Liberdade de expressão: as garras da “opinião” no capitalismo virtual, por Nathan Caixeta

O terreno político foi pego como avalanche com a eleição de Trump, Bolsonaro e outras mais que transitavam na terra sem leis, incorporando centenas de outros signos de pertencimento e remodelando-os segundo suas intenções.

Liberdade de expressão: as garras da “opinião” no capitalismo virtual

por Nathan Caixeta

Uma vez mais, as pegadas do presidente sobre a linha do crime e da constitucionalidade, do radical que se transforma em loucura coletiva, ou mesmo da opinião que resvala o ultimato do bom senso, oferece elementos para uma crônica sobre liberdade. Logo, gostaríamos de estar desmembrando a razoada de paixões que levaram o BC a atirar as taxas de juros como petecas antes de seu presidente pular carnaval, escapando dos foguetes indiscriminados de São João: ao invés de “olhe a cobra”, alguém gritou: “olhe a inflação”. Ao menos deixamos registrado que os componentes do COPOM entendem tanto do cenário inflacionário que dele tiram proveito, rebatendo o perigo com o retorno ao patamar histórico dos juros reais.

Entretanto, é um tema para as dóceis calculadoras do mercado, entidade movida por emoções, demonstrando seu nervosismo na insegurança jurídica que vivemos no Brasil, assegura o Presidente da Banana Republique. Contudo, se as perolas são insuficientes para compor o colar da boiada, o presidente de pronto, esmera-se como ourives ao agitar o caldeirão em que fabrica a própria instância normativa, tomada de linguagens e símbolos próprios, capaz de balançar as nucas dos detratores, movendo os sentidos do óbvio apontado pela relatoria da CPI para o inacreditável: a possibilidade de as vacinas gerarem mutações capazes de soropositivar seus receptores.

Na largada, qualquer um tomado pelo mínimo senso de responsabilidade, receberia tal informação com a incredulidade de São Tomé, navegando o quanto pudesse para longe do receptor da mensagem. Em tempos de divisão quase religiosa no espectro político, o mínimo se torna “o máximo”, atirando a regurgitação presidencial ao mesmo status opinativo de alguém que afirma estar chovendo, sem notar que está tomando banho: uma mera opinião. Na mesma semana, os mesmos mecanismos virtuais que lucraram com a fabrica de noticias falsas de Bolsonaro, chegaram à conclusão de que “isso já é demais”, não pelo conteúdo, mas pela má receptividade, leia-se: dores de barriga ao apresentarem seu relatório de lucros para os acionistas.

O laço quase mágico que construiu o arquétipo normativo de Bolsonaro nunca esteve apontado para a defesa de certos valores, ideais ou posições especificas, mas focado em “erguer a bola”, deixando que seja cortada pela opinião pública, já separada em times para os quais o conteúdo da mensagem não representa separação, pois essa é garantida pelo emissor. O jogo de forças está em outro nível discursivo, onde importa posicionar o conteúdo: uns ansiosos por pontuar, vitoriosos no combate a loucura, outros bloqueando, ao manter o conteúdo na linha imperceptível da dúvida e da opinião na qual o corte, ou cerceamento é criminoso, escondendo o crime da mensagem.

Não tão menos criminosas são as declarações anteriores do presidente a respeito de temas como tortura, direitos das mulheres, negros e LGBT’s, ciência, medicina, e todo conjunto de impressões tomadas como opiniões (nojentas, espúrias, arcaicas), tão opinativas quanto confusões entre chuva e chuveiro. Qual a linha divisória entre crime e opinião, quem deve defini-la, e definida, quem deve garantir? Pouco a pouco, o fenômeno das Fake News e a cultura do cancelamento foram laceando tais noções até que conteúdo e emissor da mensagem fossem tomados como proprietários de expressão, ainda que sob pena criminal, a ser definida por termos imediatamente mais rápidos e solenes do que a lei: os termos e condições cancelamento virtual.

O fenômeno do cancelamento foi tomado como regra implícita da nova civilização nascida nas terras  do domínio “.com”. Não havia lei escrita, nem dono, para que qualquer um vestisse a roupa algorítmica que lhe confere existência virtual, viesse com uma novidade não patenteada como uma plataforma de postagens de vídeos, ou vídeos emulando situações cômicas que “viralizam” no momento seguinte. Os animados inventores do mundo virtual, viam nele um novo mundo. Financiados por portentosas estruturas de capital, os tímidos designers lançavam o farolete, a grande-empresa entrava na caverna, realizando a empreitada de transformar o espaço vazio em hiperdimensões da realidade. Já estava demarcada a propriedade, antes que a nova civilização erguida sob o preceito da liberdade total, pudesse arrebatar aquela que tentava purificar do signo das leis. A liberdade do virtual tornava o ímpio cuja garganta era sangrada pelo politicamente correto, o novo cidadão sem fronteiras, ou barreiras visíveis. Adam Smith, certamente, trocaria, nestas terras, sua fabrica de alfinetes, por alfaces na “Colheita Feliz”.

Qualquer regulação era rechaçada, toda expressão era aceita, por que representante do signo de pertencimento procurando uma tribo. As batalhas políticas, jurídicas e econômicas não encontravam raiz para poderem escalpar e o individuo se via no sublime universo que permitia a vazão a sua privacidade: o anonimato, protegido pela barreira das representações, ou a forma superinflada da realidade, negada ou afirmada com superioridade, pois jamais confrontadas com as entidades materiais, quer da lei, ou do dinheiro. Tudo permanecia no fluido espaço, onde a interpretação da mensagem, tornava-a automaticamente opinião, representação sinuosa com poderes para virar do avesso em seu sentido primeiro, e em última instância, ser excluída, preservando incólumes as representações, ou os registros “.com”.

O poder de regular é detido pelos usuários, imaginavam os criadores, prontos para desaprovar o conteúdo até que ele, junto ao seu emissor fossem contidos, navegando como piratas virtuais que impressionavam os desvalidos cujas ideias não eram bem-vindas nos maravilhosos simpósios sobre absolutamente tudo, desde o próximo Guerra nas Estrelas, até amenidades, guardando algum tempo para despejar os conhecimentos opinativos sobre o destino da vida, o presidenciável predileto, e o menos afável, tudo contido nos domínios pertencentes à concordância coletiva. Nessas gigantescas mesas de bar meio caretas, os fenômenos que assustavam os cientistas sociais há uma década, como o vício juvenil pelas redes, ataques, aqui e acolá, as ordens institucionais, o revanchismo em torno de questões como liberalização das drogas, aborto, ou casamento homoafetivo, não se mostravam como sintomas radicais do uso indiscriminado da ferramenta, mas como vulcão em erupção, capaz de atingir todos os lados.

O Estado tão solenemente afastado assistiu seu domínio ser invadido, eleitoralmente, pelo “outsider” via pressão e disseminação virtual de figuras apadrinhadas pelos piratas virtuais que passaram a deter mais poder do que grupos gigantes da comunicação. O segredo era tão obvio, quanto de difícil demarcação: mensagens curtas com sentidos embolados, detratadas ou apoiadas por multidões. O mesmo fenômeno inofensivo que pipocava esquetes bem humoradas, visitando os celulares com a aparente blindagem ofensiva do riso, se tornou espaço tão tóxico a ponto de minar o terreno, onde a opinião podia criar um herói, ou cancelar seu detentor, possivelmente, tornando-o um herói detratado injustamente pelos “extremos”.

A posição mediana se tornava impossível, pois implicitamente compelidos os participantes virtuais ao mecanismo da aprovação, ou desaprovação, de si e dos outros, para os quais nenhum participante poderia se furtar da utilização, caso não fosse um dinossauro. No papel, a internet supõe todas as liberdades compiladas na expressão, onde a marcação moral se dá pela vigilância compartilhada. Uma bela ideia, até a migração das emoções humanas. Até mesmo a ideia de que as ferramentas virtuais iriam democratizar o conhecimento, aproximando as separações materialmente opressoras, dotando a razão natural de conhecimento, foi invadida pela inexistente natureza humana, ao carregar a histórica verdade dos vencedores: não importando o que é dito, importa como é dito, deixando obscuros os beneficiados. As grandes-empresas perceberam anos-luz à frente o potencial da ferramenta, unindo a capacidade algorítmica das plataformas ao critério da máxima exposição: “falem mal, mas falem de mim”.

O terreno político foi pego como avalanche com a eleição de Trump, Bolsonaro e outras mais que transitavam na terra sem leis, incorporando centenas de outros signos de pertencimento e remodelando-os segundo suas intenções. A simples oposição, tornava o opositor um militante espião do globalismo, carregando em seu ato oponível, toda tradição antiespiritual, moderna e antiocidental. O contrário, era verdadeiro, qualquer simpatizante era bem-vindo, seja por carregar igual arquétipo moral, seja por flamejar ainda que lateralmente os mesmos objetivos políticos, soltando labaredas inconfessáveis em público, mas permissíveis na internet.

O assassinato da razão estava garantido, desde que o lado contrario fosse coberto de névoa a ponto de se tornar absurdos, uma opinião com emissário não identificado. Espalhada a opinião carregava as marcas de saber comum, ao mesmo tempo, em que lançava dúvidas sobre a obviedade estabelecida, como o notório caso do terraplanismo. Misturadas, as centelhas abriam a disputa pelo terreno da verdade, cientifica, histórica, ou política, todas flamejando como tochas bandeirantes rumo a terra do desconhecido mundo da ignorância opositora. Fincou-se como termo comum, o relativismo, sob a tenra sensação da impunidade da opinião, da plena defesa da liberdade de expressão. Para qualquer coisa, vale a pena dar vez ao contraditório, mesmo que para detrata-lo oportunamente, pois sobrevivia a crença da autoexclusão dos extremos.

A confissão das plataformas ao cancelarem Bolsonaro, no caso das vacinas, demonstram o quanto as vidraças são impenetráveis, até que a pedra supere a temperança endinheirada. Todos os atos são opiniões, posicionamentos, protegidos pelo ideal da liberdade. Mesmo os empresários para os quais a esquerda se pôs a lamber as botas pela assunção lucrativa de causas identitárias, notaram o perigo da tal liberdade. Perigo maior é o cerceamento, bradam os criadores de conteúdo digitais. Até que ao atingir o clímax chegamos ao parque das experiências desenhado como contrafato, por qualquer Robert Nozick: em defesa da liberdade, temos que subtrair frações dessa mesma liberdade, subvertendo nossa própria causa e caindo no limbo individual dos olhos alheios – nos seus é bom, nos meus… é questão de opinião.

As garras da opinião deixaram de ferir as retinas que a elas dedicavam os ares da reprovação, capturada como personalização da mensagem, entregue ao receptor para causar engajamento, favorável ou contrário. Ao ferir o direito à vida, como no caso de Bolsonaro, ou melhor, os lucros das plataformas de comunicação, o cancelamento pela autoexclusão dos extremos, deixou de ser a ferramenta preferível. Longe de abandonar os meios virtuais e vendo nisso um punch para o engajamento, os criadores de conteúdo revisaram a cortina que os cobria, avistando o perigo de tocarem em questões que demarcassem demais a presença da emissão da mensagem. A terra tem lei, como toda terra do mundo real, a lei do dinheiro. O sentimento de revanche, passou a ser acompanhado pelo medo do alheio, como possível agente cerceador. A terra que privatiza a opinião ao ponto do microscópio, demonstrou seu árido solo como detendo mais do que os olhos do Estado, das leis, ou da observância da mesa de bar. O contrário é atacado e temido, o favorável é penosamente identificado como ocasional. O jogo de posições oferecido as tribos, tomou corpo tão global, que a democracia tornou-se o avesso da liberdade, porque privilegiada do cerceamento do extremo, ou mesmo do criminoso. Parabéns, Mr. Hayek, vossa demarquia, foi finalmente, demarcada: fixa-se como privilegio da propriedade, a única liberdade possível, para a penalização, ou reprodução da avaliação positiva ou negativa de expressões em termos monetários, enquanto a mensagem permanece criminalmente separada do mensageiro, se abençoada pelo cifrão.


Nathan Caixeta – Pós Graduando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da UNICAMP e Pesquisador do NEC/FACAMP

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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