Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Urariano Mota: Lampião, o bandido de volta

Por Urariano Mota

O artigo de Elise Jasmin, hoje, na Folha de São Paulo resgata preconceitos que julgávamos mortos no século passado. No texto  “Fotos da guerra do cangaço revelam lado desconhecido de Lampião”, podemos ler:

“Guerreiros valentes para uns, brutos sanguinários para outros, os cangaceiros sob o comando de Lampião atuaram de 1922 a 1938, data em que as forças da ordem puseram fim a seu reinado de terror”

Primeiro, terror para quem? Para os agricultores miseráveis? Certamente, não.  Segundo, em várias frases a historiadora se mostra como uma pesquisadora que não foi além dos jornais da época. Se ela houvesse pesquisado fora dos registros comuns, se houvesse procurado velhos cangaceiros, veria que os relatos dos sobreviventes se opõem às versões publicadas pelos jornais da época, que geralmente tinham a polícia como principal fonte. O que, pensando bem, não mudou muito. Mas olhem:

“Perseguidos sem trégua durante aproximadamente 20 anos pelas forças da ordem, Lampião e seu bando de cangaceiros atravessaram, devastaram e saquearam o sertão do Nordeste”

O artigo chega a cometer inverdades maiores como esta:   

“Lampião, a princípio, é fruto de uma sociedade marcada pela violência, na qual é forte a tradição do banditismo de honra”

Amigos leitores, prestem muita atenção: Serra Talhada, a cidade onde nasceu Lampião, não é o lugar da tradição do banditismo de honra, nem muito menos lugar natural de bandidos. Poderia ser dito que ali, como em todo interior nordestino, era marcante o valor de honra como um patrimônio natural das pessoas.  Um valor atrasado em muitos aspectos brutais, era certo, mas que nada tinha a ver com a terra da seca de honestidade, que gerasse bandidos saqueadores.

No entanto, o artigo continua  mais aqui:

“Enquanto as forças da ordem não conseguiam agarrar o Rei do Cangaço em seu antro, este último teve o topete de aceitar a oferta do fotógrafo e cameraman Benjamin Abrahão para fazer um filme sobre a atividade de seu bando”

(Negrito deste autor)

Ora, já antes, quando escrevi o artigo “Lampião, bandido de marketing”, em setembro de 2006, pude observar esse engano da historiadora. Ela falava então sobre as imagens de Benjamin Abrahão:  

“Estas imagens dos bandidos no auge de sua glória e poder, ao lado das fotos com o jogo cênico de suas mortes, fazem parte desta espetacularização da violência que encontramos nas sociedades modernas. É um fenômeno que vemos se desenvolver especialmente nas grandes cidades atingidas pelo crime organizado. Lampião e seu grupo foram os primeiros a se apropriar deste modo de comunicação, a instrumentalizá-lo, para desafiar seus adversários, impor seu poder e mostrar que seu sistema de valores, a vida que levavam, tinha um sentido para eles.”

Para responder a tamanha viagem, pude escrever que a chamada espetacularização, neologismo em português, mas que bem entendemos como uma mistura de especulação com espetacular, esse fazer da violência um espetáculo não foi uma criação dos bandidos sertanejos em 1936. Eles não são os agentes do espetáculo. As lentes de Benjamin Abrahão, que os filmou, é que fazem o espetacular. Em um filme, isto é básico, o ator não é bem o agente. Quem dirige é quem age. Nas imagens os cangaceiros se mostram, se exibem, mas a direção, o agente, está por trás do que eles fazem e encenam. A pedido, deve-se dizer. Diríamos até, a existência do espetáculo havia sido feita antes por toda a imprensa brasileira. Lampião jamais se declarou ou se julgou o rei do cangaço, por exemplo. Isto foi uma criação da imprensa e do cinema, nos estúdios Vera Cruz. Quem utilizava quem? Quem fazia espetáculo de quem? 

Mas agora o bandido voltou:          

“À frente de seu bando de cangaceiros, Lampião atacava e arrasava propriedades e vilarejos, extorquia parte da população, introduzindo o rapto em seus métodos crapulosos e jogando sutilmente com os antagonismos de clã entre os potentados locais.

O recurso a uma violência sem limites, à castração, às mutilações, à marcação com ferro em brasa permitiu a Lampião aterrorizar os sertanejos que não o apoiavam e consolidar sua reputação de crueldade”

O vilão sertanejo retorna, cumpre o seu “I’ll be back”

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

9 Comentários

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  1. Canudos

    Quem procurar, sobre Canudos, nos arquivos do´´extadao´´  vera a narrativa de que Antonio Conseleheiro e seus fiéis queriam a volta da monarquia !

     

    1. Bom, nao sei se literatura vale como fonte histórica, mas…

      pelo menos segundo o livro magistral de Vargas Lhosa eles realmente eram simpáticos à monarquia, por causa da Princesa Isabel e da aboliçao da escravatura. Até que ponto é fantasia do Lhosa nao sei.

  2. Reforma Agrária
    O conselheiro e a primeira Reforma Agrária do Brasil
    Caríssimo Ataíde Coutinho, no livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, o leitor é informado do atraso do sertão, onde o sertanejo não tinha ideia política sobre Reino, Império, República, etc. Seu comentário deveria esclarecer para o leitor que Antônio Conselheiro foi responsável pela primeira Reforma Agrária no país. Assunto não resolvido até hoje pela República…

  3. Lampião era considerado

    Lampião era considerado bandido pelos fazendeiros, pelo governo e pelos jornais da capital. No sertão, Lampião era venerado pelo sertanejo. Quando o setanejo era injustiçado pelo fazendeiro ou chefe políico, aguardava oportunidade para prestar sua queixa a Lampião que prontamente resolvia o conflito entre as partes.No final de cada acordo, Lampião avisava para o acordo ser cumprido. Do contrário, manadava dar uma surra de chicote no fazendeiro ou chefe político. No meu tempo de criança no sertão de Pernamcu ouvi vários relatos sobre pais de família que tinham suas filhas estupradas por filhos de fazendeiros.Ciente do caso, Lampião mandava reunir as partes e avisava o fazendeiro para chamar o padre e fazer o casamento da jovem de família pobre com o filho do fazendeiro. Depois do casório, Lampião dava seu recado: “- Se eu souber da desunião do casal o pai do noivo vai entrar no chicote”.  

  4. Lamentávelmente um gol

    Lamentávelmente um gol irregular (falta clara no zagueiro do Corinthians) livrou o clube de Recife de ser reconduzido ao seu lugar: a segunda divisão do futebol brasileiro.

    Estranhamente esta não é a primeira vez que esta agremiação escapa “milagrosamente” de voltar às suas origens. Sempre acontece algo que a salva. Mas sigamos com a vida pois o destino tem suas certezas, mais cedo do que se pensa…

    Seriam os padrinhos politicamente fortes seus trunfos? Golpistas influentes de Pernambuco são seus tradicionais torcedores, e cito Roberto Freire para ficar no mais asqueroso deles.

    Ano que vem cobrarei a fatura.

  5. Eu adoro a escrita de

    Eu adoro a escrita de Frederico Pernambucano, seu livro sobre a estéstica do Cangaço é belíssimo. No entanto, tenho cá minhas dúvidas sobre a sua tese do “irredentismo do Cançago”, aproximando tal fenômeno àquilo di Hobsbawn chama de banditismo social. Há alguns anos na Itália, chego mesmo a ver nas palavras de Pernambucano uma aproximação ao fenômeno do “brigantaggio” do sul da penísula, por vezes, o Lampião visto como  “una sorta di bandito Giuliano”, talvez o últimos do briganti, morto nos anos 50. Não estou certo, penso que cangaceiros como Lampião conseguiam negociar com o poder dos coronéis, ser um ator ativo…e isso já é muito, “per i dannati della terra!!!

    E sobre o topete de Lampião, o que Urariano teria a dizer sobre a carta de Lampião a Jélio de Melo, em 1926?

    “Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra no sertão e acabar de vez com as brigas. (…) Se o senhor estiver no acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é o que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos me emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando o que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.

    Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão”

  6. O livro que não chega às livrarias

    Desconheço a editora do Mais longa juventude… encomedei, esperei, o livro chegou e pluft, a edição esgotou. Pena. E a responsabilidade, no caso, não foi da Livraria Cultura…

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