Como os neopentecostais conquistaram o Brasil, comentário de Alberto

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comentário no post Como os neopentecostais conquistaram o Brasil, por Luis Nassif

Apesar do inegável avanço da organização caótica dos evangélicos fundamentalistas e pentecostais ou neo pentecostais no Brasil atual, é necessário perceber que eles não conquistaram o país por completo. Primeiro, porque ainda não constituem uma maioria populacional (se é que um dia serão e eu duvido muito que serão um dia). Bem ou mal que seja, ainda há o contra peso da maioria católica sobre a face evangélica do país (sem falar que muitos dos novos convertidos a igrejas evangélicas voltam para o catolicismo mais cedo ou mais tarde). É necessário aguardar o próximo senso do IBGE para averiguar, mais detalhadamente, como anda o movimento evangélico atual no Brasil (o último senso indica que o maior segmento auto declarado evangélico é o de des igrejados, ou seja, os que não pertencem mais a nenhuma igreja evangélica formal).

A capilaridade maior das Assembleias de Deus foi desagregada por uma série de cismas internos que geraram várias convenções gerais das Assembleias de Deus, órgão eclesiástico maior da forma de governo desta denominação que hoje é mais plural do que foi no passado, cada convenção geral com sua estrutura eclesiástica própria. Portanto, é necessário perceber que o protestantismo brasileiro, comparado ao protestantismo do norte atlântico, é altamente fragmentado eclesiasticamente, o que só reforça sua tendência descentralizadora e caótica. Pode ser encarado este fato vendo as vantagens e as desvantagens, ao mesmo tempo, porque não há lideranças religiosas incontestes entre os evangélicos, que disputam entre si mais do que se unem entre si.

Mas creio que a análise criteriosa do Nassif foi bem acurada quanto ao processo histórico que fez com que este segmento da população religiosa no Brasil crescesse, em poucas décadas, em cima da população religiosa antes hegemonizada pelo catolicismo (mas é preciso matizar também esta percepção, porque a maior parte desta população católica que abandonou o catolicismo não era assim tão católica em suas práticas religiosas, só se declarando católica nominalmente). Como fenômeno histórico de crescimento de organizações religiosas com princípios semelhantes, a análise foi muito bem feita. Mas é um viés, entre outros possíveis ângulos de análise, porque os conteúdos religiosos teológicos propriamente ditos podem também ser analisados criteriosamente com os instrumentos conceituais da sociologia.

O protestantismo brasileiro, em sua maior parte, é de procedência norte americana, mesmo que indiretamente (porque muitas denominações evangélicas nasceram no Brasil e não são frutos diretos de missões americanas). Este fenômeno já foi analisado exaustivamente por historiadores e sociólogos há décadas. O protestantismo de imigração (como, por exemplo, os luteranos), não se tornou a corrente principal do protestantismo brasileiro. A corrente principal que predominou, desde o século XIX e especialmente depois da década de 1920, foi o protestantismo proveniente das missões protestantes norte americanas (inicialmente, só as denominações mais tradicionais e fundamentalistas, como os batistas, os metodistas, os presbiterianos etc.; depois vem o aparecimentos da competição pentecostal, que, no caso das Assembleias de Deus, também era proveniente do território norte americano).

Portanto, a ligação do protestantismo brasileiro com as missões norte americanas, cordão umbilical teológico específico que distingue o protestantismo brasileiro do protestantismo europeu, é bem marcante. Os vínculos teológicos do protestantismo brasileiro com o protestantismo europeu são quase inexistentes (a não ser em cursos de teologia mais sérios, das denominações mais tradicionais, como os batistas, metodistas e presbiterianos, que estudam as obras de importantes teólogos europeus, como Calvino, Lutero, Armínio, John Wesley, Paul Tillich e Drietrich Bonhoefer, por exemplo). As maiores igrejas europeias são estatais, igrejas nacionais nascidas durante o processo histórico da Reforma Protestante, enquanto que nos Estados Unidos, as igrejas que mais avançaram sobre o grosso da população, fundamentalistas, são as igrejas que na Inglaterra eram dissidentes da igreja oficial, a Anglicana, surgidas durante o movimento puritano do século XVII. Portanto, não por acaso o neoliberalismo é uma ideologia que casa bem com os fundamentalistas norte americanos que são provenientes, em sua maior parte, de igrejas não estatais e dissidentes com raízes no movimento puritano do século XVII (isto está na origem histórica da própria colonização norte americana).

Antes de aparecer a teologia da libertação na América Latina, em meados do século XX, havia um movimento progressista originado no século XIX na Europa e Estados Unidos, chamado de evangelho social, que não era socialista (embora houvesse sim, em seu espectro, uma corrente socialista teológica, socialismo utópico), mas progressista como seria caracterizado posteriormente (lutava pelas grandes causas sociais, tais como a abolição da escravidão, contra as profundas desigualdades sociais e outras causas mais liberais em sentido político, anti conservadoras). Não por acaso, Martin Luther King se tornaria uma das lideranças teológicas e políticas desta corrente, dentro do contexto norte americano de meados do século XX (suas raízes teológicas remontam ao evangelho social vindo do século XIX).

Acontece que esta corrente do evangelho social tem influência quase nula na história do protestantismo brasileiro proveniente das missões evangélicas fundamentalistas conservadoras desde o século XIX (muitos destes missionários que vieram para o Brasil eram a favor da escravidão). Há uma incompatibilidade teológica entre este evangelho social e o fundamentalismo, que é, por natureza, conservador no pior sentido da palavra (aliás, o fundamentalismo é um levante social e político de direita exatamente contra o evangelho social do século XIX, considerado por eles como “liberal” em sentido pejorativo).

Mas estou apenas aqui mostrando que o leque de análise pode ser ampliado muito para além das questões pragmáticas de crescimento de organizações eclesiásticas para perceber a dinâmica interna altamente tensa do protestantismo brasileiro que não é monolítico e que pode e deve ter suas vísceras internas expostas para a sociedade brasileira (para que a sociedade brasileira se vacine contra estes descalabros). Há inúmeros calcanhares de Aquiles no protestantismo brasileiro, tanto em sua versão fundamentalista mais tradicional, quanto em sua versão pentecostal. Os bastidores e o cotidiano evangélico brasileiro são estarrecedores para o senso comum e pessoas de simples bom senso, com suas opressões internas, suas disputas de poder, seus escândalos de toda ordem, sejam os financeiros, sejam os sexuais, sejam os de pedofilia etc. Por detrás da fachada moralista, há uma realidade de bastidores bem escabrosa e podre que precisa ser iluminada pelo jornalismo…

Pessoalmente não creio que o crescimento deste segmento protestante no Brasil irá prosseguir com este ardor que mostrou até aqui. Penso que está chegando ao ponto de saturação. Sua própria influência política atual pode ser lida como um dos seus calcanhares de Aquiles que, pouco a pouco, irá ser mais um obstáculo do que uma alavanca social e histórica para que continuem avançando sobre a sociedade. Por outro lado, as aberrações teológicas do fundamentalismo e pentecostalismo são um dos principais calcanhares de Aquiles e pontos mais vulneráveis do segmento histórico evangélico brasileiro (estas aberrações estão por trás de teorias como as da Terra Plana e políticas externas absurdas, baseadas em escatologias de segunda mão provenientes dos Estados Unidos). Sua adesão e participação ao neo fascismo e ao governo bolsonarista irá depor, historicamente, contra este segmento, provocando, posteriormente, seu declínio gradual, tanto em prestígio, quanto em influência social, cultural e política. As cicatrizes negativas e as consequências do fundamentalismo e pentecostalismo sobre a sociedade brasileira irão ficar indelevelmente marcadas na história brasileira e serão destrinchadas, em detalhes, de modo científico e racional nos próximos anos, como fundamentos de vários retrocessos sociais, políticos e científicos momentâneos (o fundamentalismo não tem poder de dar sustentação a uma sociedade moderna em pleno século XXI).

Portanto, há uma frente anti fundamentalista potencial na sociedade brasileira, no momento histórico atual, que trará, ao ser despertada de modo coerente e sistemático, cada vez mais, impulso em defesa do Estado de Direito, em defesa da democracia, da ciência, da tolerância cultural e religiosa, movimento muito mais em sintonia com as raízes históricas estruturais brasileiras do que um movimento importado alheio às nossas raízes históricas. Do mesmo modo em que eles avançam além do lastro social de que dispõem, há um movimento de repúdio de setores organizados anti fundamentalistas, com amplo e maior lastro social, que saem em defesa da escola pública secularizada, da ciência moderna, das liberdades democráticas etc.

Faço parte desta frente, desde meu lugar social, professor de história de uma rede pública, em Campinas, interior do estado de São Paulo, que, no passado, também foi professor de história da Igreja em faculdade teológica e sofreu uma escravidão eclesiástica devastadora que prejudicou em tudo minha atual vida (mas não sou um único caso, porque, como eu, há milhares e milhares de pessoas que tiveram suas vidas destroçadas pelo avanço avassalador do fundamentalismo sobre a sociedade brasileira).

Os tempos de neo Inquisição não irão voltar, com suas mentalidades medievais travestidas com a capa supostamente evangélica (na verdade, como muitos sociólogos da religião tem apontado, o protestantismo latino americano é uma fenômeno de catolicismo de substituição que traz para dentro do movimento protestante um espírito retrógrado claramente obscurantista de catolicismo colonial reverso)

Luis Nassif

2 Comentários

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  1. Concordo com o articulista. Sou casado com evangélica, que se mostra extremamente desconfortável com os rumos que d8vetsas igrejas vem tomando. Algumas estão fechando as portas. O mostra saturação do modelo.

  2. As doutrinas protestantes têm como base o homem, não têm como fundamento os apóstolos. São anarquistas da fé. Esquecem as palavras de Cristo aos seus apóstolos “eis que estarei convosco até o fim dos séculos”… Protestante segue qualquer um que se diz pastor, que saiba de retórica e memoriza uns versículos bíblicos. Quando o fundamento não está naqueles nos quais Cristo deu a autoridade, então logo se afundará. Isso mostra-se na prática, milhares de seitas protestantes fecham e abrem todos os dias. A Santa Madre Igreja Católica está aí de pé, evangelizando o mundo há 2 mil anos.

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