Deleuze, Cinema e o Estado Novo, por Rogério Mattos

Se a filosofia que Deleuze retira do cinema não é para ser usado unicamente nele, é porque o cinema suscita conceitos que dele podem ser retirados.

Deleuze, Cinema e o Estado Novo, por Rogério Mattos

Rio Negro, 50, romance publicado em 2013 por Nei Lopes, é um livro visionário no mesmo sentido que Deleuze dá ao cinema do pós-guerra, de Rossellini a Marguerite Duras e o “cinema do Terceiro Mundo”. A gargalhada de Tião Medonho recontada no livro, pouco mais de 50 anos depois do célebre Assalto ao trem pagador, parece a descrição cristalina de um processo que se repetia: a afirmação das classes populares, uma efervescência política e cultural, atualizada nas últimas décadas pelo sorriso de Chávez, Kirchner e Lula, que há dez anos traziam a paz para a América do Sul.

O neorrealismo italiano faz Deleuze trazer o conceito de “objeto real” a partir da filosofia de Bergson, ou seja, um objeto simultaneamente virtual e atual, duplo por natureza. Se, para Deleuze, “os homens se tornam visionários” com o cinema do pós-guerra, é porque confusão entre virtual e atual não se faz “na cabeça” de alguém, como pensava Robbet-Grille, mas as imagens duplas remetem a um corte irracional que as separa e um ponto futuro de indiscernibilidade onde elas se unem. São o que ele chama de imagens heautônomas. Por isso podem ser vistas separadamente ou sobrepostas, como transparências. É o primado da visibilidade sobre o da legibilidade, da estética sobre a ética. Se ambas não se confundem, também não entram em conflito. Me explicarei.

Uma evolução posterior do cinema nos mostra uma descoberta epistemológica e não mais ontológica, como quando os circuitos sensórios-motores entram em colapso depois que o mundo presenciou a maior guerra da história. Segundo Deleuze, junto com esse fator ontológico que fez mudar todo o aparelho perceptivo do ser humano, deslocando a ação da visão, igualmente o som se desprende da imagem. É a invenção do audiovisual.

O que constitui a imagem audiovisual é uma disjunção, uma dissociação do visual e do sonoro, ambos heautônomos, mas ao mesmo tempo em relação incomensurável ou um “irracional” que liga um ao outro, sem formarem um todo, sem se proporem o menor todo. É uma resistência oriunda do arruinamento do esquema sensório-motor, e que separa a imagem visual e a imagem sonora, mas integrando-as, mais ainda, numa relação não totalizável. Marguerite Duras irá cada vez mais longe nesse sentido: centro de uma trilogia, Indian song estabelece um extraordinário equilíbrio metaestável entre uma imagem sonora que nos faz ouvir todas as vozes (in e off, relativas e absolutas, atribuíveis e não-atribuíveis, todas rivalizando e conspirando, se ignorando, esquecendo, sem que nenhuma tenha a onipotência ou a última palavra), e uma imagem visual que nos faz ler uma estratografia muda (personagens que mantêm a boca fechada mesmo quando falam do outro lado, tanto assim que o que dizem já está no passado composto, enquanto o lugar e o acontecimento, o baile na embaixada, são a camada morta que encobre um antigo estrato ardente, outro baile em outro lugar). Na imagem visual descobre-se a vida sob as cinzas ou por trás dos espelhos, assim como na imagem sonora se extrai um ato de fala puro, mas polívoco, que se separa do teatro e se arranca à escritura. As vozes “intemporais” são como quatro lados de uma entidade sonora, que se defronta com a entidade visual: o visual e o sonoro são perspectivas abertas sobre uma história de amor, ao infinito, a mesma e, no entanto, diferente“. (DELEUZE, Imagem-tempo, 2007 (Brasiliense), p. 303-4)

Se a filosofia que Deleuze retira do cinema não é para ser usado unicamente nele, é porque o cinema suscita conceitos que dele podem ser retirados. O que deve ser notado é que ele está delimitando claramente dois modos de percepção, um próprio do entre-guerras e anterior à 1ª Guerra, e outro que se instaura após a grande crise do tempo que abarcou todo o mundo, da Guerra Patriótica russa até a chegada dos aviões dos Aliados por sobre a Europa, com graves implicações no Oriente a partir do momento que, ignorado o cessar fogo dos japoneses e os apelos do general encarregado da região, Douglas Macarthur, duas bombas atômicas explodiram em Hiroshima e Nagasaki – como se fosse um ato deliberado e não de reação, ato com certeza gratuito, de uma violência animalesca.

Para o Ocidente foi muito conveniente a instauração da política de Guerra Fria. Com o mundo ameaçado de uma destruição sem precedentes, todo o chamado “Terceiro Mundo” se exprimia entre a capitulação ao capitalismo liberal ou ao burocratismo de Moscou. Não foi só o choque da 2ª Guerra Mundial que arruinou o esquema sensório-motor. O Terceiro Mundo, na verdade bem mais do que a metade da população de todo o mundo, ansiava por autonomia econômica e liberdade política, porém não conseguia realizar suas intenções. No chamado “setor avançado”, a luta entre dois imperialismos e a ameaça constante de guerra, parece que fez congelar a luta por mudanças sociais e vencer o tipo de liberalismo que hoje ainda vemos vivo. Esse tipo de incapacidade de ação se prolongou, portanto, para bem além de 1945, e constituiu uma primazia do olhar sobre o agir.

A disjunção entre imagem sonora e imagem visual marca um avanço das soluções estéticas iniciadas ainda no XIX, com a criação de um espaço puramente ótico a partir do impressionismo – o primado da visibilidade sobre o da legibilidade não é “um caso” da historiografia do século XX em sua fase tardia, mas da modernidade literária e cultural a partir de Flaubert, Manet, Baudelaire, entre tantos. Nas duas obras que temos em vista, Rio Negro, 50 e Assalto ao trem pagador, como podem ser destacadas a imagem visual da imagem sonora? Como diz Deleuze no trecho acima citado, “imagem sonora se extrai um ato de fala puro, mas polívoco, que se separa do teatro e se arranca à escritura”. Separa-se do teatro por não estar vinculado à uma performance, a um gesto; se arranca à escritura porque não é no texto ou no contexto que se deve abordar o ato de fala puro, mas como repetição incessante de uma fala-gesto que se aproxima de uma palavra e ordem e se desprende do texto por se vincular a ele apenas de modo direto. As imagens sonoras e visuais são heatônomas, assim como o virtual e o atual na imagem cristal. Possuem não apenas autonomia, independência, mas leis próprias que as regem.

Talvez possam ser retirados de ambas as obras diferentes imagens sonoras. Escolho uma por se vincular diretamente à imagem sonora do livro. É o mote de Tião no Assalto ao trem pagador: “Zulmira, olha o que te falei: cuida das crianças. Não esquece o que te falei”. Ela resume os pactos dos 10% e o do silêncio, assim como a desconfiança em relação ao Engenheiro e aos possíveis traidores. O assalto é feito para cuidar das crianças, para buscar uma reparação histórica, como diz a imagem sonora de Seu Santos em Rio Negro, 50: “uma compensação por tudo o que sofreram seus pais e antepassados; e sofreram seus parentes e contraparentes, até hoje”.

Na imagem visual “descobre-se a vida sob as cinzas ou por trás dos espelhos”, é uma estratografia muda onde “os personagens que mantém a boca fechada mesmo quando falam do outro lado, tanto assim que o que dizem já está no passado composto, enquanto o lugar e o acontecimento, o baile na embaixada, são a camada morta que encobre um antigo estrato ardente, outro baile em outro lugar”. Mas no filme não se trata de dois bailes como em Duras, mas se refere à favela. A favela sorridente na pintura convencional dos pobres alegres com sua vida difícil, potencializada pela alegria dos vencedores, dos que fizeram um feito notável, digno das telas de cinema. Assim começa o filme. A vida sob as cinzas é descoberta na imagem visual da esposa de Tião saindo solitária pelas mesmas ruas da favela: uma camada morta que encobre um antigo estrato ardente, isto é, a favela em sua vida cotidiana em conjunto com a festa dos vencedores.

assalto ao trem pagador
Acima a imagem visual (Zulmira despossuída, assaltada) que pode ser captada numa relação diferencial com a imagem sonora: “Zulmira, olha o que te falei: cuida das crianças. Não esquece o que te falei”.
Acima a imagem visual (Zulmira despossuída, assaltada) que pode ser captada numa relação diferencial com a imagem sonora: “Zulmira, olha o que te falei: cuida das crianças. Não esquece o que te falei”.

Zulmira não deixará de cuidar das crianças, porém sem o espólio conquistado e escondido com astúcia pelo marido. Da vida da pobreza comum ou naturalizada como algo comum, o drama da família de Tião se potencializa depois do assédio das forças policias. Existe uma nota dramática a mais. O delegado que conduz o processo parece se compadecer tanto da sorte da família como até mesmo com o sofrimento de Tião, baleado e à beira da morte. Não pode fazer nada diante da máquina de perseguição que ele mesmo liderou. Talvez se soubesse antes… Pode ser o que ele tenha pensado, mas, pressionado pela mídia e pela opinião pública, ansiosa por saber do crime de corte cinematográfico que só poderia ter sido realizado por algum estrangeiro (não por um brasileiro, muito menos por pretos favelados…), dificilmente poderia frear a máquina que o antecede à máquina persecutória da qual fez parte. Por isso Deleuze conceitua a imagem sonora como um coletivo singular: vozes “in e off, relativas e absolutas, atribuíveis e não-atribuíveis, todas rivalizando e conspirando, se ignorando, esquecendo, sem que nenhuma tenha a onipotência ou a última palavra”. Coletivo singular definido como fala-desejo, conjunto de multiplicidades, onde se comporta tanto o algoz quanto o cativo: “uma compensação por tudo o que sofreram até hoje”, como diz Tião sob a pena de Nei Lopes.

Publicado em 2013, essa frase de Tião, um dos eixos centrais do livro de Nei Lopes, é um ato visionário. Transformou-se num refrão do que o país cada vez mais precisa, desde o início do processo do golpe de Estado no processo eleitoral de 2014 e a instauração da Lava-Jato como guerra irregular moderna, até a hora atual, onde o golpe e sua política de extermínio continuam. Sob as cinzas, em lugares sem história, como captar a imagem de tantas Zulmiras que agora lamentam e choram? Por se tratar de um livro inatual, Nei Lopes traz para o agora a semente dessas imagens.

CONTINUA…

Para ler mais:

O Rio Negro, de Nei Lopes, e a “degeneração dos negros”, de Octavio Ianni

Políticas da memória, doutrina de guerra e neoliberalismo

A história do samba como história social do trabalho

Não História: Imagem-Tempo

 

A História sob o signo de Jano

Redação

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