O mito da corrupção, por Clarisse Gurgel

Um dos equívocos que precisa, desde já, ser superado é o de que a reunião ministerial de 22 de abril foi um encontro sigiloso

Foto: Reprodução

O mito da corrupção

por Clarisse Gurgel

 

Nesta sexta-feira, 22 de maio, a reunião ministerial de Bolsonaro foi, enfim, publicizada. Um dos equívocos que precisa, desde já, ser superado é o de que esta reunião foi um encontro sigiloso. Alguns, com base nesta divulgação, andam por aí, afirmando que Bolsonaro age, nos bastidores, tal como age, em público. Ao contrário: quanto menor o número de cabeças (ou de arquivos para serem queimados), numa reunião com o presidente, maior é sua liberdade, seja na forma de falar, seja na forma de solucionar seus problemas. Isto ficou evidente. Em gênero, número e grau.

De tal modo que, a reunião que assistimos era um evento público, em que reunidos estavam, desde aliados preferenciais do presidente até inimigos promissores, como se confirmou, em seguida, com Moro. O clima de tensão era evidente, os constrangimentos visíveis e os interditos sintomáticos. Havia algo, ali, interditado. Algo que se revelou entre os ditos e não ditos.

Reuniões como essas servem como ensaio de retórica do Presidente e de espaço de comando. É, ali, que ele testa suas teses explicativas, que dará, diante de jornalistas merecedores do silêncio. É, ali, também, que ele tenta alinhar seu governo, dar-lhe direção, no exato sentido de governar. E seu governo parece muito bem alinhado: todos são neoliberais. Tal como eles mesmos se reivindicam. E este é o ponto de inflexão que explica a própria redemocratização brasileira. A ditadura no Brasil teve seu fim determinado, em grande medida, por pressões internacionais – norte-americanas, em especial – diante de uma postura, relativamente, nacionalista das forças armadas. A transição para a democracia estava condicionada a um tipo de alternância de poder que não rompesse com os novos marcos do imperialismo: o neoliberalismo.

E o que se traduz por neoliberalismo é explicado no cursinho de Paulo Guedes, oferecido no encontro de abutres: reformas (des)estruturantes, simplificação, segurança jurídica e previsibilidade.  Paulo Guedes está falando de uma tarefa cobrada em todos os países em que o presidente vai: a de tornar as regulamentações mais simples, mudando o arcabouço normativo para que a iniciativa privada faça o que quiser, como disse o bajulador Onix, enquanto se gabava de estar “vendendo o Brasil, pelo mundo”.

Assim, o Estado se torna um mero “mediador” e um “tomador de risco”, nas palavras do estudante de Chicago, nas transações comerciais entre estrangeiros e empresários nacionais. Qualquer “medo” de investir é afastado, sob o compromisso do Estado de assumir os riscos. Uma espécie de “excludente de ilicitude” para as práticas econômicas e financeiras. A tal flexibilização, que eles tanto falam. Desde que cumprida esta agenda, Paulo Guedes assegura que o Impeachment está afastado. O que permite Paulo Guedes assegurar é a segurança que tem. E sua segurança está, justamente, no pacto estabelecido, entre o final da década de 70 e o início de 80, com a Lei de Segurança Nacional. É ele que estabelecerá uma abertura lenta, gradual e segura, no Brasil.

Este é o acordo que demarca a democracia no âmbito do viável para todos os países periféricos. Estabelecido através de uma Comissão Trilateral, composta pela Europa, Ásia e América do norte, em 1973, este órgão sempre contará com a hegemonia dos EUA e será conhecido como a Internacional do Capital. Seu embrião é o Tratado Interamericano de Assistência Reciproca, de 1947, e a própria criação da OEA, a queridinha desta gente. O acordo é, justamente, o limite que suspende, também, o instituto das eleições, quando elas ameaçam a “democracia restrita”.

Quando Bolsonaro afirma que não tem interesse em eleição, ele confirma seu alinhamento com as Forças Armadas, que, em sua versão moderna, dispensa a ideia de soberania e secundariza o pleito eleitoral, pela clareza que têm de que o poder efetivo está na economia. Foram eles que encomendaram o golpe de 64, no Brasil, assim como foram eles que enquadraram os militares, quando a abertura se fez mais vantajosa. As eleições só se tornam centrais, nas vociferações do presidente, na possibilidade de vitória da esquerda. Esta foi a preocupação com Jango e seguirá sendo, enquanto vivermos regidos por uma espécie de gambiarra regimental – nossa “democracia segura”. Não é à toa que Bolsonaro comete o ato-falho de chamar a Polícia Federal de Segurança. Elas seguem misturadas. A militarização, através de operações nas favelas, das “missões de paz” brasileiras – no Haiti, por exemplo – das intervenções federais recentes só serviram para estreitar esses laços, em que Polícia Militar, Polícia Civil e exército exercitam ações coordenadas.

Os bolsonaristas, eles mesmos, como cínicos patológicos, sabem que não há alternância de poder – esta fantasia funcionalista. O que há é a famigerada “governabilidade”. Qualquer hipótese de alternância efetiva, em termos de alter/ação do projeto de país, precisa ser combatida, seja por meio de um serviço oficial, seja por meio de um serviço paralelo de informação e de contra-golpe – as milícias, como os fasci, na Itália, ou a “sociedade beneficente” 10 de Dezembro, de Bonaparte, do 18 de Brumário.

Isto explica nossa própria Constituição Federal, cheia de contradições: ao mesmo tempo que serve de fundamento para Bolsonaro incitar a sociedade a se armar, sob a alegação de uma ameaça de ditadura (art.142, da CF), nossa Carta traz, em seu corpo, um conjunto de dispositivos que delimitam a própria noção de ditadura, ao estabelecer quais são os princípios democráticos invioláveis. Isto porque a Carta Magna, ainda que fruto de um grande acordo entre Forças Armadas, Capital e Trabalho, também foi resultado de muita luta da esquerda.

Neste sentido, já é possível afirmar que Bolsonaro, apenas na reunião ministerial, cometeu diversos crimes que, na esteira da Constituição Federal, já poderiam justificar a sociedade acionar o próprio artigo que lhe serve de blindagem, o 142, aquele que permite a reação violenta da sociedade contra um ditador. E Bolsonaro assim o é, dado que serviu de interventor, nas eleições de 2018, quando se fez necessário, fazendo uso das ferramentas que as eleições – cada vez mais voláteis – oferecem para afastar a esquerda do poder.

Bolsonaro violou o princípio constitucional do pluralismo político, previsto no artigo primeiro da Constituição Federal, em seu inciso V, quando defendeu a violência, no caso de chance eleitoral da esquerda, em 2022. O presidente, também, violou o princípio previsto no artigo segundo da Constituição, que serve de cláusula pétrea e que rege a autonomia e a harmonia entre os três poderes, ao ameaçar o STF.  Quanto ao artigo quinto, dedicado aos direitos fundamentais, Bolsonaro cometeu o crime político de defender a constituição de grupos armados, civis ou militares, contra o Estado Democrático, ao defender a reação armada a prefeitos e governadores.

Após a divulgação do vídeo, Bolsonaro confessou, mais uma vez, seu crime, ao afirmar que, realmente, foi informado, por seus amigos PMs e civis, sobre uma operação da Polícia Federal, na casa de seu filho, no Rio. Na esteira de Moro, aquele que importou para o Brasil a delação premiada, o presidente segue confundindo denúncia com confissão.

Diante de tudo isto, porém, parece que quase nada está oculto, entre o que defendia Bolsonaro, nas eleições, e o que defendeu, naquela reunião. E é para os que se apegam a esta lamentável coerência que o aspecto mais óbvio daquela reunião se torna mais devastador. A turma do Bolsonaro quer retirar todo e qualquer obstáculo que atrapalhe o aumento dos lucros da iniciativa privada. Isto servia como um mantra na reunião ministerial. Aquilo que fazia os ministros repetirem: “investimento privado. Ninguém está falando em investimento público”. Segundo Paulo Guedes, é preciso priorizar os investimentos privados, vendendo barato, concedendo, cedendo com o mínimo de exigência, para aqueles que estão ávidos pelas riquezas do Brasil. E, aqui, está o maior embuste do governo Bolsonaro. Aquilo que, em sua efêmera intervenção, Moro fez questão de lembrar ser, ainda, um grande mote eleitoral: o combate à corrupção.

Para aqueles que concordam com Moro, sugiro uma atenção maior à outra reunião, ocorrida naquele mesmo dia, às 16h, entre Braga Neto, Teich e o ministro do turismo, Marcelo Antônio. O pedido do ministro foi como uma cena típica e cotidiana, no Palácio: um ativista do mercado pedindo para serem afrouxadas as regras para Resorts Integrados. Leia-se: “desmistificar” a lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas e os jogos de azar. Um pacto com o diabo, que, se a AGU concordar, não tem problema, segundo a purificadora Damaris. Algo que, para o bacanão Paulo Guedes, não importa, desde que dê dinheiro… Mas “com investimento privado, não público”. Ou seja, com o maior retorno para o privado.

E é esta a verdadeira face do bolsonarismo – a que só aparece na reunião das quatro da tarde. A de “desmistificador” de “filigranas”. E, se conseguem desmistificar toda filigrana, conseguirão a tal “flexibilização regulamentar” para as grandes empresas. Ora, é assim que se faz o tal combate à corrupção, no governo Bolsonaro: sem regras – liberando geral – não há como acusar ninguém de desrespeitar as regras.

De fato, não há desvio moral nenhum em um empresário roubar, surrupiando os cofres públicos, quando sua regra é roubar, via exploração do trabalho, deixando de pagar boa parte das horas que o trabalhador dedica a ele. Mas, se, conforme anseiam os neoliberais, a atividade de exploração ficar liberada de qualquer regra – a maioria delas estabelecida na base da luta -, a própria ideia de corrupção fica prejudicada. Isto porque o ato de corromper é entendido como uma ação de descumprimento de alguma regra. Se não há regras, não há como ninguém acusar o outro de corrupto. De tal modo que “corromper” se torna uma impossibilidade, no neoliberalismo, quando a regra é a ausência de regra, quando o limite é a ausência de limite.

Esta aí a face do mito: o bolsonarismo é o combate às regras. Esta é a razão para o Weintraub estar muito chateado. Porque, segundo ele, anda tendo que conviver com quem ele achava que estaria brigando. Quando o ministro da educação defendeu a prisão de todos os que seguem tendo privilégios, fez questão de situá-los, também, no âmbito das intrigas palacianas. O único a destoar foi o Ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que cometeu a blasfêmia em falar de investimento público e fortalecimento do Estado, em resposta às necessidades dos mais necessitados. Diante de carniceiros, Marinho pareceu um vegano.

Bolsonaro cometeu um crime político. Tal como um inválido, o presidente solicita impedimento. Mas o que definirá os rumos do governo será o poder que Paulo Guedes virá a ter de seguir “aproveitando” a “chance enorme” do Covid-19 para, enquanto todos estiverem distraídos com esta frescura, – se preciso, na base da canetada, dispensando o congresso -,  apressar a venda do país. Nestes termos, o enfrentamento consequente ao que representa Bolsonaro envolve superarmos, radicalmente, as marcas da ditadura civil e militar, de 64, por meio de uma transformação profunda da democracia brasileira.

 

Redação

5 Comentários

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  1. Em Minas, durante o mandato do Governador Itamar, colocou-se na Constituição Estadual dispositivos para dificultar venda das estatais, Cemig a frente, inclusive a necessidade de referendo popular. Pode ser um começo a nível federal.

    1. Não pose ser aceita a ideia de vender o Brasil, o país pertence ao povo brasileiro e não a essa meia duzia de canalhas que assumiram o Brasil, através de uma eleição fraudada.

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