Fim das “armas da crítica” e ascensão das revoluções coloridas, por Rogério Mattos

Ficou patente, em especial para quem acompanhou de perto este movimento no Brasil a partir de 2013, a falta não apenas de proposições políticas sólidas, mas o analfabetismo teórico-crítico de toda esta militância.

Fim das “armas da crítica” e ascensão das revoluções coloridas

por Rogério Mattos

Em seu trabalho sobre o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, Higor Codarin Nascimento conta como o grupo revolucionário, após alcançar grandes feitos com o sequestro de políticos estrangeiros (não foi apenas o famoso sequestro do embaixador americano), acabou por se encontrar em uma situação no mínimo ambígua. A orientação era de não recuar mesmo depois do recrudescimento da repressão após a fama nacional alcançada com o sequestro de Charles Elbrick, ou mesmo depois de ter lideranças capturadas aos montes pela polícia militar.

Ao invés de recuar, os militantes aumentaram as ações de sequestro como forma de recuperar os companheiros capturados, em ações conjuntas com diferentes agrupamentos armados. Foi o caso do rapto do embaixador da Alemanha Ocidental, Enhenfried Von Holeben, por iniciativa da ALN e VPR, o que lhes rendeu a liberação de quarenta presos políticos. Na área de ação restrita do MR-8 (pelo menos a que se dedica a pesquisa, ou seja, o Rio de Janeiro), os recuos eram motivos para avanços inusitados. Da ação social e a vivência nas favelas, foram interiorizando sua presença até atingir a Baixada Fluminense. O objetivo sempre buscado era a formação de focos guerrilheiros no campo atuando em conjunto com os da cidade.

Quando ocorreu o sequestro do embaixador americano, o grupo se espalhava entre as zonas sul e norte cariocas (de Botafogo ao Rio Comprido). Com a primeira reação dos militares, iniciaram seu plano de ação nas favelas e comunidades carentes. Era um meio de se esconderem e cooptarem trabalhadores para a empreitada revolucionária. Num ato de panfletagem comum no Jacarezinho, foram presos com relativa facilidade, entre eles um dos líderes do grupo, o agora historiador Daniel Aarão Reis.

Foi quando migraram para a zona metropolitana da cidade, sempre com a rotatividade das lideranças e a busca por novos membros para substituir os que tinham “caído”. O planejamento parecia perfeito. No plano ideal, a luta armada parecia se ramificar, se espalhar por toda a cidade. Faltavam quadros, porém. Um dos objetivos de Higor Codarin em seu trabalho foi mostrar que a guerrilha não se baseava apenas numa práxis revolucionária, mas era ancorada em sólidos pressupostos teóricos (as “armas da crítica” depois substituída pela “crítica das armas”).

Ele conta que enquanto voavam para a Argélia um grupo dos quarenta militantes soltos após o sequestro do embaixador alemão, o linguajar dos integrantes do MR-8, extremamente intelectualizado, parecia uma outra língua para os integrantes da VPR. Estes, de origem mais pobre, chegaram a pedir um tradutor para poder entender e se comunicar com o outro grupo. O planejamento dos intelectuais, de fato, era interessante. Mas ao invés deles irem se enraizando em regiões cada vez mais periféricas da cidade enquanto mantinham suas atividades próximas ao centro, eles foram na verdade se escondendo cada vez mais longe.

Parecia existir uma espécie de ilusão de ação coordenada, porém nem mesmo a escolha entre campo, periferia ou cidade poderia ser feita, muito menos ocupar todas as áreas ao mesmo tempo. A arregimentação teórica acabou por formar uma superestrutura fantasmática onde de forma muito parcial se conseguia cumprir os planos previamente dispostos. Os guerrilheiros pareciam estar em todas as partes, mas não conseguiam formar posição sólida em parte alguma.

Apesar de todas as dificuldades, entre 1968 e 1975, o mero fato de ser jovem, estudante ou professor, com postura minimamente crítica em relação ao golpe de Estado, já os gabaritava para a guerrilha. O endurecimento do regime não dava muitas escolhas. Como fazer oposição livre quando os vínculos institucionais estão praticamente fechados? Não é só que a luta armada era legítima. Por diversos motivos ela era uma necessidade. Assim, compreende-se que não foi a vitória dos “porões da ditadura”, do aparelho repressivo, que acabou com a luta armada.

Para se falar no fim desta tem que ser levado em conta igualmente o projeto de distensão política, prometida por Geisel e materializada na anistia de 1979. Caso não houvesse anistia e a posterior criação de partidos políticos para dar vazão na seara institucional à oposição política, a possibilidade de ressurgimento da luta arma em plena década de 1980 não seria descartável.

Houve também o problema do regime militar se deteriorar muito rapidamente após o fracasso do “milagre econômico”. Os militares poderiam ter permanecido no governo, o que não permitiria de forma alguma a criação de uma oposição livre, apesar de toda “abertura política”. A luta armada viu seu ocaso em meados da década de 1970, porém, se o regime não tivesse entrado na aguda crise que experimentou no mesmo período, se posteriormente não tivesse caído como de fato caiu, nada nos garante que vivêssemos por longos anos uma situação de sublevação constante de tipo colombiano. Vale lembrar que, nos anos 1980, quando os guerrilheiros das FARCS ganharam o direito de criarem seu partido político, eles foram chacinados logo depois. A luta armada na maioria das vezes não é uma escolha, mas uma necessidade.

O livro de Higor Codarin acaba por se colocar em uma posição estratégica nos dias atuais. Ao fazer uma “crítica das armas” positiva, ou seja, ao destacar a fundamentação teórica e a postura crítica da juventude durante o período mais repressivo da ditadura, talvez involuntariamente seu trabalho serve como referência crítica aos atuais movimentos juvenis.

Desde que começaram as “primaveras árabes” ou “revoluções coloridas” pelo mundo, cujo início remoto causou o desmantelamento da Líbia e cujo fim levou ao poder os neonazistas ucranianos, ficou patente, em especial para quem acompanhou de perto este mesmo movimento no Brasil a partir de 2013, a falta não apenas de proposições políticas sólidas, mas o analfabetismo teórico-crítico de toda esta militância.

O slogan “black lives matter” não é assertivo, muito menos ameaçador. Comparado ao “power to the people” da época dos Panteras Negras, vê-se como a juventude de agora é tragada por operações de propaganda pura, endeusadas rapidamente pela mídia. Os movimentos políticos transformadores não se utilizam propriamente de slogans, mas de palavras de ordem. Martin Luther King ao compor sua luta contra um tríptico, “racismo, capitalismo e materialismo”, colocava em causa, a partir do movimento negro, a partir do movimento pelos direitos civis, o questionamento do sistema como um todo.

Nada disso é feito pela atual “primavera global”, o que mostra a total passividade da juventude. Juntos aos novos modos de trabalho, particularmente os via aplicativos de celular, que criaram um novo lupemproletariado, as condições de luta anti-sistêmica são extremamente precárias. Quando setores esquerdistas colocam Lenin como um ditador, como no caso de um lamentável artigo do The Intercept, se faz assim o elogio da democracia liberal triunfante após o fim da URSS (antigamente a gente chamava isso de Consenso de Washington). Não só: se procura assassinar a reputação do líder teórico e revolucionário que, muito mais do que Marx, inspirou as revoluções de independência africana, a própria revolução cubana e parcela fundamental da oposição ao regime militar no Brasil.

 

Quem quiser saber mais, acompanhe minha série Arquivos da ditadura [aqui]

Rogério Mattos, professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História e doutorando em Literatura Comparada. Mantém o site oabertinho.com.br onde publica alguns de seus escritos.

Redação

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