Bolsonaro provoca a autodestruição da Globo, por Gustavo Conde

Enquanto a sociedade brasileira progressista aceitar a Globo como um grupo de comunicação com direito à existência, o Brasil jamais conquistará sua soberania.

Imagem: Renato Aroeira

Bolsonaro provoca a autodestruição da Globo

por Gustavo Conde

Nos governos do PT, a gente ouvia a seguinte recomendação: ‘desliga a Globo que tudo melhora’.

Agora, com Bolsonaro, mudou. É: ‘se desligar a Globo, tudo piora’.

Curiosamente, ambos enunciados atendem ao mesmo pressuposto: a Globo esconde a realidade.

Quando esta realidade era boa, nos governos Lula e Dilma, a Globo criava seu Brasil particular de catástrofe, corrupção e violência. Desligá-la, naquele momento, seria dar uma chance ao país.

Hoje, com o Brasil mergulhado na corrupção explícita e assentida da extrema-direita, a emissora nos brinda diariamente com um Brasil cor-de-rosa, estabilizado, democrático e cheio de esperança.

A gente até brinca se perguntando: “aonde está a esperança? Resposta: “nos jornais”.

Desligar a Globo, no entanto, continua sendo a condição básica para que se possa existir um Brasil real.

Não se pode mais contemporizar a existência dessa aberração: uma emissora que nasceu debaixo dos favores de uma ditadura sangrenta e que colaborou com essa ditadura sendo, portanto, co-autora de milhares de assassinatos entre os anos de 1964 e 1985.

Enquanto a sociedade brasileira progressista aceitar a Globo como um grupo de comunicação com direito à existência, o Brasil jamais conquistará sua soberania.

É preciso coragem para tocar nessa que é a maior ferida de nosso tempo. A Rede Globo de Televisão não tem interesse em um Brasil forte e democrático.

Todos sabemos disso, mas é preciso, às vezes, dizer o óbvio.

A conformidade com essa constatação também nos paralisa enquanto nação e enquanto sujeitos. Acostumamos a ver novelas, a assistir programas de auditório, a torcer pela seleção brasileira de futebol… Tudo na mais tranquila e pacífica normalidade, como se todas essas práticas não caracterizassem uma das mais brutais engrenagens de concentração de renda do planeta.

Mais que isso: três novelas diárias são uma extravagância para um país que se pretendia potência econômica. São três horas de força de trabalho (ou de leitura ou de estudo ou de caminhada ou de empoderamento de mulheres e homens) jogadas no lixo. É um desperdício cognitivo sem precedentes.

Dá-lhe sedentarismo, obesidade, doenças do coração e falta de assunto: as novelas foram, durante muito tempo, tema hegemônico nas práticas conversacionais no cotidiano do trabalhador. Era novela, futebol e o famoso “deu na Globo”.

Hoje, as novelas não têm mais essa audiência incapacitante. Mas elas já responderam por 80% do mercado de telespectadores – mercado de gente – no país. Achar essa experiência divertida e nostálgica é pertencer ao grupo que não tem interesse em construir uma sociedade real, humana e democrática – é pertencer à classe de brasileiros desinteressados por tudo aquilo que se relaciona com soberania e autoestima.

Elogiar a teledramaturgia brasileira para atenuar esse quadro devastador de concentração subcultural é escárnio. A Globo matou o cinema e o teatro brasileiros, relegando ambos a vetor confirmatório do mercado de novelas, a verdadeira fonte de dinheiro que abocanhou 90% da publicidade brasileira segmentada por mais de 30 anos. É concentração de renda e precarização profissional para ninguém botar defeito, uma verdadeira “proto-uberização” do ator e de profissionais do setor.

O cenário é perigoso. A mudança de tecnologias pressiona a emissora e a tensão política e social vai se instalando – lentamente, como sói acontecer em um país que voltou à democracia tutelado pelos donos do poder.

Os frutos podres deixados por tamanha hegemonia midiática e financeira começam, portanto, a exalar o odor pútrido da gangrena – aquela infecção localizada que pode matar o organismo inteiro.

Bolsonaro é a gangrena da Rede Globo de Televisão. A ferida na perna que infeccionou e não foi tratada. A face aterrorizante de uma empresa que sempre adocicou sua imagem para o público, com músicas-tema de Marcos Valle e linguagem visual fascista de Hans Donner, para celebrar um Brasil de sonho (que, na verdade, configurou um Brasil de pesadelo). Uma overdose cognitiva para esmagar qualquer subjetividade.

Ferida não tratada, corpo doente.

Mas se a metáfora biológica impacta o senso, a simbólica é ainda mais pedagógica.

A Globo só poderia ser destruída por ela mesma. Seu subproduto instalado no Planalto é seu grande problema neste momento. A batalha hamletiana não é entre Bolsonaro e os filhos biológicos, mas entre Globo e seu filho simbólico e político: Bolsonaro.

E se o sistema Globo, como bom “pai”, passa a mão na cabeça do filho-problema, este filho lhe restitui a imagem de pai opressor, violento, mentiroso e prepotente.

É o caso clássico de criatura que se volta contra o criador.

Ativemos a memória: aquele piti de Bolsonaro, quando da live em Riad, na Arábia Saudita, não era “o pai defendendo o filho”. Era um filho em revolta com o próprio pai, o filho Bolsonaro ferido em sua estrutura simbólica, adquirindo autonomia e denunciado o pai opressor que tudo pode e tudo vê – a Rede Globo – pai este, no entanto, levemente enfraquecido pela ascensão do filho pródigo em um dos escaninhos mais importantes de poder, a Presidência da República.

A luta entre Bolsonaro e Globo é real, mas é uma luta familiar, não um embate conceitual entre duas forças distintas e opostas.

Toda a dor que é testemunhar o pior governo da história do Brasil sendo acalentado pelos grupos de comunicação em pânico preventivo pela previsível volta da soberania nacional nas próximas eleições, pode significar, na verdade, o prenúncio da superação do mais sórdido capítulo da história brasileira: a Rede Globo está em um processo de autodestruição compulsória através da revolta bestial de seu filho pródigo.

Ao custo de uma economia destruída, do extermínio de povos inteiros, da devastação do meio ambiente, do retrocesso educacional, da morte do jornalismo e da entrega de todas as riquezas naturais, podemos ainda sair no lucro, extirpando de vez essa colossal máquina de moer carne humana que é a Rede Globo de Televisão.

E como se daria concretamente essa autodestruição? Explico ponderando sobre um ceticismo estrutural que nos povoa a ideia: analistas costumam subestimar a energia social acumulada que serve de estopim para grandes mudanças conjunturais – a observância empírica costuma ser seletiva.

Nós acabamos de ver, entretanto, o poder de um bombardeio semiótico impiedoso contra um partido político e um projeto de governo destruir a democracia e nos deixar sob escombros institucionais.

Findo esse processo de demonização do PT e reiniciado o ciclo dos grandes embates narrativos, a próxima vítima lógica é a Rede Globo, a grande incitadora do ódio que corroeu a democracia e que agora se depara com a prestação de contas exigida pela história.

E quem é a prestação de contas da Globo? Essa prestação de contas atende pelo nome de Bolsonaro. Ele e sua indústria de mentiras apontam seus canhões ao império dos Marinho como nunca antes na história deste país. O filho (Bolsonaro) quer o poder do pai (Rede Globo).

A Rede Globo experimenta o massacre pelo qual o PT passou nos últimos 17 anos. É um processo sem volta e sem controle.

O arrocho da Secom, as declarações hostis e a forte tensão que paira sobre profissionais da emissora são só um detalhe diante da monumentalidade da energia social acumulada ao longo de 55 anos de fascínio misturado à paralisia política e pulsão de morte.

Toda essa energia está sendo potencializada, neste momento, nas redes sociais bolsonaristas e, pior: nas redes sociais progressistas.

Há uma curiosa conjunção de interesses em curso neste momento: tanto a democracia quando o fascismo querem se ver livres da Rede Globo, querem um campo de batalha para chamar de seu.

O filho pródigo da Globo veio, afinal, para destruí-la e, daqui a alguns anos, o Brasil pode não ser mais o mesmo.

O preço de se ter um golpe e um Bolsonaro na sequência pode ser, finalmente, o fim dessa experiência sufocante e opressiva que é depender de uma emissora de televisão para confirmar o que existe e o que não existe neste país.

A última façanha da Rede Globo, que poderia figurar em seu epitáfio, foram as jornadas de 2013. Reconheça-se que a Globo conseguiu a proeza de produzir as mais espetaculares imagens de manifestação popular instrumentalizada da história.

Bolsonaro, que era só uma peça nessa engrenagem de produção de ódio coletivo da Globo, escapou ao controle, tomou a dianteira da situação e, com a comunicação de guerra das redes sociais, impôs uma derrota à emissora, que foi obrigada a assistir a sua criação grotesca tomar a posição que deveria ser de um preposto com ares mais aristocratas.

Portanto, não é trivial falar da guerra Bolsonaro-Globo. São faces da mesma moeda, mas que em função de uma brisa histórica, mergulharam em uma espiral de autodestruição mútua, velada e dolorosa – inclusive para os que assistem.

Fato é que: jamais seria possível a existência um país soberano e democrático sob uma emissora deste porte operando com tamanha desenvoltura em todos os níveis de poder da República.

Na falta de um caminho racional para se discutir essa hegemonia opressora e na covardia estrutural de toda a sociedade brasileira e da respectiva classe política para encarar o desafio de ‘peitar’ a Globo, o próprio sistema ofereceu um elemento desestabilizador para a função.

Bolsonaro é a peça ‘rebelde’ que se desprende da engrenagem, cai na estrutura fixa do maquinário e faz explodir a caldeira central responsável pela produção das forjas econômicas, políticas, subculturais e sociais.

Luciano Huck é o último suspiro dessa caldeira decadente, prestes a virar escombros. Foi forjado com muito esmero e troca de favores, recebendo até a bênção de um dos funcionários mais leais da emissora do Jardim Botânico: Fernando Henrique Cardoso.

Sergio Moro também é tentativa de sobrevida.

Tudo seria mais fácil se não existisse Lula e o PT para restituírem a fórceps a realidade nacional que, nem Globo, nem imprensa e nem mídia alternativa são capazes de fornecer ao consumidor de informação.

Aponta no horizonte, portanto e em definitivo, um Brasil sem Globo. Resta saber se estamos prontos para deixamos de ser tutelados.

A expectativa é grande.

Redação

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador