O Brasil à sombra de um pesadelo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Segundo Nietzsche o que adoça a vida é, sem dúvida alguma a ilusão. Pouco importa se ela é o conhecimento, a arte ou a religião. Mesmo quando estamos iludidos não deixamos de ser aquilo que somos e que não somos.

O Brasil à sombra de um pesadelo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nietzsche disse certa feita que:

“É um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as suas criaturas, e de obrigá-las a prosseguir vivendo. A um algema-o o prazer socrático do conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio a ferida eterna da existência, a outro enreda-o, agitando-se sedutoramente diante de seus olhos, o véu de beleza da arte, àqueloutro, por sua vez, o consolo metafísico de que, sob o turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna; para não falar das ilusões mais ordinárias e quase mais fortes ainda, que a vontade mantém prontas a cada instante.” (O nascimento da tragédia, Friedrich Nietzsche, Companhia de Bolso, São Paulo, 2007, fls. 106)

Não é difícil perceber nesta afirmação do filósofo alemão um eco distante do famoso poema de Píndaro:

Efêmeros! que somos?
que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sobre ele a luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.

Segundo Nietzsche o que adoça a vida é, sem dúvida alguma a ilusão. Pouco importa se ela é o conhecimento, a arte ou a religião. Mesmo quando estamos iludidos não deixamos de ser aquilo que somos e que não somos. O homem é o sonho de uma sobra, pois está fadado a mergulhar sempre mais profundamente nas ilusões que ele mesmo cria para compreender o mundo, para se distrair ou para se distanciar dele.

A proximidade entre o homem e o mundo é sempre dolorosa. Quando estava no poder a esquerda se preocupa com o povo e não prestava muita atenção na direta. Ao retornar ao poder a direita se preocupa com si mesma e não presta qualquer atenção ao povo. A ilusão de uma facção política leva inevitavelmente à sua superação. Mas quando rasgam o tecido social as ilusões e as desilusões não deixam de causar tragédias.

A maior tragédia segundo Foucault é não localizar as principais fontes das ilusões:

“Parece-me que a verdadeira tarefa política, em uma sociedade como a nossa, é criticar o funcionamento das instituições, que dão a impressão de ser neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência política, que sempre foi exercida de maneira obscura, por meio delas seja desmascarada, para que se possa combatê-las.” (Natureza Humana vs. Poder, o debate Chomsky/Foucault, Martins Fontes, São Paulo, 2017, p. 51)

É óbvio que o filósofo francês rejeita a tese de Nietzsche e se liga à tradição iluminista que realizou ou tentou realizar a última parte do poema de Píndaro. Mas isso não impede que nós o coloquemos dentre aqueles que são vítimas da ilusão socrática. Como Sócrates, Foucault acredita que a tarefa política é desfazer as ilusões criadas pelas instituições para que elas se mostrem como realmente são: instrumentos de coação.

Quando estava no poder a esquerda se recusou usar sistematicamente a violência estatal contra a direita. Esse erro (ou acerto) a direita nunca está disposta a cometer. Ilusão da democracia de um lado. Ilusão do autoritarismo do outro. Mas é preciso reconhecer a verdade factual. Foucault estava certo, nossas instituições foram desenhadas para dar a impressão de neutralidade e para realizar o sonho da direita.

O Estado brasileiro não foi projetado para incluir a população. Desde que foi criado ele existe para legitimar a exploração violenta da maioria da população por uma minoria que nem mesmo se preocupa com o futuro do país. A ilusão do colonialismo (associada ao sonho do enriquecimento rápido numa terra sem Lei e sem Rei) é muito forte. Na fase atual ela alimenta o pesadelo de uma nação que será esmagada sob as botas do Exército. Os generais já controlam quase tudo para, paradoxalmente, poder melhor submeter nosso país (ou melhor, o país deles) às diretrizes do Pentágono.

Nesse ponto, o leitor deve ter notado que eu ainda não falei nada dos juízes. Isso é desnecessário. Em seu livro Judiciário Tutelado – STF sob o peso dos coturnos, Projeto Editorial Praxis, Bauru, 2019, Hugo Cavalcanti Melo Filho demonstrou satisfatoriamente que o Judiciário não é mais um poder independente nem almeja sê-lo. Desde o golpe de 2016 o STF prefere ser tutelado pelo Exército. A cúpula judiciária nem mesmo disfarça ter qualquer independência, pois um general monitora até as idas de Dias Toffoli ao banheiro. Luiz Fux, por sua vez, já demonstrou que está disposto a ajudar os generais a urinar.

“…onde houver relativização da independência judicial – da liberdade e da isenção no exercício da jurisdição -, a democracia será precária, ou, no limite, provavelmente deixará de existir.” (Judiciário Tutelado – STF sob o peso dos coturnos, Hugo Cavalcanti Melo Filho Projeto Editorial Praxis, Bauru, 2019, p. 85)

A democracia deixou de existir no exato momento em que o Exército invadiu o STF.

Os soldados brasileiros preferem uma ilusão pacífica à qualquer outra que seja violenta. Sempre que é necessário eles se consideram derrotados antes mesmo de combater o império dos olhos azuis. O Brasil é o sonho de uma sombra. O Exército brasileiro é a sombra de um pesadelo que se recusa a terminar. Independência ou morte? Não! A pátria é grande mas o mato é maior.

Nosso Exército não é foucaultiano, nem socrático. Nietzschiano, a única instituição brasileira que está funcionando prefere a desilusão da Lava Jato (essa derrota sem batalha que foi previamente combinada) à ilusão de uma vitória conquistada com sangue que possa garantir a nossa independência. O Brasil só deixará de ser uma colônia norte-americana no dia em que começar a III Guerra Mundial. Entretanto, antes do fim desse mesmo dia o planeta inteiro terá sido destruído.

Até mesmo uma sombra pode ter brilho. Quando as bombas nucleares brilharem nosso país terá realizado enfim seu verdadeiro sonho. Mas ninguém poderá tirar proveito dele. Nem mesmo essa extrema direita que chegou ao poder prometendo mundos e fundos e que se esforça para brutalizar ao máximo uma população incapaz de se rebelar. Nenhuma rebelião é possível quando as ilusões ordinárias são fortes demais e mobilizam todas as vontades sempre que nos preparamos para uma festa popular.

Um fato curioso e essencial: nem mesmo um surto de coronavírus seria capaz de interromper o carnaval brasileiro. Essa disposição de correr todos os riscos sem almejar qualquer benefício político diz quase tudo sobre o nosso país. Nós somos efêmeros.

Se Píndaro tivesse nascido em Pindamonhangaba ou em Santana do Pindaíba ele provavelmente diria que “o homem brasileiro nasceu à sombra de um pesadelo”. Nesse caso a alteração dos fatores modificaria totalmente o resultado da poética grega. Não somos gregos, nem latinos. Latimos, porque os nossos generais são vira-latas servis dos sargentões gringos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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