As causas mortis da barbárie no Brasil, por William Nozaki

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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As causas mortis da barbárie no Brasil

William Nozaki

Há ainda hoje na economia quem professe sob as tinturas da ciência objetiva uma fé cega no progresso entendido como uma trajetória ascendente e inevitável que, mais cedo ou mais tarde, será capaz de alcançar a totalidade das nações e debelar o conjunto das iniquidades. O curioso é que nessa leitura distorcida tudo se passa como se o desenvolvimento, um conceito fundamentalmente histórico-social, fosse um destino, o que é uma ideia essencialmente mítico-teológica.

Foi Walter Benjamin quem bem sintetizou a crítica a esse tipo de leitura fatalista em sua frase clássica “todo documento de civilização é também um documento de barbárie”. Mais recentemente, o cineasta Win Wenders no documentário “O Sal da Terra” imprimiu em imagens essas mesmas palavras. Ao percorrer a trajetória pessoal e profissional de Sebastião Salgado, que não por acaso era economista antes de se tornar fotógrafo, fica evidente como mergulhar nas injustiças da sociedade é também percorrer um caminho mais profundo em direção às agruras do humano. Esse “coração das trevas” se evidencia nas diversas formas com que a humanidade e a o homem atentam contra a vida. Tudo se torna ainda mais claro quando observado à luz de estruturas socioeconômicas desiguais e violentas como a brasileira.

No Brasil, apenas em 2014, mais de 200 mil brasileiros/as morreram em decorrência do que considero as causas mortis da barbárie. São mais de 50 mil mortos em acidentes de trânsito; cerca de 45 mil crianças mortas pela fome ou pela subnutrição; 40 mil mulheres mortas em abortos clandestinos; 30 mil pessoas mortas por arma de fogo; 23 mil jovens negros vítimas de violência, em grande parte cometida pela polícia; 15 mil pessoas mortas por questões relacionadas ao envolvimento com drogas; 2500 vítimas de acidente de trabalho; 1 mil trabalhadores mortos em condições de trabalho análogo à escravidão; 400 moradores de rua vítimas de homicídio; 300 pessoas LGBTS vítimas da homofobia e da intolerância; 100 migrantes mortos nos perigos da travessia ou por motivos atrelados à xenofobia; 50 pessoas mortas em linchamentos ou justiçamentos populares; além de comunidades indígenas, povos tradicionais e populações ribeirinhas que padecem de inúmeras formas de atentado ou pessoas que ainda hoje morrem em decorrência de variadas formas de tortura.

Trata-se de um conjunto considerável de brasileiros/as violentamente cerceados no direito humano fundamental à vida, a quem simplesmente foi negada a possibilidade de existir. Vale destacar que a maior parte desses dados, todos estimados e arredondados, está certamente subestimada, pois, trata-se do resultado de práticas características de uma sociedade e de uma economia que reproduzem a acumulação primitiva de capital, e que por isso mesmo em grande parte das vezes expulsa do próprio Estado ou secundariza na implementação de políticas públicas esse contingente vulnerável.

A barbárie produz injustiças incontáveis, são histórias que não podem ser contadas nem como memória e nem mesmo como estatística. Além do que, parte dessas violências desaparece em avaliações prévias de práticas consideradas ilegais, informais e imorais e que exatamente por isso devem ser invisibilizadas, ou melhor, nesses casos, eliminadas.

O desenvolvimento econômico não é um destino, mas trata-lo como tal produz uma infinidade de fatalidades contra a vida. Tornar o país civilizado exige reduzir a zero todos esses números que expressam violências e autoritarismos inadmissíveis.

Willian Vella Nozaki é docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), doutorando em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia e tem experiência na área de Economia com ênfase em: História Econômica e Economia Política; Crescimento e Desenvolvimento Econômico; Instituições Monetárias e Financeiras, Internacionais e Brasileiras. 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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