Na noite tenebrosa e escura, Marielle encontra com quem falar, por Sebastião Nunes

A morte de Marielle era apenas a trombeta que anunciava a entrada triunfal no Brasil dos Quatro Cavaleiros do Mal Absoluto

Trêmula e horrorizada, a mulher que havia sido muito bonita tentou apoiar-se no chão. Não havia chão. Tentou encostar a mão na testa, mas não encontrou as mãos, nem sabia onde estava sua testa. Tentou gritar, mas nenhuma voz lhe saiu da garganta. Quis andar, mas não sentiu as pernas.

– Acalme-se, Marielle – disse uma voz na escuridão absoluta. – Você está morta e precisa compreender que está morta. Pode demorar um pouco, mas você vai entender que foi assassinada e não pertence mais ao mundo dos vivos.

– Não posso estar morta – gemeu a mulher que havia sido muito bonita. – Agora mesmo estava falando com meus amigos, a gente estava decidindo o que fazer. Eles estão aqui comigo. Ninguém saiu daqui!

– Saiu sim, Marielle, todos saíram apavorados faz alguns minutos – continuou a voz. – Até você compreender que morreu levará algum tempo. Ninguém sabe quanto tempo, mas você compreenderá, mais cedo ou mais tarde.

 

COMEÇANDO A COMPREENDER

A mulher que havia sido muito bonita tentou olhar em volta, mas não conseguiu mover a cabeça, nem sabia se tinha cabeça.

– Ao menos posso falar? – perguntou ela, ansiosa.

– Falar, pode – respondeu a voz. – Mas por enquanto só pode falar comigo, pelo menos enquanto não tiver certeza de que está morta.

– E quem é você? – perguntou a mulher que havia sido muito bonita. – Por que está aqui comigo?

– Não sei, Marielle – respondeu a voz. – Talvez eu seja você mesma, talvez eu seja a sua consciência ainda viva, sua consciência que ainda não morreu, mas não tenho certeza. Sei apenas que estou aqui.

– Você viu o que aconteceu? Viu quem me matou? Sabe para onde ele foi?

– Vi tudo, Marielle – continuou a voz. – Vi o que aconteceu, vi como aconteceu, vi o homem que te matou, sei por onde fugiram. Ele e o seu comparsa.

– Então por que não denuncia eles?

– Porque não posso, Marielle. Tudo o que posso fazer é conversar com você.

 

A VERDADE, MUITO DEVAGARINHO

– Como é que não pode? Alguém tem que denunciar esse assassinato. Se estou morta, se me mataram, alguém precisa responder por isso. Alguém é responsável!

– Sei disso, Marielle, sei muito bem disso – continuou paciente a voz. – Mas sei que ninguém vai responder por nada. Nem quem te matou, nem quem mandou te matar, nem quem está por trás de quem mandou te matar, nem quem está por trás de tudo o que aconteceu hoje aqui.

– Mas como tem tanta certeza?

– Já disse que não sei, Marielle. – Eu também não compreendo. Eu também não sei o que fazer, eu também não posso sair daqui nem fazer nada.

Lentamente, muito lentamente, a mulher que havia sido muito bonita, a mulher que era apenas um pobre corpo morto e ensanguentado, compreendeu que não havia nada a fazer. Compreendeu que verdade e mentira estavam tão entrelaçadas que…

– Mas eu tenho amigos – tentou mais uma vez a mulher que havia sido muito bonita. – Decerto eles farão alguma coisa. Vão descobrir tudo!

– Sim, Marielle. Sei que eles farão tudo o que puderem. Sei que tentarão de toda maneira descobrir o assassino e quem está por trás do assassino e quem está por trás de quem está por trás do assassino e quem está por trás de quem está por trás de tudo. Sei que farão tudo, mas sei também que não conseguirão nada.

 

A ESCURIDÃO QUE NÃO ILUMINA

A mulher que havia sido muito bonita e agora era apenas um pobre corpo morto e abandonado a si mesmo em sua morte soluçou, um soluço quase inaudível.

– Acho que entendi – sussurrou Marielle. – Quem mandou me matar não é apenas uma pessoa. Quem mandou me matar é uma enorme Consciência do Mal, como se fosse um imenso cérebro formado por dezenas ou centenas de pessoas, todas com o mesmo objetivo, uma vontade maligna, um objetivo monstruoso.

– Também acho que é isso, Marielle – disse a voz noutro sussurro mais inaudível que o soluço quase inaudível de Marielle. – Também acho que é o Mal Absoluto, uma rede de dezenas ou centenas de criaturas pervertidas, de pessoas malignas e totalmente ignorantes do que significa estar vivo, ter um destino, um ideal, uma esperança.

Então as vozes se apagaram. O corpo da mulher que havia sido muito bonita foi jogado de um lado para o outro, enquanto o mais denso silêncio crescia em volta dela e da escuridão em que ela estava.

A morte de Marielle era apenas a trombeta que anunciava a entrada triunfal no Brasil dos Quatro Cavaleiros do Mal Absoluto.

Sebastiao Nunes

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