Fechamento de escolas estaduais e o princípio da vedação do retrocesso

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Pedro Pulzatto Peruzzo
 
Do Justificando
 

O Governo do Estado de São Paulo anunciou o fechamento de centenas de escolas públicas. Os alunos foram às ruas protestar contra a medida e foram reprimidos pela Polícia Militar. Não vou discutir a ação da Polícia com os estudantes que protestavam contra o fechamento das escolas, pois isso está registrado em vídeos e, para mim, a Polícia Militar do Estado de São Paulo é um absurdo injustificável e cada vez menos compreensível. Sobre a ação da Polícia Militar, prefiro fazer poesia:

***

Militar: o verbo

Militar, se verbo é
Tem algo de sonho a executar
Executa o que pensa
Pensa a igualdade
A igualdade que liberta
Liberta agindo

Se, então, militares tu
Atenta pra tua paixonopatia
Sem desligar teoria e prática
Cultivarás psicoproblemas de amor
A química que controla, acalma e acorda
Será uma erótica dose de paz e prazer

Militar, se verbo for
Policiará as flores
Não matará
Terá algo de sonho a executar
Agirá pensando
Numa psicopaixologia que liberta e cura

***

Pois bem! Quero analisar esse anúncio de fechamento de escolas a partir do princípio da vedação do retrocesso que, apesar de ser aplicado pelo Supremo Tribunal Federal há um bom tempo, especialmente a situações envolvendo o direito fundamental à educação, é pouco conhecido e pouco debatido. Para entender o que é esse tal princípio da vedação do retrocesso ou “efeito cliquet” dos direitos fundamentais, vale citar diretamente uma decisão do STF sobre o tema:

O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocessoem matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (…) Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.

(STF. T.2. ARE 639337 AgR/SP. Rel. Celso de Mello. DJ. 23/08/2011 )

No que diz respeito ao anúncio de fechamento de escolas, temos três pontos essenciais a analisar. O primeiro deles diz respeito ao fechamento das escolas em si. Se o princípio da vedação do retrocesso veda a redução total ou parcial de direitos já conquistados, e se a educação é um direito fundamental reconhecido expressamente no artigo 6º da Constituição Federal, então o fechamento das escolas afronta esse princípio em questão.

A Constituição de 1988 diz no artigo 208, inciso II, que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de progressiva universalização do ensino médio gratuito. Como universalizar o ensino fechando escolas? O Governo do Estado, no entanto, tem anunciado que nenhum estudante ficará sem vaga na escola. Se a garantia de vaga for real, então teremos que analisar outros fatores para afirmar que o princípio da vedação do retrocesso foi violado.

Além disso, o governo justifica a medida com base na proposta de reorganizar a distribuição dos alunos em cada unidade, de modo que cada unidade passe a atender exclusivamente um dos três ciclos de ensino: 1º) os alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental; 2º) os alunos do 6º ao 9º ano do fundamental e 3º) os três anos do ensino médio. Aqui entra em discussão os outros dois pontos fundamentais para a afirmação de violação ao princípio da vedação do retrocesso.

O segundo ponto que merece análise diz respeito ao aumento da distância entre a residência do estudante e a escola. O Estado de São Paulo estabelece que a distância máxima entre a residência e a escola não pode ser superior a 1,5 Km e alguns estudantes que já receberam a notícia de que devem procurar outras escolas não estão tendo esse direito atendido. Uma vez que a Constituição prevê como princípio da educação a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, inciso I), a distância pode ser um complicador importante a ser levado em conta.

O terceiro ponto em questão é o argumento utilizado pelo Governo do Estado de São Paulo para o fechamento das escolas, ou seja, a proposta de que cada unidade passe a atender exclusivamente um dos três ciclos de ensino. Não quero acreditar que o Governo do Estado tenha a pretensão de, com essa padronização fordista, afastar os adolescentes de ciclos mais avançados dos estudantes dos ciclos iniciais, como forma de desarticular trocas de experiências que ocorrem para além das salas de aula.

O artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) diz que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Ou seja, educação não se resume ao que acontece na sala de aula, mas compreende também o que ocorre na convivência humana, nos movimentos sociais, nas manifestações culturais e daí a importância do contato entre adolescentes de diversas idades e ciclos de ensino diferentes.

O contato entre pessoas de idades diferentes, especialmente na adolescência, pode parecer problemático se compreendido, de maneira rasteira e ignorante, como troca de ideias rebeldes. O garoto ou a garota mais velha que, possuídxs pelo demônio, estimulam os mais novxs a provarem outras opções sexuais, a experimentarem um cigarro e outros pecados capitais. No entanto, esse contato pode ser expansivo se pensado de maneira menos policialesca e fatalista.

A ampliação das possibilidades sexuais e o contato com as drogas (para citar apenas as experiências que mais amedrontam os pais, os professores e o Governador) não são em si problemáticos. O problema está na omissão dos educadores, do estado, da família e da sociedade na discussão ampla sobre esses temas. Orientar-se sexualmente de maneira livre e conhecer as drogas não é um problema; o problema reside nas doenças sexualmente transmissíveis e na dependência das drogas (com atenção ao álcool).

O fim da pluralidade dos ciclos no mesmo espaço educacional nos parece um retrocesso, na medida em que quebra os vínculos sociais entre adolescentes de diversas faixas etárias e na medida em que cria uma linha de produção na educação. O artigo 3º, inciso X, da LDB, diz que o ensino será ministrado com base no princípio da valorização da experiência extra-escolar e essa medida do Governo do Estado parece ser um primeiro passo para uma violação sistemática a esse princípio, além de abrir margem para a privatização não apenas da educação pública, mas também dos espaços educativos. A privatização dos espaços educativos também pode abrir margem para a militarização desses espaços, prática muito adotada pelo Estado de São Paulo e muito aplaudida e praticada também em outros Estados.

Nesse sentido, apesar de não estar muito claro o objetivo central do Governo do Estado com esse anúncio de fechamento de unidades escolares e exclusividade no atendimento dos três ciclos de ensino, a experiência que obtivemos com a educação estadual nos últimos 20 anos não nos permite acreditar que se trata de boa coisa. Esse cenário fica ainda pior se considerarmos que o Estado de São Paulo não tem experiência no diálogo com os estudantes.

Assim sendo, numa análise muito sumária, consideramos que essa medida, se concretizada, violará o princípio da vedação do retrocesso no que diz respeito ao direito humano à educação. Ampliar o debate e envolver os estudantes e toda a comunidade escolar nas tomadas de decisão sobre a educação é urgente e á o mínimo que o Governo do Estado de São Paulo pode fazer neste momento.

Pedro Pulzatto Peruzzo é  advogado, mestre e doutorando em Direito pela USP, Diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara e professor de Direito Constitucional do Centro Universitário Estácio Radial de São Paulo. 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

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  1. Só acredito depois de fechar…

    Pra mim é campanha política.

    Que governador é tão burro para fechar escolas? Nem no PSDB tem gente deste nível.

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