Na dúvida, vá pela esquerda, por Gustavo Noronha

A esquerda precisa apresentar uma agenda com pontos claros que a distinga do que defende a direita, mas, para isso, não será suficiente uma agenda de conciliação de classes. O povo precisa saber exatamente qual o programa que a esquerda apresenta ao país

do Brasil Debate

Na dúvida, vá pela esquerda

por Gustavo Noronha

Se você é capaz de tremer de indignação a cada vezque se comete

uma injustiça no mundo, então somos companheiros” . Ernesto Che Guevara

Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,

humanamente diferentes e totalmente livres”.  Rosa de Luxemburgo

O grupo que assaltou o poder no Brasil apresenta uma agenda para o país com dois pontos bem claros: a flexibilização dos direitos da classe trabalhadora (direitos trabalhistas e previdenciários) e a diminuição do papel do Estado na economia. Uma proposta que jamais foi submetida ao escrutínio popular. No voto, ideias como estas quando explicitadas de maneira honesta são sistematicamente rejeitadas pelas urnas.

Em realidade, tanto os direitos de quem vive da venda de sua força de trabalho como a ideia de um Estado atuante na proteção social, no fornecimento de serviços de educação e saúde e, até mesmo, intervindo em setores considerados estratégicos da economia em nada tem a ver com uma discussão objetiva sobre o que eventualmente seria melhor para o bem-estar geral do povo brasileiro.

Ocorre que a natureza do capitalismo é disfuncional e estas medidas são preventivas para evitar uma natural revolução social que derrube sistema. Antes do colapso soviético, não eram sequer opcionais diante da ameaça do socialismo real. Com o fracasso destas experiências, o desmonte do estado de bem-estar social e a desconstrução qualquer legislação que protegesse o trabalhador das assimetrias na relação de trabalho, surgiram de forma natural.

As organizações dos trabalhadores, desempoderadas de um modelo alternativo, têm agido reativamente desde então com a inerente bandeira contra a retirada de direitos sem, contudo, propor um outro conjunto de medidas.

Não basta enunciar palavras de ordem como “nenhum direito a menos” se, no fundo, o que todo trabalhador sonha é com direitos a mais. Do mesmo modo, não será suficiente denunciar o golpe, gritar “Fora Temer” e pedir eleições (diretas para presidente ou gerais), sem que ao mesmo tempo se apresente uma pauta concreta para classe trabalhadora.

Utilizando-se dos termos que estão na moda, a narrativa vigente apresenta a esquerda como os defensores da corrupção enquanto a direita como aqueles preocupados com os destinos do Brasil. Não será suficiente a demonstração didática de que a corrupção é parte indissociável do sistema capitalista e que, como demonstraram os áudios do Jucá, o golpe foi arquitetado para delimitar o escopo das investigações dos escândalos em curso.

A esquerda precisa apresentar uma agenda com pontos claros que a distinga da direita no projeto de país, mas, para isso, tampouco será suficiente uma agenda de conciliação de classes. O golpe destruiu as ilusões dos que acreditavam nesta utopia. O povo precisa saber exatamente qual o programa que a esquerda apresenta ao país.

Caso devolvam-nos a democracia, uma próxima vitória eleitoral permitiria a implementação de um programa de verdadeiras transformações no país. Do contrário, só restaria um assalto ao Palácio de Inverno.

Neste contexto, entendemos que o tempo de propostas intermediárias passou. O golpe deixou claro que a estratégia da conciliação de classes e de melhorias pontuais no sistema serão sempre insuficientes. Não se afirma aqui que a revolução é o único caminho, mas coloca-se a necessidade da apresentação clara de um conjunto de reformas que mudem de vez o caráter do Estado Brasileiro. O programa mínimo deve ser radical o suficiente para que tenha cara de programa máximo.

Precisa-se, claro, ter ciência de que o aparato midiático segue na mão de poucas famílias pertencentes à velha elite brasileira. Só que, ao mesmo tempo, esses grupos construíram algumas ideias que, ainda que delas se discorde, podem ser usadas na construção de um modelo alternativo de sociedade.

Se aceite, pois, o discurso de que as contas públicas necessitam ser saneadas. Não se pode naturalizar, então, um modelo em que os gastos com juros consumam um orçamento maior que os gastos com saúde e educação somados. “Ah, mas é preciso combater a inflação, dirão os teólogos do deus Mercado”, haja teologia para enxergar inflação de demanda numa recessão.

Para melhorar ainda mais as contas públicas poder-se-ia (uma mesóclise já que o presidente golpista gosta tanto!), por que não, pautar uma forte tributação sobre grandes fortunas, patrimônio e herança? Aproveita-se e discute-se junto a meritocracia de que boa parte da classe média tanto gosta.

Se é para usar o equilíbrio de mercado como um mecanismo de justiça social, é preciso repensar toda a distribuição inicial dos recursos: o direito de herança precisa ser debatido; imposto sobre grandes fortunas deve ser imediatamente implementado; expropriações têm que estar no centro do debate não apenas pela figura da função social da propriedade, mas também para que as dotações iniciais sejam ajustadas adequadamente para um resultado eficiente e socialmente mais justo.

E deve-se aproveitar esse discurso da meritocracia que a elite vende e a classe média compra para discutir o acesso a serviços de educação e saúde da mesma qualidade para todos. Se o discurso é o do mérito, todos devem largar do mesmo ponto. Portanto, é fundamental que a saúde e a educação sejam exclusivamente públicas. Deve-se vedar a existência de provimento privado para tais serviços. Somente quando os filhos da casa grande dividirem a classe ou o leito com os filhos da senzala, poderá se falar em meritocracia.

“É preciso modernizar a legislação trabalhista”, dizem todos os noticiários da grande mídia. Sabe-se o que querem dizer com isso, mas por que não ressignificar estas palavras? Não adianta apenas o discurso da resistência por nenhum direito a menos, a reforma trabalhista urgente e necessária é a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários. Os avanços tecnológicos permitem tranquilamente uma jornada de 30 horas semanais com efeitos positivos inclusive no nível de emprego.

Outra reforma que se alardeia como necessária seria a reforma da previdência para cobrir um suposto déficit. Entretanto, a professora Denise Lobato Gentil já demonstrou que nossa seguridade social é superavitária.

Deste modo, a única reforma necessária nesta questão é um aumento do salário mínimo para que alcance o patamar necessário segundo o DIEESE, atualmente em R$ 3.991,40. Como são recursos que irão para famílias com alta propensão marginal a consumir, teríamos ainda impactos positivos no crescimento econômico com uma política desta natureza – mais emprego formal, maior arrecadação na previdência social.

Desde as fatídicas jornadas de junho de 2013, abriu-se uma brecha que a direita ocupou e a esquerda precisa retomar. A pauta inicial daquele movimento dialogava diretamente com o modelo de cidade, as eleições municipais estão aí e o campo progressista precisa claramente colocar no debate a reforma urbana. Faz-se necessária pauta que inclua desde o transporte alternativo em ciclovias ao transporte urbano público. Precisa-se debater claramente a gentrificação dos espaços públicos, pautar o IPTU progressivo, apresentar uma política habitacional que não envolva remoções dos mais pobres etc. As cidades têm que pertencer aos seus cidadãos e não aos endinheirados que nela vivem.

A reforma agrária que o Brasil perenizou para não fazer precisa de fato acontecer para que seja alcançado o sonho de José Bonifácio, Joaquim Nabuco, João Goulart e tantos outros.

Se nos tempos de crescimento econômico a reforma agrária era necessária, com a crise ela tornou-se urgente. Trata-se de uma política que fortalece o combate à miséria tanto na via da produção de alimentos como na inclusão produtiva. Constitui-se ainda como uma importante ferramenta auxiliar para enfrentar os constrangimentos do processo inflacionário.

Estudos econômicos sobre economias de escala na agricultura demonstram que a grande propriedade possui custos crescentes de escala. Custos de gerenciamento, logística e mão de obra, a imprevisibilidade meteorológica e a volatilidade dos preços internacionais são alguns fatores que nos permitem afirmar que o setor agrícola não possui características de uma atividade capitalista no senso comum.

Ademais, todas as nações cujo padrão de desenvolvimento é idealizado pela grande maioria da sociedade brasileira passaram por um processo, quase sempre radical, de democratização do acesso à terra.

Uma reforma agrária radical é, por fim, um mecanismo mais imediato de reforma política hoje disponível. Se temos uma bancada ruralista fortalecida que ousa propor o desmonte das políticas de regularização de territórios quilombolas e indígenas e busca ressignificar o trabalho escravo, isto se deve à não realização de uma profunda e radical reforma agrária. É a principal alternativa para quem aposta no fortalecimento da democracia com o desempoderamento das elites tradicionais.

Deste modo, apresentando ao menos este conjunto de propostas, pode-se chegar às pessoas e dizer: na dúvida, vá pela esquerda.

Gustavo Noronha é economista do Incra

Redação

11 Comentários

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  1. Boa análise, porém, data

    Boa análise, porém, data venia, ela não foi ao cerne do problema.

    O problema da tal de “esquerda” ( que eu acho que não existe!) não se prende a uma questão material.

    Noutras palavras, não se trata mais de apresentação de propostas.

    Trata-se de implementação de propostas.

    A questão, portanto, está para a instrumentalização, isto é, do “como fazer”.

    Apenas um exemplo ilustrativo:

    Do conjunto das Amebas até o conjunto dos  “Einsteins”  já  se tem notícia de que a Comunicação social nesse país é dominada por oligopólios familiares. Tanto é verdade que é possível até nominá-los.

    Uma flagrante, descarada, despudorada inconstitucionalidade!

    A pergunta é:

    Por que não se combate, efetivamente, essa inconstitucionalidade?

    Respostas possíveis, de acordo com o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:

    Ou não se quer combater;

    Ou não se quer combater;

    Simples assim. 

    Conclusão:  A esquerda NÃO QUER combater a FLAGRANTE INCONSTITUCIONALIDADE das concessões de rádio e televisão no país.

    Então,  cara esquerda inerte, aguarde sentada a implementação de suas propostas lá num futuro incerto, longe, muito longe, para além da sua utopia!

     

     

     

     

  2. O complexo da esquerda

    Gustavo Noronha indicou o caminho certo. Conciliação de classes foi um sonho que não deu certo. Quem estava certo, la atras, antes de Lula ganhar sua primeira eleição era José Dirceu… Tinha que ser uma revolução sim (como temos medo disso, hein?! E agora tomamos o fascismo na cara e estamos vivendo num estado de exceção…). Revolucionar o sistema educacional, fazer as reformas agraria necessaria, reforma do sistema politico, reforma total do judiciario, reforma do meios de comunicação, do sistema tributario…. Por que tanto medo ? Tanta covardia? A conciliação so levou à perdição do PT e ao desastre que estamos vivendo.

    A bandeira agora tem que ser explicita, clara, com propostas bem diferentes desse Estado que os golpistas querem para si.

    1. Foi um erro tirar 40 milhões

      Foi um erro tirar 40 milhões da miséria, o Bolsa Família, o Mais Médicos, O programa de cotas, as escolas técnicas, o Minha Casa Minha vida,  etc., etc.,  Tinha que permanecer miúdo,  latindo como um cãozinho metido a brabo e deixar oa direita governar, como em São Paulo, e ficarmos lacerdisticamente xingando, esbravejando conspirando….E o tempo passando, os 40 milhões esperando…

       

      1. Não vamos nunca sair do lugar assim

        Que bobagem. Não é disso que se trata. Isso tudo é muito importante, mas diga ai, impediu de o PT cair ? Parace que é impossivel de entender que com “anistia” a esquerda não vai nunca governar pra valer. Que o diga José Dirceu que paga com sua liberdade.

        1. Ué, o Pt está fora do poder

          Ué, o Pt está fora do poder porque houve um golpe,  não é ? Ele venceu a quarta eleição seguida e caminhava para ganhar a qquinta, em 2018, com Lula. Ainda não entendeu que o golpe, como em 54 e em 64 foi dado para impedir os governos progressistas de avançarem melhorando a vida do povo trabalhador ?

           Acha que com  máximo de 100 deputados os progressistas sozinhs conseguiriam construir tudo o que foi construido ?  Como Jãnio e Collor ? Culpar a vítima pelo crime, a estuprada pelo estupro, o golpeado pelo golpe é justo ?

          1. Pois é

            Mas vc foi ao ponto. O golpe. E teremos sempre golpes, se a esquerda não mudar a maneira de atuar. O que foi feito e suas consequências estão ai para entendermos que sem reformas, nunca a esquerda governara plenamente. Estara sempre nas mãos de marinhos, partidos fisiologicos, procuradores e juizes inescrupulosos… e o povo, sem compreensão, tal qual em 2016, não sabera defender quando necessario.

  3. O sonho de José bonifácio é

    O sonho de José bonifácio é essa patifaria que está aí… não a toa, a família milita na nossa direita desde sempre e agora está no PSDB.

  4. Fascista

    Copiando e colando:

    “Sempre é oportuno recordar o pensador Norberto Bobbio, para quem o fascista não combate de verdade a corrupção, apenas emprega um discurso cínico da corrupção para tomar o poder: ‘O fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso na Itália em 1922, na Alemanha em 1933 e no Brasil em 1964. Ele acusa, insulta, agride como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso, um sociopata que persegue carreira política. No poder, não hesita em torturar, estuprar, roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos’”.

  5. Com funcionários públicos

    Com funcionários públicos ideologicamente tão superados, com tantas incongruências e mentalidade despótica, não surpreende o serviço de péssima qualidade oferecido aos brasileiros.

    O articulista, ao mesmo tempo que se mostra indignado com o que seria um golpe antidemocrático, admite descaradamente a revolução (pela força, obviamente). Ou seja, há golpes justos (o dele) e injustos (dos outros).

    O infeliz cogita até discutir o direito de herança. Isso em parte decorre de seu régio salário de servidor público, com garantia de aposentadoria integral, quando frequentemente não existe preocupação de formar um pé de meia para a velhice. Sem formar reserva, a duríssimas penas, a preocupação com a herança é mesmo nula.

    Inocentemente, o articulista propõe um salário mínimo de quatro mil reais (por que não logo oito mil), sem se preocupar como isso pode ser pago, pois afinal, seu próprio salário é creditado, trabalhando ele bem ou mal, os recursos do Estado são infinitos. Gente assim nem imagina que cada um tem que gerar renda para pagar o próprio salário.

    As cidades têm que pertencer aos seus cidadãos e não aos endinheirados que nela vivem. O que faremos com os endinheirados: paredón ou guilhotina, talvez. Mas não com os endinheirados funcionários públicos, claro.

    A atividade que tem salvo as contas do país é o agronegócio, único setor onde somos mundialmente competitivos. Mas não, o ilustre economista pontifica que estudos econômicos sobre economias de escala na agricultura demonstram que a grande propriedade possui custos crescentes de escala.

    Que tristeza…

     

  6. Via eleitoral outra vez?

    Enfim, pouco se propõe alem dos caminhos institucionais já rompidos pelos conservadores e a direita. Nao ha propostas que a esquerda proponha que nao seja pelo caminho do confronto. Fazer propostas que sejam abraçadas eleitoralmente é seguir no caminho que já estamos, aliás, que destrói o PT. 

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