As três ignorâncias contra a democracia, por Boaventura de Sousa Santos

Numa fase dramática da crise civilizatória, enfrentamos simultaneamente a arrogância do colonialismo, a indolência das transformações inconclusas e a perversão das fake news. Será possível mudar o mundo, ainda assim?

do Outras Palavras

As três ignorâncias contra a democracia

por Boaventura de Sousa Santos

Escrevi há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de desconhecimentos. Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se conhece tudo a respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode rivalizar com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o professor ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser.

Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as seções de voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de votar num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autônomas em relação às do clã ou família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.

O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir exclusivamente a um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e desprezar todos os outros como variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjetivas, superstições ou atavismos. Este modo de produção de ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela) tomou contato aprofundado com culturas extra-europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A partir do século XVII, a ciência moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que está para além ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi apenas que o Modo 1produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não sabe que há outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua ignorância como a única verdade.

O segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção coletiva de amnésia, de esquecimento. Este modo de produção tem sido frequentemente ativado nos últimos cinquenta anos, sobretudo em países que passaram por longos períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram causas profundas: gravíssima desigualdade socioeconômica; apartheid baseado em discriminação étnico-racial, cultural, religiosa; concentração de terra e consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do direito à autodeterminação de territórios ancestrais ou com forte identidade social e cultural, etc. Estes conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras prolongadas, civis ou outras, produziram milhões de vítimas – entre mortos, desaparecidos, exilados e internamente deslocados. Para além das partes em conflito, houve sempre outros atores internacionais presentes e interessados no desenrolar do conflito; a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do conflito como (menos frequentemente) ao seu término. Em alguns poucos casos houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do conflito entre o nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser questionável se houve ou não vencedores e vencidos, sobretudo quando a parte supostamente vencida impôs condições mais ou menos drásticas para aceitar o fim do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que dominou o país entre 1964 e 1985).

Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país e consolidar a paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e reconciliação, muitas vezes como componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional e a identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina, Guatemala, África do Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria dos processos pós-conflito, forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a redistribuição de terra ao reconhecimento da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.

Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de ignorância por via da produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O Modo 3 produz conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a ignorância não é aqui um subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os imigrantes e refugiados como agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons costumes; a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.

Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam consequências distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é simultaneamente radical e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um campo imenso para a sociologia das ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos (passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se satisfaz superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração que sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade emancipadoras que estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma reconciliada consigo mesma, com base em justiça social, histórica, étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola, corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação. Esta ignorância está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração da estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.

Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a ignorância arrogante produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a proliferação da arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa). É que uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade científica torna-se mais vulnerável a qualquer falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé. Por sua vez, a ignorância indolente produzida pelo Modo 2(amnésia, esquecimento) desarma vastos setores da população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3. A ignorância arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece, normaliza e banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas em exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objetos de guerra. Quando a ignorância arrogante se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-se tão invisível que é praticamente impossível de erradicar.

O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente, embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade. A ignorância arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que outros saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento democrático; e faz com que vastos setores da população não se sintam representados pelos seus representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e descolonizadora, sem as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites, uma disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais antidemocrática de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos, percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a derrota.

Redação

4 Comentários

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  1. No Brasil, país que nasceu de cabeça para baixo com as orelhas enterradas no mangue, com as bolas viradas para o céu e que está condenado a mijar na própria cara, as coisas são um pouco diferentes.

    A ciência nunca chegou a ser um modo de produção de conhecimento muito difundido. No Brasil crenças esquisitas sempre foram compartilhadas de maneira a preservar a hierarquia.

    Alguns séculos atrás, os donos de escravos faziam de conta que acreditavam que manga com leite podia matar. Quando eles pediam para suas mucamas prepararem essa mistura fatal elas se aplicavam em bater o máximo o podiam, porque acreditavam que assim seus mestres morreriam satisfeitos.

    O Brasil proclamou a independência, mas nunca esqueceu que foi uma colônia. Isso explica o ódio das elites brasileiras à política externa orgulhosamente autônoma dos governos Lula e Dilma Rousseff. A vergonhosa submissão total à nova metrópole (os EUA) é considerada mais desejável e adequada por quem tem uma mentalidade colonizada e não quer se dar ao trabalho de construir e defender um país.

    A difusão de mentiras não é capaz de produzir muito mal num país como o Brasil. Cá a incapacidade de acreditar nas verdades é muito pior. O país teve seu melhor momento diplomático e econômico com Lula e Dilma, mas a elite supostamente culta não acreditou nesse fenômeno (apesar de ter enchido os bolsos de dinheiro com um mercado interno cuja expansão foi obtida democraticamente).

    A falta de crença no potencial do Brasil nos fez voltar a mijar na própria cara. Nossos ouvidos estão novamente enterrados na lama e nós não conseguimos mais ouvir ninguém. Isso explica como e porque os europeus e asiáticos olham pasmos para o nosso país. Os gringos, porém, estão satisfeitos. Eles conhecem nossas deficiências históricas e exploraram com maestria as taras da nossa elite rica e degragada pelo colonialismo e pelo escravismo. Os lucros gringos serão maravilhosos.

    Um último detalhe importante. Nos próximos anos várias bases militares norte-americana serão construídas no Brasil. Nenhuma base militar brasileira será construída nos EUA.

    O machismo de Jair Bolsonaro o levou a celebrar um “casamento gay” entre o Exército do Brasil e o USArmy. Os militares brasileiros entram com a bunda, os gringos chegam com a rola. Nunca antes na historia fomos tão humilhados. Agora além de mijar na própria cara, meu país receberá as mijadas do império demoníaco ao Norte.

  2. Brilhante.
    Excelente o trabalho do professor Boaventura de trazer o pensamento acadêmico, elaborado, para a vida social pública, cacofônica, fragmentada e dispersa; e com rigor conceitual sem afetação, acessível e numa extensão que atende o tempo atual que exige uma brevidade quase extremista (que reflete e confirma os aspectos resumidos magistralmente no sucinto mas suculento artigo), aplicável à história recente de quase todos os países do mundo de que se tem notícia. Todo bom professor é um sintetizador original de ideias e nesse caso se produziu uma bela – como construção intelectual – perspectiva para entender o mundo e alinhavar percepções que vagueiam desconexas até que um maestro do pensamento bote as ideias que elas produzem num lugar coerente.
    Como um/a cozinheiro/a que dos mesmos ingredientes com que fazemos sopa rala e sem sabor apenas para saciar a fome produz um manjar que felicita os sentidos, o professor consegue dar sentido e visão de conjunto, conceitualmente, a impressões de parentesco entre processos sociais e históricos de que todos pressentimos a origem comum mas falhamos em organizá-las em conceitos e transmiti-las em palavras que descortinem uma paisagem verossímil da realidade. E como da nossa fome de compreensão-e-fruição do mundo se alimentam todas as ignorâncias reveladas pelo professor Boaventura, bons/boas cozinheiros/as de ideias, sentimentos e percepções – como são os bons professores, artistas e as pessoas que nos ajudam a viver e inspiram nossa jornada de aprendizes peregrinos deste mundo-esfinge -, os decifradores de sentido e de caminhos confiáveis são indispensáveis para que as saídas intermitentes da Grande Caverna sejam uma aventura amorosa e acolhedora, e com a ira nem sempre santa sob controle criativo, um despertar da(s) ignorância(s) que cada um de nós alimenta ou à(s) qual(is) é incapaz de resistir sem produzir outras formas dessa hidra insaciável de que somos feitos.

    “Porque somos de ontem e nada sabemos, e nossos dias sobre a terra passam como a sombra.”
    (Jó, 8:9 – Bíblia Católica Online – https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/jo/8/)

    Gilberto Gil – Eu descobri
    https://www.youtube.com/watch?v=WWr0S4PqY3Y

    Sampa/SP, 16/03/2019 – 22:35

    1. ERRATA: O vídeo “Elogio do aprendizado” NÃO É do canal TODA POESIA, mas de ODILON ESTEVES.
      Desculpem pela falha.
      (Que falta faz o site antigo onde se podia alterar os comentários…)

      Sampa/SP, 17/03/2019 – 08:44

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