O estouro da manada acerta as contas com o mercado, por Luís Fernando Vitagliano

Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil

do Brasil Debate

O estouro da manada acerta as contas com o mercado

por Luís Fernando Vitagliano

Será que mesmo fazendo as reformas, e obtendo superávit nas contas, o novo governo manterá baixa a taxa Selic? É provável que não, que haja aumento das taxas da dívida ainda que em situação fiscal confortável, porque essa é a lógica do mercado

A maior atenção em relação ao governo deve ser em seus aspectos econômicos, mais especificamente em relação às suas decisões macroeconômicas. Poucos brasileiros sabem que o orçamento da dívida pública chegará a 300 bilhões por ano (esse número pode aumentar para 400 bilhões se somarmos as principais estatais e os estados). Menos brasileiros ainda vão saber fazer as contas macroeconômicas que possam esclarecer as opções do novo governo.

Mesmo com a menor taxa juros desde o Plano Real (Selic a 6,5% a.a.), o crescimento da dívida vem se agravando desde a crise de 2014 e faz com que tenhamos uma parte significativa do orçamento comprometida com os serviços de juros e rolagem de dívida. Neste quadro, a pergunta que interessa a respeito dos dados macroeconômicos é se (e quando) a tendência de alta do endividamento vai se inverter?

Segundo a lógica do mercado, a reforma da previdência é necessária, porque a previdência compromete cerca de 10% do orçamento público, é o segundo maior gasto (depois, obviamente, do próprio serviço da dívida). Se a previdência for equacionada (nem vamos entrar no mérito se é ou não deficitária, porque isso exige cálculos de metodologia e demografia – mas vamos assumir o argumento do gasto), há uma sinalização para o mercado de que o serviço da dívida será cumprido e, portanto, não haveria necessidade de aumentar o valor do juro básico como prêmio de risco. Sendo desnecessário o aumento na Selic, não teria pressão para o aumento da dívida, com algum superávit primário nas contas públicas ao longo dos próximos anos; haveria inclusive redução da dívida líquida e finalmente alívio.

Mas, para que tudo isso aconteça, uma constelação de boas práticas teria que acontecer causando basicamente duas situações: o superávit primário nas contas públicas e a redução ou manutenção da Selic; sendo a primeira a causa fundamental da segunda situação.

Mas, o que vai acontecer se houver superávit e mesmo assim o governo decidir pelo aumento da Selic? Como podemos interpretar isso? É provável (porque é desejável pelos CEO’s do mercado) que tenhamos aumento das taxas da dívida mesmo em uma situação fiscal confortável. Mas, por que a lógica de que confiabilidade nas contas gera redução de margem de juros serviria a qualquer conta pública do mundo, menos para o Brasil?

Hoje temos uma situação bastante inusitada (para o caso brasileiro) em termos macroeconômicos: a inflação gira em torno dos 4,5% ao ano (a.a.) e a taxa Selic está em 6,5% a.a. O que significa que um investidor com os títulos do governo vai receber cerca de 1% a.a. de prêmio: 6,5% de rendimento menos 4,5% de inflação e cerca de 1% em tributos e taxas de operação. Agora imagine que um rentista brasileiro (acostumado a 6% a.a. até quando guardava seu dinheiro na poupança), agora vai ficar feliz em receber 1%? Pense que uma pessoa pode ter, por exemplo, 800 mil aplicados em títulos do tesouro. Por isso, em 2018 vai receber 8 mil. Cerca de R$ 660 ao mês. Em um país civilizado, isso seria aceitável. Na Alemanha o juro é negativo, investir no tesouro faz ter prejuízo, mas é recomendável porque é seguro. Nos EUA é positivo mas ainda não chega a 1%. Mas no Brasil essa situação é inédita e a classe média parece que não vai digerir.

Em 2015, quando Joaquim Levy assumiu a pasta da Fazenda do governo Dilma fez a incrível façanha de contingenciar recursos. Realizou uma série de mudanças no orçamento (inclusive mudanças nas pensões e no seguro-desemprego) e ainda aumentou a taxa Selic (de 11% a.a. para 14% a.a. – com inflação de 10% a.a.). Aquele mesmo rentista do exemplo anterior receberia 24 mil ao ano – 2 mil ao mês, e já achava pouco. Tudo isso se fez ao custo de impossibilitar qualquer estímulo à economia e gerou outros desequilíbrios nas contas públicas.

A Selic maior nominalmente aumentou a pressão sobre a dívida. Os cortes gerais e irracionais sobre o orçamento geraram recessão e a recessão derrubou a arrecadação. Enfim, o déficit público aumentou. Ou seja, as contas públicas pioraram, e o que era pra ser um ajuste acarretou num difícil desequilíbrio das contas públicas.

Joaquim Levy foi, sem sombra de dúvidas, o pior Ministro da Fazendo do Brasil desde Zélia Cardoso de Mello. Deveria entrar para a história como uma das figuras que mais contribuíram para o impeachment pela sua gestão catastrófica à frente da Fazenda. Propositadamente aumentou o prêmio dos Bancos (de onde vem sua origem profissional), sacrificou programas sociais importantes do governo Dilma e, ao contingenciar recursos públicos indiscriminadamente, gerou recessão.

Agora o governo tem decisões igualmente importantes para tomar e, não se engane: novamente vai fazer a opção pelo mercado contra a opção pelo país. O mercado quer uma sinalização para manter a confiança nos papéis da dívida – isso quer dizer reforma da previdência. Paulo Guedes, o futuro Ministro da Fazenda, já disse que a questão é prioridade. Na lógica do mercado, menos gastos previdenciários permite folga no orçamento para o pagamento da dívida no longo prazo, portanto, certeza de liquidez dos títulos de dívida. Na lógica do PT, o déficit poderia ser controlado com mais tempo, sem pressionar os gastos sociais embutidos no chamado déficit previdenciário. Mas existe um debate que vai além desse: não é só a liquidez da dívida que está em jogo, também os rentistas querem sua parte.

Então, é provável que o orçamento público brasileiro tenha várias mudanças de perfil para se adequar ao jogo do mercado e do rentismo (se é que podemos separar os personagens). Com a reforma da previdência se evita o crescimento do gasto com as pensões; depois, os cortes no orçamento vão buscar o superávit primário ainda este ano. Soma-se a isso o valor que vai ser arrecadado com as privatizações prometidas. Se tudo isso acontecer, as contas públicas demonstrariam capacidade para honrar o aumento da dívida pública dos últimos anos e nada justificaria aumento da Selic em 2019. Mas, certamente o aumento dos juros básicos vai ocorrer. Por quê? Porque é o que o rentista quer.

A dívida da União, que gira em torno de 300 bilhões de reais com serviços numa Selic a 6,5% pode ser de 450 bilhões se a Selic for a 10,5%. Mas se houver corte de gastos, reforma da previdência e privatizações, o que vai justificar a Selic acima? Simples: o papel do rentista na sociedade brasileira, que vai exigir de um governo pró-mercado que garanta sua renda básica nada cidadã a partir dos títulos do tesouro. E por que o governo faria isso? Porque concorda que os rentistas tenham usuras altas. Não há motivos racionais para isso a não ser pelo compromisso de classe.

Assim, 2019 será um ano muito difícil, em que as reformas na educação virão para destruir o pouco que temos de esperança em melhores oportunidades; haverá uma luta séria sobre os direitos do trabalhador; faremos disputas e mais disputas em torno dos direitos humanos. Enquanto isso, o maior assalto aos cofres públicos desde a era Cardoso vai ocorrer à luz do dia. Legalmente e matematicamente. Infelizmente teremos dificuldade de lidar com isso da mesma forma que tivemos que dificuldade em tratar do estelionato do senhor Levy. Porque, entre outras coisas, a opinião pública puxa e a grande mídia endossa as chantagens do mercado.

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Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário. É colunista do Brasil Debate.

 

Redação

2 Comentários

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  1. Falsos dilemas

    Primeiro que o mercado, não existe fisicamente, é uma entidade abstrata que serve de muleta para dircusos.

    Quando o sujeito não sabe a quem imputar, ou pior, quer omitir, o perpetrador da maldade usa espantalhos como o “mercado” para justificarr-se. Logo fico com um pé atraz sempre que vejo alguém ameaçando, chantageando ou caluniando usando o mercado como desculpa.

    Atrás destas camuflagens escondem-se normalmente interesses inconfessáveis.

    Vamos analisar um ponto que me parece capital aqui.

    Por mais complexa que seja a macroeconomia do Brasil, com uma sociedade extremamente heterogênea, me parece razoavel que qualquer sistema de governo que se proponha deve ser manejável, confiável e hígido, sem estas qualidades para que montar tal estrutura?

    Agora a última coisa que os que estão se locupletando e espoliando o Brasil é que tal estrutura se realize, se fosse eu faria isto, sabotaria, boicotaria e mesmo destruiria para manter os privilégios. Penso que quem imagina ser diferente não entende nada de poder e dinheiro.

    A Presidência e sua equipe, na minha opinião, deveria se debruçar na montagem do governo, sua estrutura, uma vez que esta pare em pé, o Bolsonaro com sua vontade, irá manejá-la, lá de posse dos instrumentos de poder e contando com informações reais, fica muito mais simples para se tomar decisões que vão do macro ao micro em todos os assuntos pertinentes ao Brasil.

    Se não conseguirem esta proeza, ficam nas mãos dos atuais picaretas.

    Papo reto.

    1. Falsos dilemas

      O autor de Falsos dilema daria uma louvável contribuição aos mortais brasileiros se escrevesse para que pelo menos um terço deles entendesse. O texto não está carregado apenas de economês mas de uma subjetividade que limita a compreensão até para quem conhece o idioma. O que significa, por exemplo, este trecho: “Por mais complexa que seja a macroeconomia do Brasil, com uma sociedade extremamente heterogênea, me parece razoavel que qualquer sistema de governo que se proponha deve ser manejável, confiável e hígido, sem estas qualidades para que montar tal estrutura?” 

      A menos que o autor tenha escrito apenas para o prazer pessoal ou como recado a algum tecnocrata bolsonariano, para quem tanto faz escrever em português como em sânscrito.

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