Nabuco, o abolicionismo e as desigualdades raciais no Brasil, por Walace Ferreira

Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo (1883), deu passos à frente de seu tempo ao analisar a escravidão do ponto de vista humanitário, social e econômico

Nabuco, o abolicionismo e as desigualdades raciais no Brasil

por Walace Ferreira

Em tempos nebulosos nos quais políticas sociais são questionadas, revisitar um dos maiores defensores da causa negra brasileira representa uma importante reflexão sobre a origem das nossas desigualdades de cor. A escolha pela escravidão negra por parte da elite colonizadora, branca e europeia, significou a implantação de raízes sociais rigidamente marcadas pelas diferenças de raça e cujos efeitos permanecessem vivos até hoje.

Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo (1883), deu passos à frente de seu tempo ao analisar a escravidão do ponto de vista humanitário, social e econômico. O livro é repleto de denúncias contra a estrutura social da época, não poupando sequer a Igreja Católica por sua omissão, denunciando a posse de homens e mulheres escravos por todo o clero secular. 

O abolicionismo representa o Brasil do século XIX e suas mazelas, sendo a mais expressiva obra no entendimento da formação do povo brasileiro antes de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933). Nabuco também foi o primeiro a vislumbrar o surgimento de uma raça brasileira, uma raça de mestiços, formada pelo congraçamento de todos os povos construtores da nossa nacionalidade. Esse teria sido o fator positivo da vinda do negro para cá, diante do grande mal representado pelo escravismo.

O escravagismo, em Nabuco, é tratado em sentido abrangente. Vai além da relação do escravo com o senhor. Envolve uma dependência em que comércio, religião, pobreza, indústria, Parlamento, Coroa e Estado se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática.

A escravidão tornou-se um sistema complexo que perpassou mais de trezentos anos da vida brasileira afetando o caráter, o temperamento e a moral da população. Nas palavras de Nabuco, das três principais correntes de sangue que se confundiram nas nossas veias – o português, o africano e o indígena – a escravidão viciou, sobretudo, os dois primeiros. O cruzamento dos caracteres da raça negra com os da branca levou a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da outra.

O combate ao escravismo como projeto de desenvolvimento econômico para o Brasil significaria que, sem a emancipação dos cativos, o país jamais firmaria a sua independência nacional. Sem liberdade individual não haveria civilização tampouco sólida riqueza, considerando que no século XIX a Europa já vivia um século de Revolução Industrial. A escravidão gerou miséria e desigualdade, chegou queimando florestas, minerando e esgotando o solo, deixando-os desgastados ao fim do ciclo de um empreendimento agrícola extremamente exaustivo.

O abolicionismo, na interpretação deste defensor dos ideários do Novo Mundo, não se referia apenas à libertação dos escravos presos. Haveria um destino mais preocupante, a do futuro, caracterizada por apagar os efeitos de um regime de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores. O abolicionismo configuraria-se num movimento político visando o bem do escravo e sua libertação, assim como a reconstrução nacional sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade.

A contínua desigualdade social brasileira que atinge, sobretudo, a população negra nos mostra que o abolicionismo, tal como idealizado por Nabuco, ainda não aconteceu. As diferenças sociais entre as raças são mais fortes do que a aparente harmonia que as une. Nabuco sonhou com um país rico e desenvolvido, o que só ocorreria através do fim amplo da escravidão e da integração do negro num projeto de nação. O tempo vai mostrando que o seu argumento estava correto, porém sua efetivação ainda segue na turbulenta estrada da nossa história.

A inserção da modernidade por aqui, bem como o desenvolvimento da cidadania plena, sempre foi confusa e incompleta, e analisar este processo de modo eficaz nos remete inevitavelmente a uma cuidadosa consideração do viés racial, cuja contribuição de Nabuco é extremamente necessária.

Walace Ferreira – Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ e Professor Adjunto de Sociologia do CAp-UERJ.

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