O labirinto fascista e a monstruosa coleção de mercadorias, por Tiago Ferro

Tiago Ferro reflete sobre o curta "Democracia e amor" (2020), dirigido por Tales Ab’Sáber e Rubens Rewald

Reprodução/Blog da Boitempo

do Blog da Boitempo

por Tiago Ferro*

“Não dá para acreditar no grau de domesticação que a mercadoria nos impôs.”
– Pepe Mujica

“Seu traço decisivo [da cultura afirmativa] é a asserção de um mundo universalmente obrigatório, a ser incondicionalmente afirmado, um mundo eternamente melhor, mais valioso, e que é essencialmente distinto do mundo factual da luta cotidiana pela existência, mas que cada indivíduo, ‘a partir do seu próprio interior’, e sem transformar essa facticidade, pode realizar para si mesmo”, afirma Marcuse, em “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, originalmente publicado em 1937.

Roberto Schwarz, em seu famoso ensaio “Cultura e política 1964-1969”, de 1970, dialetiza a ideia de cultura afirmativa ao procurar seus efeitos específicos de transformação da realidade no período estudado no texto. Ao identificar a cultura burguesa fechada em si mesma, após terem sido cortados os fios que a ligavam às camadas populares que se radicalizavam com o populismo pré-golpe civil militar de 64, e que davam tração ao mergulho crítico e criativo dessa produção a partir do contato com as misérias do país, Schwarz não produz simples instantâneo da realidade, mas a toma como devir histórico. Essa cultura desconectada da classe trabalhadora, estranho fruto que amadurece fora de época, radicalizada através de suas próprias investigações intelectuais e estéticas, funciona como um dos gatilhos para a luta armada quando todos os canais de resistência e protesto são fechados com o AI-5, em dezembro de 1968.

Se de acordo com Peter Bürger, lendo Marcuse, a cultura afirmativa “baniu os chamados valores para uma esfera apartada da vida cotidiana”, Schwarz, ao deixar de lado a pura abstração teórica, nos mostra que essa esfera de cultura burguesa fechada tem certa porosidade.

Ainda com Marcuse, agora em O homem unidimensional: “Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua própria falsidade. E à medida que esses produtos benéficos ficam disponíveis para mais indivíduos em mais classes sociais, a doutrinação que encerram deixa de estar na publicidade; torna-se um modo de vida. É um modo de vida muito bom – muito melhor que o de antes –, e sendo um bom modo de vida, ele milita contra uma mudança qualitativa”.

Marcuse soma mais uma camada ao problema da relação cultura burguesa-sociedade. Aqui importa menos o fechamento da cultura afirmativa e suas possíveis aberturas dialéticas. Não há mais qualquer possibilidade de desalienação.

Schwarz escreve em 1994: “Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja crítica do fetichismo da mercadoria”. A frase serve de epígrafe ao livro de 2011 Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica, de Tales Ab’Sáber. No texto o autor vai encontrar realizado no Brasil lulista a universalização do homem unidimensional e com isso o desaparecimento da possibilidade da dialética cultura afirmativa-negativa encontrada por Schwarz em 1970. Afirma Ab’Sáber: “Lula conseguiu ao redor de seu talento pessoal para ceder e convencer, unificar o país em uma nova textura de experiência histórica ao redor da ideia real de mercado, ou seja, um mercado que possibilitasse acesso real às suas benesses”.

O filme Intervenção – amor não quer dizer grande coisa, de 2017, dirigido por Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda, é inteiramente construído a partir da montagem de trechos de vídeos coletados nas redes sociais de canais da extrema-direita. Os diretores nos arremessam num labirinto aparentemente sem saída de violência e rebaixamento cultural e cognitivo. Terminamos a sessão com a violência do neofascismo brasileiro impressa em nossos corpos.

Diferentemente do que afirmou Vladimir Safatle sobre a relação de Bolsonaro com seus seguidores, o atual presidente eleito por cinquenta e sete milhões, setecentos e noventa e seis mil e novecentos e oitenta e seis votos, não criou os fascistas à sua imagem, mas foi elevado a mito por uma expressiva camada da sociedade brasileira que vinha cozinhando seu ressentimento há anos nas redes mais atualizadas da era digital. Diz o professor de filosofia da USP: “Freud não conheceu o Brasil, nem nunca ouviu falar de Jair Bolsonaro. Mas é certo que os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder molda sujeitos, fazendo-os à sua imagem e semelhança. Todos estão a perceber essa mutação na qual expressões de desprezo, indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece não ter fim”. O filme, ao descer ao chão histórico, prova o contrário.

No curta metragem Democracia e amor, dirigido por Ab’Sáber e Rubens Rewald, de 2020, temos quase vinte minutos de montagem de fotos com narração over. Vinte minutos de pensamento crítico de alta voltagem que problematiza e atualiza o que se discutiu até aqui.

“Bolsonaro é isso: capitão do mato a serviço do senhorzinho gringo”, diz o narrador, atando os fios do nosso passado colonial violento com o, também violento, capital globalizado hoje. Ressoa aqui outro frankfurtiano, Max Horkheimer, que às vésperas da Segunda Guerra Mundial afirmava não ser possível discutir fascismo sem discutir capitalismo.

O efeito da montagem das fotos é um fluxo ininterrupto de aproximação e afastamento, reconhecimento e estranhamento. Forma principal a organizar o conteúdo do filme. Antonio Candido e Os Trapalhões, Tom Jobim e Faustão, Odete Roitman e Paolo Rossi. A vertigem da montagem tem método e objetivo. Ao colocar toda a cultura brasileira na mesma gôndola, a equivalência é perturbadora. O Brasil bom aparece não tão bom assim; e o ruim, ainda pior. E mais, chegamos a ficar em dúvida sobre o sinal correto para algumas imagens. (Ainda há correto? Há sinal?) O efeito é fatal: nós, críticos, também fazemos parte da “monstruosa coleção de mercadorias”, para utilizar expressão de Marx no Livro I d’O capital. Somos também homens e mulheres unidimensionais.

O jogo de reconhecimento e estranhamento nos remete a um livro que contou antes de todos o desastre que nos aguardava com a entrada do Brasil sem mediações no mundo neoliberal a partir da década de 1990: trata-se de Estorvo, de 1991, romance de estreia de Chico Buarque. Seu caráter formal político explosivo foi decifrado no ano de seu lançamento pelo próprio Roberto Schwarz, em resenha à revista Veja, ao deixar no ar a pergunta que o passar do tempo tratou de responder com um inequívoco “sim”: “Estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência?”.

Vale citar a passagem final quando o protagonista, após rodar em falso durante todo o romance, estranhando tudo e todos, finalmente encontra algo familiar:

“Reconheço o sujeito magro de camisa quadriculada no ponto de ônibus que desce a serra. Avistá-lo ali, não sei por que, enche-me de um sentimento semelhante a uma gratidão. Sigo correndo ao seu encontro, de braços abertos, mas ele me interpreta mal; encolhe os ombros e puxa uma faca de dentro da calça. […] Estou a um palmo daquele rosto comprido, sua boca escancarada, e já não tenho certeza de conhecê-lo. […] Recebo a lâmina inteira na minha carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está; adivinho que à saída ela me magoará bem mais que quando entrou.”

A mesma facada está na canção de Nuno Ramos e Romulo Fróes que fecha o curta Democracia e amor: “Qual a faca que fica no fim?/ De que aço, acho o gosto ruim…”. As doze facadas pelas costas que mataram o “moço lindo do Badauê”, o Moa do Katendê, por um eleitor enlouquecido de Bolsonaro com a vitória no segundo turno.

O filme, portanto, nos congela. Como podemos nos mover nessa realidade fantasmagórica e ameaçadora? De que forma a crítica engolfada pela indústria cultural ainda pode ser negativa e reagir ao labirinto do fascismo?

Resgatemos dos escombros a mensagem na garrafa lançada para nós por Marcuse ao citar Walter Benjamin no final d’O homem unidimensional como motor para a continuação do esforço de pensamento crítico brasileiro neste momento tão adverso: “É só por causa dos que não têm esperança que nos é dada esperança”.

***

*Tiago Ferro é crítico e romancista.

Redação

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