Enfrentar o nazismo: o valor da dignidade, por Roberto Bueno

Este artigo propõe analisar aspectos da relação do nacional-socialismo com a Igreja Católica e de uma específica figura dentro dela, a do Bispo Clemens von Galen

Enfrentar o nazismo: o valor da dignidade

por Roberto Bueno

A resistência a fenômenos políticos como o nacional-socialismo compreende dimensões complexas da vida, da sociedade, das instituições e da mobilização das individualidades, mas em todos os casos pressupõem o emprego de ousadia e coragem para o triunfo. Este artigo propõe analisar aspectos da relação do nacional-socialismo com a Igreja Católica e de uma específica figura dentro dela, a do Bispo Clemens von Galen (1878-1946), que apresentam contradições históricas mas também a capacidade e audácia reativa para não permanecer cristalizado quando a perplexidade imposta por inaudita barbárie sedutoramente convide à omissão.

O conflito entre a Igreja Católica e o regime nazista era latente em face dos princípios orientadores de ambos, e o ponto de gravidade da irreconciliabilidade ético-normativa era a adoção do princípio da universalidade do valor das vidas humanas para a primeira e a adoção da classificação do racismo biológico e do conceito de vidas indignas de ser vividas pelo nazismo. A política e os genocidas ataques antissemitas organizados desde o núcleo duro do nazismo tornava incompatível a sua convivência com a Igreja Católica, fato agravado pelo avanço das legislações discriminatórias violentas como as que impunham a obrigatoriedade da esterilização para os indivíduos que classificavam como “raças inferiores”.

As fricções da Igreja Católica com o regime nazista foram expressas de forma mais intensa em 1937 através da encíclica Mit brennender Sorge, do Papa Pio XI. O documento religioso em sua essência condenava o nacional-socialismo por sua hostilidade à Cristo e à Igreja Católica, reprovando o seu neopaganismo e, muito particularmente, a teoria da superioridade racial, que centralmente contraditava com a teologia católica. Apenas sob segredo o documento foi impresso e finalmente lido em todos os espaços religiosos católicos da Alemanha no concorrido Domingo de Ramos, no dia 21.03.1937, configurando importante ataque aos interesses políticos do regime, cuja reação enfurecida de Hitler era previsível e se fez cumprir. Esta foi a primeira maior e mais potente reação institucional contra o regime nazista, mas isoladamente encontraria outro nome proveniente da nobreza que desempenhou papel em seu momento.

Clemens von Galen provinha da nobreza alemã e foi educado em ambiente religioso. Influenciado a seguir carreira religiosa tornou-se padre da Igreja Católica, cuja Concordata (Reichskonkordat) firmada em Roma com o regime hitlerista em 20.07.1933 aparentou sinais de reconciliação indesejada por diversos setores do nazismo, mesmo preservando competências ao regime para interferir nos colégios católicos e demais formas de associação ligadas à Igreja Católica, tais como grupos de jovens. Foi passo prévio para a consagração de von Galen como bispo de Münster em 28.10.1933, oportunidade em que jurou fidelidade ao regime. Mas se a firma da Concordata permitia antever relativa descompressão temporária na tensão das relações com o ascendente regime através da retirada de oposições públicas ao nazismo, logo as violações dos termos da Concordata pelo regime nazista aos termos da Concordata se fizeram sentir e as relações se deterioram fortemente.

O processo de ascensão do nacional-socialismo foi marcado por muitas adesões de religiosos, a exemplo do Pastor luterano Martin Niemöller (1892-1984), que deu as boas-vindas aos hierarcas nazistas em 1933 sob a expectativa de reversão do difícil e instável quadro político e econômico da Alemanha, mas mostraria seu amargo arrependimento já no início de 1934, declarada dissidência que levaria o regime a persegui-lo e prendê-lo em 1935 e definitivamente encarcerá-lo na prisão berlinense de Moabit em 1937, onde permaneceu até o seu julgamento em fevereiro de 1938, tendo depois sido enviado para o campo de concentração de Sachsenhausen, nas imediações de Berlin, e depois para o de Dachau, onde permaneceu até o final do conflito bélico.

Niemöller foi apenas um dentre as centenas de casos de persecução de religiosos, aprisionamentos e até homicídios, contando com muitos deles enviados para campos de concentração, sendo que apenas Dachau recebeu quase três milhares, marcando assim a Kirchenkampf (luta contra a Igreja). Foi o ressurgimento da antiga animosidade dos hierarcas nazistas como Goebbels, Bormann, Himmler e, por suposto, Hitler, desafetos do grande poder da Igreja Católica, mas cuja perfeita avaliação do arraigamento das fundações cristãs na população os levou a elaborar estratégia e por cálculo político optar por não enfrentá-la no momento de ascensão ao poder, preservando a implementação de seu latente projeto anticlerical e de definitiva descristianização do Terceiro Reich para o momento da vitória final.

Assim como Niemöller o ponto de equilíbrio da formação política de von Galen estava à direita, e como tal estava dissociado tanto dos valores da Revolução Russa de 1918 como compartilhava a avaliação do conservadorismo do pós-1918 que atribuía a derrota da Alemanha na Primeira Grande Guerra Mundial a suposta punhalada nas costas assestada pelas forças políticas de esquerda e social-democratas, e com isto também se colocava entre os que se opunham à Constituição de Weimar, sendo o antagonismo a ela e ao comunismo pontos de convergência com Niemöller. Portanto, o Bispo von Galen colecionava ainda suficientes motivos para aproximar-se da direita alemã e, chegado o momento, de boa parte dos pressupostos inspiradores novo regime, e assim o fez, mas paulatinamente foi seguindo idêntico caminho ao de Niemöller, preso em julho de 1937, e da Igreja Católica que meses antes havia firmado posição com a Encíclica Mit brennender Sorge, de 14 de março de 1937. Certamente o Bispo von Galen foi impactado pelas notícias da deflagração daOperação Barbarossa e invasão da União Soviética em 22 de junho de 1941, daí derivando recrudescimento das ações do regime contra os interesses da Igreja Católica em território alemão mas muito violentamente no âmbito da referida operação militar e nas regiões anexadas como a Áustria e a Tchecoslováquia, incluindo fechamentos de mosteiros e confisco de propriedades.

Escasso mês e meio transcorrera desde a deflagração da Operação Barbarossa e sob a pressão dos tempos, em um domingo de agosto de 1941, na bela Catedral de Münster, o Bispo von Galen subiu ao púlpito para apresentar defesa da humanidade contra a barbárie, dos homens e dos mais caros valores que caracterizam a civilização contra crimes que sequer os animais praticam, mas sim os nazistas. Foi notável como pode reagir verticalmente quando a genuflexão absoluta não apenas dentre os seus fiéis era massiva, e quando as notícias sobre prisões, assassinatos e aprisionamentos massivos de clérigos em campos de concentração já era bem conhecida. Embora von Galen estivesse à direita, não estava dentre aqueles que escondem em si a pior face da vileza humana, vale dizer, não se contava entre os genocidas, e por tal motivo, em homenagem aos homens que mobilizam em si a coragem restante para enfrentar os mais altos e vis criminosos de seu tempo, em homenagem aos homens aos que não se vergam ante assassinos em massa e sua quadrilha, em homenagem aos homens que arriscam a sua posição e, talvez, a vida, em homenagem aos que priorizam cuidar da higidez moral para manter viva a chama da dignidade, reproduzimos a corajosa preleção de von Galen no primeiro domingo de agosto de 1941: “Há vários meses estamos ouvindo relatos de que pessoas adoentadas há algum tempo e que aparentam ser incuráveis têm sido retiradas de instituições psiquiátricas e casas de doentes mentais por ordens de Berlin. Pouco tempo depois, seus parentes recebem a notificação de que o paciente morreu, que o corpo foi cremado, e que as cinzas poderão ser enviadas a eles”.

O Bispo von Galen tinha suficientemente claro que estava em curso uma política eticamente insustentável de extermínio de milhares de vidas, cuja ancoragem não era outra que a avaliação arbitrária feita pelo regime sobre quem estimava dispor de valor e quem não, e exemplo disto foram os doentes crônicos e os judeus. Dificilmente o Bispo von Galen tomou conhecimento destes fatos denunciados no púlpito em agosto de 1941 tão somente neste momento, pois o Projeto Eutanásia conduzido pelo médico assistente de Hitler, Karl Brandt, e por Philipp Bouhler, diretor da chancelaria privada do Führer, já era desenvolvido desde a primavera de 1939 no endereço berlinense Tiergartenstraße 4 (e por isto o programa ficou conhecido como T4), onde eram assassinadas crianças deficientes por diversos métodos que incluíam a inanição, programa posteriormente ampliado para vitimar adultos. Gravíssimas as informações que se supõe o Bispo von Galen preferiu guardar para si até tornar pública a informação por reputar ser o mais adequado momento, talvez movido pelo cenário avassalador do regime relativamente aos interesses específicos da Igreja Católica no âmbito da Operação Barbarossa.

Mesmo quando decorrem anos desde a deflagração do Projeto Eutanásia e este sofria constante ampliação quanto as suas vítimas, a preleção de von Galen na Catedral de Münster avançava destacando com alguma cautela que“Há uma suspeita disseminada, beirando a certeza, de que esses numerosos casos de mortes repentinas de doentes mentais não ocorrem naturalmente, mas estão sendo causadas de modo intencional, seguindo aquela doutrina que clama estarmos autorizados a destruir as chamadas ‘vidas não merecedoras de vida’ – isto é, de matar seres humanos inocentes quando se julga que a vida deles não tem valor para o povo [Volk] e para o Estado”. Havia no discurso de von Galen a perfeita noção da lógica de operação da maquinaria nazista, e de que apenas o cálculo alimentado pela discriminação racial biológica importava. Nesta medida, malgrado a sua posição política situada à direita, restava claro para o Bispo von Galen que não era possível manter cumplicidade com um regime que instrumentaliza os seres humanos, que dedica esforços ao extermínio em escala industrial, quando em perfeita oposição a ética cristã impõe o dever de reconhecimento universal da dignidade a todos, o que o levaria a concluir a sua preleção afirmando que “Não estamos lidando com máquinas, não se trata de cavalos ou vacas cujo único propósito é servir a humanidade, produzir bens para o povo! Estes, podemos aniquilá-los, retalhá-los, assim que não cumpram mais com seu propósito. Não, trata-se de seres humanos, como nós, nossos irmãos e irmãs! Pessoas pobres, doentes, improdutivas se quisermos! Mas será que por essa razão têm de ter confiscado seu direito à vida?”

O questionamento soaria nos espaços da Catedral de Münster como um raio ético divino fulminante em meio a nebulosidade radical dos dias em que os judeus pereciam nos campos de concentração perguntando onde Deus estava. O Bispo von Galen estava a opor ao nazismo a sua classificação dos seres humanos para fins de extermínio conforme critérios étnicos, mas também segundo parâmetros de mera utilidade e cálculos econômicos que envolvem os custos de manter vidas, e conforme se apresente a relação custo-benefício, logo, a opção será por deixar morrer ou matar. Esta foi a razão pela qual os bebês e crianças fossem priorizados no Projeto T4, e posteriormente também que bebês de judeus, por exemplo, fossem um dos coletivos de vítimas preferenciais dos nazistas em suas atividades de extermínio tomados como alvos já no processo de chegada dos trens aos campos de concentração, e logo a seguir mortos fosse com tiro na nunca ou atirando-os vivos ao fogo como ocorreu no campo de concentração de Treblinka. Para o Bispo von Galen havia que combater a percepção nazista de que os seres humanos pudessem ser tomados como máquinas, pois não são espécie de ser vivo que se possa retalhar, como se se tratasse de animais para o abate, o que tampouco podemos normalizar como a história apresentou.

Embora o Bispo von Galen estivesse situado à direita do espectro do pensamento político e imerso na estrutura da Igreja Católica e deparando com diversos de seus quadros que folgadamente coabitaram com o nacional-socialismo como ele mesmo, eis que encontrou ponto de fuga para o juramento de fidelidade ao Estado na presença de Hermann Göring ao ser sagrado Bispor de Münster, o que na época significava jurar lealdade ao regime nacional-socialista. Quando restou claro que estava frente a uma política de extermínio em massa, von Galen honrou o seu discurso solene pronunciado ao tornar-se na ocasião religiosa solene, quando prometeu realizar a “diferença entre justiça e injustiça, entre boas e más ações”, e havia chegado a hora de ouvir o chamado superior, mesmo quando a suástica era a estética corrente nas ruas e o seu impacto nos indivíduos e instituições a regra.

Naquele contexto von Galen optou pela única alternativa reta de que dispõe a decência humana em situações-limite em que vigora o completo desprezo pela humanidade. Isto ocorre quando um regime não trata os seus cidadãos como humanos, senão o contrário, estabelece profunda diferença entre os indivíduos, reservando tão somente a alguns poucos as regras ordinárias de dignidade que devem reger a vida, enquanto à massa, nada mais do que a anomia dos campos de concentração, qualquer que seja a forma histórica que possam tomar. O Bispo von Galen invocou a ética cristã para afirmar aos seus fiéis que todos merecem o mesmo tratamento humano, quer se tratem indivíduos “produtivos” ou “improdutivos”, seja qual for o ignóbil parâmetro utilizado para afirmá-lo, pois, em verdade, se trata de que simplesmente não há critério legitimador para que um indivíduo ou um grupo possa arrogar-se o poder de confiscar de outros o direito a viver.

O Bispo von Galen resistiu e denunciou o rebotalho em forma humana que conduzia um regime genocida quando a maquinaria já estava em curso, deu concreção ao dever superior de todos em face de qualquer forma histórica de nazismo, a saber, o de combatê-lo através de todos os meios disponíveis, pois o que está em causa é o extermínio massivo de vidas humanas, cuja proteção e um dever da civilização. Empenhar-se em tal combate é imperativo ético de todas as gerações, quaisquer que sejam os rótulos ideológicos e pretextos sob os quais o genocida e o genocídio pretendam covardemente ocultar-se. A mera perspectiva da montanha de cadáveres no horizonte deve ser razão mais do que suficiente para mover-nos à luta.

Roberto Bueno – Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

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