Documentos políticos: o canto da sereia, por Joelma Lúcia Vieira Pires

A elite brasileira opera o que ela reconhece como democracia do mercado neoliberal e articulou o golpe para a sua completa funcionalidade, ainda que adequando-a a sua especificidade.

Documentos políticos: o canto da sereia

por Joelma Lúcia Vieira Pires

“[…] Certamente ainda somos conscientes de que o pensamento requer não só inteligência e profundidade, mas sobretudo coragem […]”. Hannah Arendt, 1987, p. 17

No Brasil, em uma conjuntura de plena barbárie, movimentos em defesa da democracia estão em construção, tais como, o Estamos Juntos, o Somos 70%, o Esporte pela Democracia, o Basta!, o Somos Democracia. Embora a realidade exija urgência de posicionamento e participação da sociedade diante do iminente perigo da completude da tirania, é imprescindível que ela tenha discernimento para não naufragar sob a sedução do moderno canto da sereia. Enquanto a tirania é a manifestação da força com ilegalidade, com a utilização e o consentimento dos ressentidos radicais, a possível origem da democracia por meio do canto da sereia revela a conciliação de oportunistas para a continuidade da dominação da elite funcional.

A elite brasileira funcional e, por isso, do atraso, definição de Souza (2020), respalda o ultraneoliberalismo em funcionamento de maneira subjugada aos capitalistas financeiros transnacionais para a garantia dos seus interesses, e sem nenhum projeto de compromisso com o país. Ela tem necessidade de identificação com o colonizador por desconhecer a condição de sujeito, perpetuamente, age de maneira bajuladora, sempre a negociar alguma vantagem. O seu complexo de inferioridade faz com que ela evidencie o seu esnobismo de proprietária, humilhando as pessoas que ela considera destituídas de poder. Diante disso, a elite brasileira coadjuvou o golpe contra o regime democrático que concretizava a expressão da esfera pública e, por conseguinte, mínimas condições materiais de reparação da exorbitante injustiça social predominante no país. O referido regime democrático foi constantemente cerceado pela elite em comunhão com os capitalistas financeiros transnacionais, impossibilitando o seu aperfeiçoamento e a sua consolidação. Ademais, ela nunca aceitou o regime democrático dos governos de esquerda, criminalizando-os empenhadamente, com o objetivo de preservar os seus privilégios e impedir a concretização de poucos direitos aos diferentes.

Com efeito, a elite brasileira opera o que ela reconhece como democracia do mercado neoliberal e articulou o golpe para a sua completa funcionalidade, ainda que adequando-a a sua especificidade. Para tanto, ela participou ativamente da ascensão do típico representante da tirania por meio da suposta eleição democrática para a Presidência da República, uma vez que os seus candidatos preferenciais não conseguiram viabilidade eleitoral que culminasse na sua eleição. Essa elite tem a violência dissimulada inerente ao seu habitus, e não contava com a ostentação da violência pelo Governo que ela se empenhou intensamente em eleger, mas que se afastou da sua tutela. Inegavelmente, ela errou o cálculo de previsibilidade quanto ao controle e capacidade de contenção do tirano, mas desse ela sempre foi cúmplice, visto que o despotismo lhe é estruturalmente favorável. Portanto, a elite brasileira não medirá esforços para sustentar a continuidade do tirano no poder, embora, atualmente, demonstre intenção de discipliná-lo para ter argumentos para justificá-lo. Por isso, a sociedade deve considerar o risco de ser ludibriada com o moderno canto da sereia que ressoa desde as fileiras de movimentos em defesa da democracia afincados ao propósito do mercado neoliberal.

Em função disso, um pretenso movimento em defesa da democracia pode constituir uma cilada ao não configurar-se como um efetivo posicionamento de desconstrução da estrutura política e econômica vigente. Quando o caminho é de obscuridade e emboscadas, o pensamento e a problematização são indispensáveis para sustentar a dúvida que fundamenta a investigação necessária para a capacidade de análise. A dúvida é inseparável da lucidez e impede que embarquemos no “primeiro ônibus”, por mais chamativa que seja a exibição da expressão democracia no letreiro, sem antes investigarmos a possibilidade de o veículo ter sido sabotado para ocasionar um acidente fatal acelerado com a melodia do moderno canto da sereia.

Dessa perspectiva, devem ser elaboradas questões emergentes, tais como: nestes movimentos em defesa da democracia encontram-se mentores do golpe contra o regime democrático que tinha o mínimo compromisso com a justiça social? Tais mentores, estariam promovendo estes movimentos para a ocultação das suas faces com o propósito de simular a sua redenção e, dessa forma, sorrateiramente articular uma nova estratégia de poder que assegure a reprodução da elite funcional em articulação obediente aos capitalistas financeiros transnacionais? Existe possibilidade de estes movimentos em defesa da democracia estarem empenhados na reparação e na acomodação do representante da tirania para a sua permanência e continuidade por meio da reeleição supostamente democrática em 2022? Acaso tais movimentos querem reafirmar o “Il Gattopardo” e reformar para não mudar, apresentando candidatos à Presidência da República dispostos a usar como adereço da hipocrisia uma máscara de pretensa civilidade democrática? A despeito de qualquer questão, a certeza é de que a elite brasileira funcional tem consonância com qualquer tirania, inclusive a dos capitalistas que legitimam o mercado neoliberal.

Considerando a necessidade de indagações aguçadas, o desafio é observar minuciosamente os movimentos em defesa da democracia para identificar quais deles, de fato, apresentam compromisso com a constituição do Estado republicano como forma de antiliberalismo para a garantia da coisa pública como domínio dos cidadãos em responsabilidade com o bem comum. Reconhecendo-os é necessário fortalecê-los ou, no caso da sua inexistência, construí-lo. Urge a participação lúcida da sociedade para impedir o impulsionamento da barbárie existente e desconstruí-la com a sensibilidade da sensatez, pois ela é irracional e fundamenta a tirania que sustenta o terraplanismo. A tirania flerta com a ordem e instaura o consenso que silencia e exclui os divergentes com o uso da violência, quando não os mata.

Referências

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SOUZA, Jessé. A guerra contra o Brasil; como os EUA se uniram a uma organização criminosa para destruir o sonho brasileiro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020.

Joelma Lúcia Vieira Pires

Professora Associada na Universidade Federal de Uberlândia

Pós-Doutorado em Trabalho e Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Educação na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO/Paraná)

Doutorado em Educação na UNICAMP

Mestrado em Educação na Universidade de São Paulo (USP)

Graduação em Pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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