autoritário pretende.

O filósofo Vladimir Safatle, em 2019, discursou numa Conferência[4] sobre o tema ‘A psicanálise como modelo de crítica à sujeição social’, e destacou a consideração aos processos de socialização do desejo que produz feridas subjetivas, e ratificam a clivagem do aparelho psíquico. Isto posto, as dinâmicas de resistência deverão operar no sujeito e seu inconsciente.

O sofrimento do sujeito, seu mal-estar, e sintomas, dão testemunho da anulação de sua divisão subjetiva, que a violência totalitária pretende.

A saída, façamos nossas apostas, se faz pela via desejante. Pois, o desejo, esse sim, é revolucionário! Pelo seu discurso transgressor, nos convoca a sair da série. Como tão bem cantou Chico Buarque, anda nas cabeças, nas bocas, nos becos, nas idéias, nas fantasias, e “não tem governo, nem nunca terá”!

Por isso mesmo, resistir ao assujeitamento, ao apagamento do campo do desejo, passa pela sustentação da divisão do sujeito, onde há abertura para sustentar uma recusa aos modos de expropriação pulsional da política ultraliberal.

A reorientação da dialética na sua potência crítica se faz possível nesse campo. Distinta do discurso anti-intelectualismo que quer fazer massa harmônica e dócil.

A angústia – afeto verdadeiro- frente o assujeitamento com que, através de suas estratégias, a política autoritária nos acena, pode veicular a potência transgressora do desejo.

Circula por aí: “Ninguém tem mais força que os descontentes.”

 

[1] Programa Escola sem Partido, ou apenas Escola sem Partido, é um movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam representar pais e estudantes contrários ao que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas. Ganhou notoriedade em 2015 desde que projetos de lei inspirados no movimento começaram a ser apresentados e debatidos em inúmeras câmaras municipais e assembleias legislativas pelo país, bem como no Congresso Nacional.

[2] Como funciona o fascismo: A política do ‘nós’ e ‘eles’/ Jason Stanley; tradução Bruno Alexander. – Porto Alegre (RS): L&PM, 2020.

[3] Notas sobre a aderência à propaganda antidemocrática. Disponível em: http://psicanalisedemocracia.com.br/2020/06/notas-sobre-a-aderencia-a-propaganda-antidemocratica-nathalia-meneghine-dos-s-rodrigues/

[4] Conferência de Vladimir Safatle – A psicanálise como modelo de crítica à sujeição social. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WFvU31VCpko.

Redação

2 Comentários

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  1. Safatle também afirmou que nenhum Governo nestes 40 anos de farsante Redemocracia quis destruir ou se apartar da NecroPolítica. E mais um Indiciamento e revelações a respeito de José Serra, seu AntiCapitalismo, seu Socialismo, seus discursos e obras dentro de UNE, a partir de USP, não passam desta Esquerdopatia que ainda ilude alguns. E produzem estes textos cheios de citações, mas vazios, vazios, vazios. Cada vez mais vazios, como o Deserto aonde ainda se prega para Doutrinados. Mas sabemos. Pode ter o Trump e toda aquela Xenofobia. Mas é tão bom viver de forma totalmente Capitalista na Europa e EUA !!! Ou toda Nossa Elite Socialista AntiCapitalista, Familias, Filhos, Netos, Pais,…já não estão lá? Entendi. Pobre país rico. Mas….

  2. Será que somos tão limpinhos assim?
    Me colocando como um intelectual, não por pretensão, mas sim para me colocar no meio do fogo que atirarei também contra mim, vamos a algumas observações sobre o anti-intelectualismo e a razões sólidas pela existência dele.
    Qualquer discurso não binário e complexo mostra que na sociedade brasileira assim como todas as sociedades capitalistas o capital que as classes opressoras utilizam para as várias formas de capital para perpetuar sua supremacia. Conforme a classificação de Pierre Bourdieu, o capital econômico (renda, salários, imóveis), o capital cultural, o capital social que permitem a troca de figurinhas entre grupos dominantes e por fim, o capital simbólico (prestígio e/ou honra).
    A classe intermediária, também chamada a pequena burguesia, como o capital econômico e o a sua participação no capital social é marginal, usa e abusa do capital cultural e algumas vezes do social e simbólico para afastar-se das classes que produzem, o proletariado e o proletariado lumpen.
    O discurso fascista clássico inaugurado por Filippo Marinetti no seu Manifesto Futurista, simplesmente nega o capital cultural acumulado pelas classes dominantes durante séculos, procurando uma estética que negava os museus, os quadros e a academia para fixar-se falsamente no discurso anti-intelectual.
    Esse modernismo que mais tarde vem revelar a sua verdadeira face fascista, é uma negação ao passado e não algo revolucionário que seria levar as classes proletárias ao conhecimento, mas pelo contrário, levá-las a negação e a ignorância programada. Muitos socialistas famosos caíram nesta esparrela e pensaram que simplesmente seria um discurso contra a cultura e gostos burgueses. Logo aqui se mostra duas saídas a contracultura de negação de qualquer valor existente que tem tudo para degringolar ao fascismo e a outra saída de uma nivelação por cima com toda a cultura adquirida por milênios de história, pois a cultura não deve ser um privilégio de classe.
    Pode-se depreender dos parágrafos anteriores que a negação da cultura é antirrevolucionário e fascista, porém os movimentos que levam ao falso dilema entre classes sociais e cultura, pois se as primeiras forem extintas liberarão as amarras da falta da segunda nas outrora classes dominadas, porém na continuidade do esquema dominado/dominador as classes intermediárias usarão ao máximo o capital cultural para conservar a sua posição.
    A falsa tentativa de promover a cultura em determinados nichos de ação popular é uma farsa, pois no momento que tenta-se por cursos, exposições ou qualquer produto cultural de algo que é propriedade das classes dominantes, a própria forma de procurar “elevar” a cultura do povo, assume uma face mentirosa e cínica, devido ao abismo cultural que foi moldado durante milênios.
    É possível numa outra sociedade se romper essa maldição milenar? Evidentemente que sim, pois a capacidade de qualquer ser humano é equivalente só havendo necessidade do mesmo tempo de ócio criativo para qualquer pessoa e junto disso a disponibilização de tudo o que existe.
    Como conclusão podemos dizer que o anti-intelectualismo é um produto não da rejeição das classes dominadas contra as dominantes, mas sim da farsa que achamos poder suprir com um simulacro de nivelamento cultural com classes que nem entende o que falamos e por isso a raiva é mais forte do que qualquer coisa.

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