O bolsonarismo/morismo é um novo tipo de fascismo ou uma velha estratégia literária?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Eles são personagens fantásticos utilizando uma narrativa fantástica para provocar ondulações violentas na superfície da realidade brasileira.

Filme: O Labirinto do Fauno

O bolsonarismo/morismo é um novo tipo de fascismo ou uma velha estratégia literária?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A chegada ao poder de Jair Bolsonaro produziu dois fenômenos interessantes. O primeiro é a destruição do sistema constitucional por meio de decretos, algo que reforçou a necessidade de judicialização da política. As derrotas que o novo governo está sofrendo na Justiça são imensas e produzindo uma irritação política evidente.

O desejo do tirano de “cortar as asas” dos Ministros do STF é evidente e já foi enunciado várias vezes. Entretanto, isso não poderá ser feito dentro da normalidade de exceção instaurada pelo golpe de estado de 2016. O problema é que Bolsonaro não está em condições de usar a força bruta para impor um “novo tipo de legalidade”. Esse impasse não pode ser desfeito.

Por outro lado, a oposição também não se sente suficientemente convencida de que será preciso contestar o neoliberalismo nas ruas. Alguns, como Ciro Gomes, se recusam a fortalecer um bloco democrático para deter o avanço da ditadura. Outros esperam pacientemente a autodestruição econômica do governo Bolsonaro. Esse parece ser o caso de Lula, que oscila entre fazer discursos duros e dançar tranquilamente entre quilombolas.

A economia vai de mal a pior. O país cresceu 0,6% em relação ao ano passado (resultado que será revisado pelo IBGE em razão de ter sido contestado pelo Financial Times), o que é nada ou quase nada. O fracasso do neoliberalismo é evidente. A destruição do mercado interno não se refletiu num tsunami de investimentos externos. Muito pelo contrário, a contração econômica forçada por Paulo Guedes provocou uma fuga de capitais do nosso país.

O Brasil era a 6ª maior economia do planeta em 2011. O prazo de validade de Jair Bolsonaro está acabando. Após 11 meses de governo ele não conseguiu tirar Brasil do 9º lugar em que ele foi colocado por causa da crise política e econômica que começou a ser criada quando Aécio Neves se recusou a aceitar a derrota eleitoral para Dilma Rousseff.

Na internet uma guerra continua sendo travada. De um lado os “spindoctos” e os robôs bolsonaristas infernizam a vida dos ideólogos de esquerda, que respondem com um discurso que oscila entre a ironia e a seriedade. Quando não é chamado de idiota mentiroso, Bolsonaro é acusado de ser um verdadeiro fascista.

A ambiguidade criada pelas Fake New espalhadas pelos filhos do presidente é programática. Ela produz aquilo que os mágicos chamam de “misdirection”, pois obrigam o público e a oposição a olharem para um lugar quando algo diferente está ocorrendo em outro. O fracasso da economia, entretanto, não está conseguindo enganar os economistas brasileiros e estrangeiros. Aplica-se aqui um princípio dolorosamente aprendido pelos nazistas ao fim da II Guerra Mundial.

Sérgio Moro e Jair Bolsonaro são personagens fantásticos utilizando uma narrativa fantástica para provocar ondulações violentas na superfície da realidade brasileira. Por isso reproduzo aqui parcialmente um estudo que fiz sobre a personagem fantástica quando estava na Faculdade de Letras.

Aristóteles foi um dos primeiros teóricos a debruçar-se sobre a questão da personagem. Partindo do conceito de mimésis, ele enfatizou a semelhança entre os seres fictícios e o homem. Além disso, como assinala Fernando Segolin, o Estagirita “fala-nos também de uma personagem possivelmente humana, dotada de uma humanidade ideal.” (SEGOLIN, Fernando – Personagem e Anti Personagem, Cortez & Moraes Ltda., São Paulo, 1978). Como a semelhança entre a personagem fantástica e o homem ou entre ela e uma humanidade ideal só é possível depois de um elaborado processo de associações através das quais o leitor decodifica a metáfora do texto, desde logo percebe-se a inadequação do conceito aristotélico para defini-la.

O ser fantástico representa em si mesmo uma quebra das expectativas, uma subversão da mimésis. Para entendê-la, será, portanto, necessário compreender esta subversão.

Tratando das interações entre retórica e ideologia, Umberto Eco assinala que “toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetivada na medida em que traduz em mensagens que também subvertam os sistemas de expectativas retóricas. E tôda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus momentos definidos como ‘formalista’, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias nas quais ele se identificava.” (ECO, Umberto – A estrutura ausente, Edusp, São Paulo, 1971).

Eco nos dá uma pista importante para entender a personagem fantástica. Sua inadequação ao conceito de mimésis aristotélico denuncia tanto a crise deste conceito quanto a crise da própria língua.

Incapaz de exprimir a mensagem do artista em razão de sua coerência, a língua é subvertida através da quebra de expectativas e o fantástico é instaurado no texto através da personagem anti-mimética. Rompendo as expectativas do discurso, ela questiona profundamente a ideia que o homem tem de si mesmo. Nesse sentido, pode-se dizer que a literatura fantástica é altamente ideologizada em virtude das características da personagem do gênero. Aliás, é o trabalho de construção da personagem que confere a marca distintiva da literatura fantástica.

O conceito de personagem formulado por Aristóteles é capaz de ajustar-se às mais diversas personagens literárias. Qualquer que seja a escola, a personagem sempre refletiu ou procurou refletir um aspecto do homem ou de uma humanidade ideal. Tanto D. Casmurro de Machado de Assis, quanto Werther de Goethe e Otelo de Willian Shakespeare retratam o homem apaixonado. O João da Paz de Érico Veríssimo também. Só que o último é um não homem.

João da Paz é um morto que se levanta do caixão e retorna a Antares para denunciar como foi morto por tortura e tentar proteger a esposa e o filho que está por nascer. Assim, não é possível estabelecer qualquer relação entre ele e Bentinho, Werther e Otelo. O amor que João da Paz sente por Rita Paz é de uma natureza distinta do experimentado pelas outras personagens citadas. O amor de que fala Érico Veríssimo é capaz de vencer a morte. É óbvio que isto se trata de uma metáfora, afinal a morte é absoluta e ninguém retorna dela. Todavia, Veríssimo quer nos dizer que existem sentimentos mais fortes, mais delicados que o desejo de Werther por Carlota e o ciúme de D. Casmurro por Capitu e de Otelo por Desdêmona.

É destes sentimentos que a personagem fantástica nos fala. João da Paz quebra as expectativas que temos do amor. Seu amor por Rita Paz é capaz de transcender o desejo e o ciúme, por isso mesmo, só poderia partir de um morto. E é aqui que realidade e ficção se interpenetram no texto. Afinal, para amar é preciso despojar-se do egocentrismo e isso equivale a morrer de alguma forma. Veríssimo poderia muito bem tratar do tema através de uma personagem mimética. Mas será que fazendo isto o texto surtiria o mesmo efeito?

Geralmente considera-se plana a personagem que recebe do meio “sua linguagem, seus gestos, seu porte, seus hábitos e mesmo seus modos de pensar e sentir. Por isso, funciona como uma espécie de índice social.” (MOISÉS, Massaud – A criação literária, 3ª edição, Melhoramentos, São Paulo, 1970). A personagem redonda, ao contrário, obedece aos seus próprios impulsos e apresenta modificações ao longo da narrativa.

Esta distinção, útil para classificar as personagens miméticas, é um tanto problemática quando tratamos de personagens fantásticas. É claro que as mesmas podem representar um padrão, mas apenas simbolicamente. Afinal, como desde logo representam uma quebra das expectativas, sempre deveriam ser consideradas redondas. Mesmo quando sua conduta permanece inalterada, a personagem fantástica está sujeita a transformações, como é o caso de Dona Rebeca em “A mulher azul” de Jorge Miguel Marinho. Neste conto a tensão não decorre das modificações da personagem, mas da forma como ela passa a ser vista pelos familiares à medida que muda de cor (envelhece). Às vezes, a conduta da personagem indica que ela é aparentemente redonda. Este é o caso, por exemplo, de Dora em “O complexo de Ephedron”, do mesmo autor. Porém, à medida que se transforma em homem, Dora se torna aquilo que sempre foi: uma pessoa desconhecida para o esposo. Como então qualificá-la, plana ou redonda?

Analisando o papel que cada ser fictício desempenha na narrativa, Propp concluiu que “a personagem nada mais é que um feixe de funções, constituído pelos predicados que designam suas ações ao longo da intriga.” (SEGOLIN, Fernando – Personagem e Anti Personagem, Cortez & Moraes Ltda., São Paulo, 1978).

O conceito de Propp pode muito bem ser aplicado à personagem fantástica, por dois motivos. Primeiro, Propp não parte da noção aristotélica de mimésis. Todo e qualquer ser fictício, mesmo o não mimético como é o caso do ser fantástico, pode ser considerado um feixe de funções na narrativa. Segundo, este teórico não se preocupa em qualificar as ações das personagens para classificá-las, antes classifica-as apenas segundo as funções que desempenham no texto. Além destas duas grandes virtudes, a teoria de Propp abre caminho para um estudo mais profundo da personagem fantástica. Ele procurou identificar as funções das personagens no texto e é nele, na sua linguagem, que devemos buscar as raízes dos seres fictícios não miméticos segundo Umberto Eco.

Feito este pequeno esforço teórico, cremos ser possível esboçar uma definição provisória para a personagem fantástica. Fantástica é a personagem que rompe com o conceito aristotélico de mimésis, subvertendo todas expectativas ideológicas para cumprir uma função retórica, que é obrigar-nos a repensar o homem, o mundo e a linguagem. Por isso, este tipo de personagem não pode ser qualificada como plana ou redonda. Estes dois conceitos são inadequados para definir suas ações, porque, como vimos, a personagem fantástica pode ser redonda quando plana e plana quando redonda.

Para compreender e derrotar a estrutura narrativa do bolsonarismo/morismo nós devemos sair da realidade e das suas representações ideológicas tradicionais e adentrar nos domínios da literatura. Lá serão encontradas as pistas que ajudarão a construir estratégias narrativas para neutralizar a “misdirection” empregada como recurso governamental que transforma a realidade em ficção criando um mundo em que a violência política parece ser a única solução para o impasse brasileiro.

Não é muito difícil entender o que está ocorrendo no Brasil. Stephen Bannon ajudou a família Bolsonaro a criar e a comandar um governo The Twilight Zone cujas ações mais absurdas, irracionais, ridículas e pervertidas seguem o padrão da sitcom Futurama. O Ministro da Justiça é um copycat de Bender. Desde que trocou a condenação e prisão de Lula por um Ministério, Sérgio Moro age de maneira tão antiética e canhestra quanto o personagem criado por Matt Goening.

Aquilo que na ficção faz rir na realidade é uma fonte de perigo institucional. Impelido por uma energia criminosa inesgotável e/ou constantemente recarregada por norte-americanos, o Bender da Justiça está disposto a autorizar os policiais a matar brasileiros para impedir a oposição de voltar ao poder e responsabilizá-lo pelos crimes que ele cometeu.

Uma coisa é certa. Nós precisamos sair dos limites da discussão ideológica tradicional para captar a verdadeira natureza fantástica do bolsonarismo/morismo. Não será possível derrotar os dois tiranos sem compreender a estrutura narrativa criada por Bannon para ser empregada por seus pupilos brasileiros.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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