Acerca do popular, do populismo e do nacionalismo, por Ivonaldo Leite

Nunca foi tão necessária uma demarcação de posições no interior do campo de esquerda entre perspectivas populistas e não populistas

Como tragédia e como farsa: acerca do popular, do populismo e do nacionalismo

por Ivonaldo Leite

1 – Introdução

Ao que parece, livros se tornam clássicos por duas razões. Por apresentarem uma investigação acurada e uma análise em profundidade da realidade ou por, além da força da análise, consubstanciarem uma forma de abordagem metodologicamente inovadora, que pode inspirar a démarche de outros trabalhos. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx, é um exemplo desse último caso.  

O livro veio a lume em 1852, e trata do golpe de Estado levado a cabo em França por Carlos Luís Napoleão Bonaparte, em 2 de Dezembro, data que marcava os 47 anos de coração do seu tio Napoleão Bonaparte como imperador francês. Este também havia dado um golpe de Estado antes de se tornar imperador. Tal repetição golpista levou Marx, com uma ironia entrecortada de erudição (como lhe era próprio), a formular a célebre frase com a qual abre o livro: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”[1].

Coloco em realce esses prolegômenos para tratar do tema popular, populismo e nacionalismo. Durante o século XX, o populismo emergiu manifestando-se de diferentes formas, sendo exemplo disso a sua associação com os fascismos na Europa e com o caudilhismo na América Latina. Benedito Mussolini, o “Duce”, pode ser tomado como um arquétipo de líder populista, e foi nele que Adolf Hitler se inspirou. Não é preciso repisar muitas  informações históricas para relembrar as tragédias que eles perpetraram.

Por outro lado, também é dispensável fazer correr muita tinta para demonstrar que, atualmente, está a ter lugar uma onda populista nos mais diversos países. Donald Trump, Viktor Obán, Matteo Salvini e Jair Bolsonaro são as suas faces mais visíveis. Ou seja, reiterando a obviedade: a ascensão da extrema direita tem ocorrido através do populismo.

Dado isto, tem-se uma situação, no mínimo, contraditória referente a setores de esquerda que se abraçam com o modus operandi populista em partidos, “movimentos sociais” e, no Brasil, até em universidades. Neste último caso, pela incompreensão teórica e pelo desatino político, é “espantoso” o modo como, no campo da Educação Popular (uma perspectiva teórico-prática progressista), sejam verificadas situações em que se confunde popular com populismo: a rejeição a critérios impessoais, a negação de valores republicanos, o desprezo pelo estudo e pelo  exercício da racionalidade analítica, o predomínio do modo de ação ‘militonto’[2], etc.

Seja como for, e relembrando a abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte, estamos perante uma nova onda populista de extrema direita, com dimensões  protofascistas,  onde abundam aspectos farsescos, como os incentivados e levados a efeito por Bolsonaro.  Os setores de esquerda afeitos ao populismo, isto é, que partilham com a direita/extrema direita o mesmo marco operacional de interação com o povo, podem assobiar para o lado e fazerem de conta que essa conjuntura em nada lhes atinge. É o direito ao autoengano. Mas a verdade é que eles não só têm a sua perspectiva política impactada como causam prejuízo ao ideário da esquerda como um todo.

Possivelmente nunca foi tão necessária, como atualmente, uma demarcação de posições no interior do campo de esquerda entre perspectivas populistas e não populistas, principalmente no contexto latino-americano. E para isso, claro, é preciso escrutinar o tema popular, populismo e nacionalismo.

2 – Populismo: uma distorção do popular  

O populismo, como bem assinala Ian Roxborough[3], não se organiza ao longo das linhas de classe social, revelando a exploração e a opressão que elas impõem. Esta é uma variável central do seu marco. O populismo opera com uma moldura teórica na qual o povo ou a nação se opõe à “antinação”, em geral, identificada com um país estrangeiro, grupos étnicos, agentes defensores de determinadas concepções políticas, etc. Assim, enfatiza que a única divisão política importante ocorre entre o povo (concebido como uma categoria indeterminada) e os seus inimigos (internos e externos)[4].  

Portanto, o fator ideológico é uma pedra angular do populismo.  A esse respeito, pode ser dito, sobretudo tendo como referência a América Latina, que ele constitui a primeira tentativa de configurar uma ideologia nacional. Diante das iniciativas dos movimentos com cariz de classe, que procuram organizar os trabalhadores de forma autônoma, os caudilhos populistas agem em outro sentido, ou seja, não objetivando o desenvolvimento da consciência de classe, mas sim buscando manter ‘os que vivem do trabalho’ num patamar de consciência não histórica a respeito da sua realidade. De resto, dirigem-se a eles com uma linguagem rebaixada, sem abstração, de natureza emotiva, reduzida a slogans, para então despertar sentimentos de identidade com os propósitos do populismo.

Entre o chefe populista e o seu movimento político existe uma absoluta identificação que faz com que, inclusive, o movimento receba o denominativo do seu nome[5]. Por exemplo: no passado, peronismo (Argentina), varguismo (Brasil), velasquismo (Equador); no presente, trumpismo (Estados Unidos), bolsonarismo (Brasil) e orteguismo (Nicarágua), que, aliás, deve ser enfatizado,  em nada tem a ver com os ideais da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), responsável pela derrubada da ditadura de Anastácio Somoza. De se notar, ademais, que aí estão relacionados populismos à direita e à esquerda. Não é que os anseios das bases sociais de ambos sejam exatamente similares (embora elas possam se mover de um lado a outro) ou que os seus discursos expressem interesses identicamente equivalentes, mas do que se trata é que, na retórica das diferentes versões de populismo, as interpelações e demandas populares aparecem sob a forma de uma pauta não autônoma, que não é livremente arbitrada pelos agentes populares, mas sim encontra-se sempre na dependência da vontade do “grande líder” (e dos representantes), que obedece apenas a ele mesmo.   

Isso é assim pois o chefe populista não se inspira em princípios programáticos e doutrinários sistematizados e coerentes, podendo dizer algo num dia e noutro desdizê-lo, sem que seja cobrado por seu séquito pela contradição. Ele está isento de obediência à disciplina e regras internas do partido/movimento (mesmo que procure se comportar de forma inversa), não lhe sendo exercida nenhuma autoridade e controle corretivo. Afinal, o movimento confunde-se com ele próprio.

O populismo é um sustentáculo do status quo, de manutenção da ordem. A propósito,  historicamente, o caso do velasquismo no Equador é emblemático. José Maria Velasco Ibarra triunfou em cinco eleições presidenciais, fascinou as classes populares sem deixar de favorecer as classes dominantes e foi apoiado por conservadores, pelo clero e por segmentos de esquerda. Dominou o cenário equatoriano por 40 anos.  Perguntado certa feita como se definia politicamente, respondeu: “yo me siento ligado a una misión divina del hombre en la vida, cual es la de cooperar para que toda la naturaleza y la humanidad salgan del caos a la organización y de las tinieblas a la luz”[6]. Resposta mais representativa da perspectiva populista não poderia existir. Desse modo, o velasquismo constituiu-se numa base de sustentação do sistema que permitiu a este absorver contradições e superar as piores crises políticas equatorianas, mantendo os setores populares sob controle e subalternizados.

Tendo em atenção a definição e caracterização do populismo aqui e algures postas em realce, causa então, no mínimo, estranheza a defesa “conceitual” que tem sido feita em prol de um suposto “populismo de esquerda”. E não se trata, claro está, de defesa realizada por militontos. O que se passa é que tal apologia tem sito estampada em artigos e livros, designadamente em enfoques do dito pós-marxismo iniciado por Ernesto Laclau[7]. Já nos anos 1970/1980, ele formulou  uma série de considerações muito controversas e questionáveis sobre o populismo, e que foram objeto de uma consistente e severa crítica do sociólogo equatoriano Agustín Cueva[8].

Laclau escreveu, por exemplo, que o populismo resulta do momento em que o poder de articulação das classes subalternas se impõe, hegemonicamente,  sobre o restante da sociedade. Não se contentando com essa afirmação, enfatizou que, “no socialismo, por conseguinte, coincidem a forma mais elevada de populismo e a resolução do último e mais radical conflito de classe. A dialética entre o povo e as classes encontra então um momento final de sua unidade: não há socialismo sem populismo, e as formas mais elevadas de populismo só podem socialistas”[9].

Não menos insustentável é o modo como Laclau trata do conceito de povo. O seu enfoque tem um significativo déficit de materialidade, na medida em que o povo é descrito como uma determinação do sistema, que não tem a ver com condicionamento de classe, pois o povo, segundo Laclau, não existe no âmbito  das relações sociais de produção. De modo que tanto a extensão como o conteúdo de tal conceito dependeriam do que, de fato, lhe atribuem as relações políticas e ideológicas. Tal como ele escreve no original: “in the case of ‘the people’, we are not clearly speaking about concret social agents. We are speaking about an interpellative structure”[10].

Não repisarei a severa crítica de Agustín Cueva a Laclau. Apenas reitero três considerações. Primeira, no que se refere ao conceito de povo, Laclau parece mais empenhado em buscar uma justificativa teórica do populismo, ao mesmo tempo que realiza uma leitura populista do marxismo, pois uma das características que é típica do populismo é conceber o povo como um conjunto indeterminado em termos de classe.

Segunda, no final das contas, o que se passa é que abordagens como as de Laclau, no caso latino-americano, ao invés de tentarem compreender a relação  dos elementos populares-democráticos com os estritamente proletários, a partir da análise de uma matriz econômico-social determinada, o que fazem é equacionar a referida relação num nível tão etéreo que, por definição, lhes impede de captar os condicionamentos que a esfera político-ideológica recebe em cada etapa do desenvolvimento de uma formação social. Desse modo, por óbvio, não é possível situar corretamente a questão do populismo.

Terceira, Laclau suprime a efetiva barreira que existe entre populismo e popular democrático, misturando-os, ao lançar mão de uma série de artifícios retóricos que desconsidera as dimensões objetivas das forças sociais e políticas, assim como os conteúdos de classe que elas expressam. Como enfatizou Cueva, “é necessário diferenciar o populismo do popular democrático, que não podem e nem devem ser confundidos, pois o primeiro é uma manifestação distorcida do segundo”[11].

Nacionalismo populista

O populismo, tanto à direita como à esquerda, tem estado umbilicalmente ligado ao nacionalismo. As razões dessa ligação, contudo, são diferentes, bastando para tanto lembrar que, no contexto latino-americano, à esquerda, a vinculação se encontra relacionada aos processos de independência das suas nações, de busca de autonomia político-econômica e de construção da identidade nacional. Não tem a ver com, à direita, o populismo fascista do passado e, no presente, com o populismo propugnado, por exemplo, pelo trumpismo e pela Frente Nacional em França.  

É necessário, no entanto, à esquerda, problematizar o nacionalismo, especificamente o nacionalismo populista, pois ele distorce as relações de exploração e as  problemáticas dos países que vivem em situação de dependência. Faz aflorar o sentimento nacionalista das classes populares, mas, manipulando-as, não lhes aporta o conteúdo verdadeiro a respeito da situação em que elas vivem, ou seja, não vai às raízes dos seus problemas e dos da nação.

Indo mais além com esse escrutínio, é preciso colocar em causa a própria dimensão do comprometimento  programático da esquerda com o nacionalismo, o que não significa, por certo, negar a existência da ideia de projeto nacional. Não é disso que se trata. Mas, sim, de ter em conta a perspectiva  para a qual chamou a atenção o red doctor: a esquerda tem a ver com internacionalismo, não com nacionalismo. Afinal, como qualquer fenômeno ideológico, o nacionalismo não é uma coisa ou uma doutrina fixa, mas antes um conjunto de atitudes e posições que ora são articuladas, ora são tidas como certas e dadas, sendo apresentadas como “óbvias” e, desse modo, assimiladas pelo senso comum. A propósito, como sublinhou o saudoso John Molyneux, é preciso considerar o significado de alguns pressupostos que norteiam o nacionalismo e as suas implicações[12], quais sejam:

1) Uma nação em particular – seja a Irlanda, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, Alemanha ou qualquer outra – é, de alguma forma, “melhor” e “superior” que   as demais, o que fica evidenciado em expressões como “Os Estados Unidos são  o melhor país do mundo” ou  “Deutschland uber alles!” (a Alemanha acima de tudo).

2) A identidade nacional, ou seja, a pertença a um país, é concebida pelo nacionalismo como a identidade mais importante ou central de uma pessoa, tendo precedência sobre outras identidades, como as de classe, género, etnia, profissão, etc.

3) As nações – ou os povos de uma dada nação  –  são consideradas como tendo certas características nacionais definidas  como estando, de alguma forma, “no seu sangue” ou nos seus genes e que explicam ou moldam a história nacional,  ao invés de serem vistas como categorias resultantes dessa história. Por exemplo, os britânicos são “moderados” e propensos a compromissos ou os americanos são “amantes da liberdade”. É de se notar que atributos como estes são frequentemente positivos quando aplicadas ao próprio país e negativos quando aplicados a outras nações, principalmente àquelas consideradas inimigas.

4) Existe um interesse “nacional” comum que une todos os membros de uma determinada nação, e ao qual todos os interesses “setoriais” (classe, género, etnia, etc.) devem estar subordinados. Nesse sentido, proclama-se:  “É de interesse nacional que haja contenção salarial dos trabalhadores” ou “Todos devem fazer sacrífico em nome do interesse nacional”.

5) Em conflitos econômicos, políticos ou mesmo desportivos com outras nações, é dever do cidadão apoiar o seu “próprio” país. Isto aplica-se com mais força em tempos de guerra, quando comportamentos divergentes sobre esse apoio são considerados traição.

​6) A principal função do governo e do Estado é representar o interesse nacional e isso implica em colocar os interesses dos seus cidadãos em primeiro lugar, antes dos interesses dos “estrangeiros”. Daí surgem indagações como: “Por que ajudar estrangeiros quando há problemas no próprio país?”

 Dos seis pressupostos enumerados, os três últimos são politicamente os mais importantes e mais difundidos (embora todos o sejam), devendo-se notar que muitas pessoas e, crucialmente, muitos políticos que rejeitariam qualquer reivindicação de “superioridade” nacional como grosseria e arrogância, aceitariam, no entanto, basicamente os pontos 4, 5 e 6. Em particular, a noção de “interesse nacional” é aceite por praticamente todos os políticos mainstream e enquadra quase todo o debate político.

Uma das principais razões pelas quais o nacionalismo é tão onipresente e tão poderoso é que ele reflete um fato material central sobre o mundo moderno, nomeadamente que a vida econômica, social e política é, na verdade, organizada com base em Estados-nação, mais ou menos em todo o mundo. Dessa forma, ouvimos falar da Irlanda no século X ou da Itália no século XII, como se estivéssemos a falar do mesmo tipo de Estado-nação que a Irlanda ou a Itália de hoje, quando, na verdade,  naquela altura, não existia um Estado-nação ou uma consciência nacional irlandesa ou italiana, apenas a Irlanda ou a Itália como expressão geográfica (assim como a Escandinávia ou a América do Sul atualmente). Em geral, os Estados-nação, no sentido moderno, só surgiram com e como parte do desenvolvimento do capitalismo e da ascensão da burguesia a partir do século XVI, aproximadamente, e o nacionalismo foi, desde o início, uma ideologia especificamente burguesa.

Em oposição à ideologia nacionalista, o internacionalismo marxiano rejeita cada um dos referidos seis pressupostos, nos seguintes termos:

1) Nenhuma nação (“raça”, “povo” ou “cultura”) é inerentemente  ou inatamente superior à qualquer outra. É claro que, em certos momentos da História, determinados estados ou partes do mundo são capazes de estabelecer o seu domínio econômico, político e militar, mas isso é historicamente produzido, não tem nada tem a ver com capacidade inata,  e é invariavelmente um fenômeno temporário. Assim, Roma teve um período de domínio sobre parte do mundo de cerca de 100 a. C.  a  400 d. C.;  a China estava na liderança por volta de 1000 d. C.;  a Grã-Bretanha teve a hegemonia mundial  no século XIX  e os EUA no século XX, e hoje a China se apresenta para assumir a liderança no século XXI.

 2) As pessoas têm múltiplas “identidades” ou identificações – nação, género, etnia, localidade, família, religião, ocupação, classe e assim por diante. A identificação que predomina na consciência das pessoas depende das circunstâncias, sendo resultado das interações e da luta social e política.

3) As “características nacionais” existem de fato, mas são um produto da história e são absolutamente marginais em comparação com o que as pessoas de diferentes nacionalidades têm em comum. Além disso, tais características  não têm praticamente qualquer utilidade explicativa para a compreensão da história. As explicações da resistência irlandesa (por exemplo, em 1916 ou 1920) ou da passividade irlandesa (por exemplo, em 2011), em termos do “caráter irlandês”, não têm qualquer valor, tal como a noção de que os franceses estão “sempre na rua protestando” (nem que seja só por isso mesmo) ou de que os latino-americanos fazem revoluções. Deve ser realizada uma distinção entre qualquer conceito de “carácter nacional” inerente e as tradições nacionais (incluindo a memória social), que são historicamente estruturadas e desempenham um certo papel na formação das lutas políticas e sociais.

4) O internacionalismo marxiano rejeita a ideia de um interesse nacional comum. Qualquer nação consiste de diferentes classes e grupos sociais,  e os interesses de cada classe capitalista, seja irlandesa, alemã, inglesa ou brasileira, são fundamentalmente opostos aos interesses da “sua” classe trabalhadora. O conceito de “interesse nacional” dissimula o conflito de interesses. ​

5) Se, de acordo com o nacionalismo, o dever do cidadão é apoiar o seu “próprio” país, ou seja, o seu establishment, a obrigação do internacionalista, por outro lado, é apoiar os espoliados do seu país e do mundo. Isto aplica-se especialmente no caso das guerras, devendo a atitude dos internacionalistas frente a elas depender do caráter progressista ou reacionário em causa, do ponto de vista dos espoliados e do avanço civilizacional.

 6) Em oposição ao discurso nacionalista de que “nós” ou o “nosso” governo deve cuidar primeiro dos “nossos”, a posição internacionalista é de que, por “nossos”, se entende todos os seres humanos desfavorecidos/as e espoliados/as do mundo inteiro.  

A crítica ao nacionalismo não significa, por suposto, a rejeição ao princípio da autodeterminação dos povos e, desse ponto de vista, às lutas pela independência dos países do jugo colonial e neocolonial. Não é isso que está em causa, mas sim as limitações do nacionalismo, o seu arcabouço como ideologia que distorce a realidade e que, para ocultar as suas contradições, se acosta ao populismo. É nesse ambiente que a versão nacional-populista de extrema direita faz emergir as manifestações fascistas. Aliás, é com a expressão nacional-populismo que Steve Banon, principal ideólogo e estrategista de extrema direita no mundo hoje, denomina o seu campo político, que agrega, entre outros, Trump, Bolsonaro e Salvini.

A propósito, no contexto da esquerda e do ‘campo popular’ em geral, saltam aos olhos as inconsistências e os lugares-comuns a respeito das posições fascistas e fascizantes manifestadas e levadas a efeito pelo nacional-populismo. Também há quem as circunscreva a um juízo moral e assim as conceba:  maldade[13]. De resto, nesse contexto turvo, há ainda quem, embebido pelo extremismo identitário, leve o conceito de luta de classes ao lixo e o substitua por luta de “raças” – irônica e paradoxalmente, o mesmo que os nazistas fizeram. Não vamos muito longe com a gaita a tocar esse tipo de “música”.

Diante da vaga nacional-populista de extrema direita em curso, é cada vez mais importante, e aqui acompanho João Bernardo[14], entender o fascismo como conceito que articula conservadorismo (culto de valores e hierarquias em crise numa sociedade concebida como um todo orgânico e harmônico) e radicalismo (defesa da ação direta, confronto físico e antipolítica). Nessa perspectiva, o fascismo representa uma revolta no interior da ordem, objetivando a sua reconstituição e naturalização.

Conclusão

Primeiro como tragédia, depois como farsa. Disse, no início deste texto, que o modo de abordagem do 18 Brumário de Luís Bonaparte inspira o desenvolvimento de outros trabalhos, e isso o torna um livro clássico. É mesmo assim.

Nas suas atiladas páginas, podemos ler passagens emblemáticas como: “A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto […], eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial”[15].

Dessa forma, ocorrem as tentativas de fazer a roda da história girar para trás. Daí que se tenha hoje uma ascensão do nacionalismo populista de extrema direita saudosista da primeira metade do século passado, a erguer bandeiras fascistas e a celebrar a memória de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. Uma apologia da tragédia que se apresenta como farsa em, pelo menos, dois sentidos. Primeiro, pela tentativa de fraudar a História, negando os horrores, a barbárie e os crimes contra a humanidade cometidos por ditadores; segundo, por, entre os protofascistas atuais, se encontrarem arrivistas que usam a política como fonte pecuniária, assim como figuras medíocres que, uma vez mais, nos fazem lembrar o 18  Brumário quando Marx, no prefácio à segunda edição, realça a ascensão de Luís Napoleão: circunstâncias e condições possibilitaram a um personagem grotesco desempenhar um papel de herói.

Para finalizar, reitero: nunca foi tão urgente e necessário estabelecer uma demarcação entre o popular e o populismo. Por todas as distorções que o populismo implica. Penso que a Educação Popular, como concepção comprometida com processos emancipatórios e sendo analiticamente instituinte, pode desempenhar um papel político-pedagógico na referida demarcação. Isso, claro, se ela própria não for tragada pelo populismo.

NOTAS


[1] MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: 2011, p. 21.

[2] Tanto sociologicamente  como no próprio contexto da intervenção política tem sido  realizada  a diferenciação entre militante e militonto. Foi o que fez, neste último caso, de forma aproximativa, Breno Altman num curto artigo de opinião intitulado Diferenças entre militantes e militontos. Disponível em: < https://altamiroborges.blogspot.com/2014/11/diferencas-entre-militontos-e-militantes.html>

[3] ROXBOROUGH, Ian. Theories of underdevelopment. Londres: Macmillan Press, 1979. 

[4] Cf. HARRIS, Nigel. Beliefs in society: the problem of ideology. Londres: Watts, 1968. 

[5] Cabe ressaltar que tal facto não tem equivalência com os denominativos das escolas de pensamento, por exemplo: keynesiano, althusseriano, hegeliano, etc. Pois, a não ser que se transformem em “clubes de pura apologia”, elas (as escolas) têm um propósito analítico.

[6] Cf. CUEVA, Agustín. El velasquismo: ensayo de interpretación, in:_______.Entre la ira y la esperanza y otros ensayos de crítica latinoamericana: Fundamentos conceptuales Agustín Cueva. Antología y presentación Alejandro Moreano. Bogotá: Siglo del Hombre – CLACSO, 2008.

[7] Ver, entre outros: LACLAU, Ernesto. Hacia una teoría del populismo, in:_______. Política y ideología en la teoría marxista: Capitalismo, fascismo, populismo. México: Siglo XXI, 1980; MOUFFE, Chantal. Por um populismo de esquerda. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

[8] CUEVA, Agustín,  El populismo como problema teórico, in: Agustín Cueva: Ensayos sociológicos y políticos. Quito: V & M Gráficas, 2012.

[9] LACLAU, Ernesto, op. cit., p. 231.

[10] LACLAU, Ernesto. Populism and popular ideologies, Larau Studies, vol III, nº 2/3, Canadá, Janeiro/1980,  p. 11.

[11] CUEVA, Agustín,  El populismo como problema teórico, in: Agustín Cueva: Ensayos sociológicos y políticos. Quito: V & M Gráficas, 2012, p. 234.

[12] Ver MOLYNEUX, Jonh. The national question: some basic principles (Texto policopiado).

[13] Ver entrevista do sociólogo Antonio Cattani à revista Carta Capital. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-ha-fascismo-mas-malignidade-no-brasil-diz-sociologo/>

[14] BERNARDO, João. Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. 3 ed., disponível em: < https://ia803109.us.archive.org/3/items/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o.pdf>

[15]  MARX, Karl. 18 Brumário de Luís Bonaparte, op. cit., pp. 25-26.

Ivonaldo Leite – sociólogo, professor na Universidade Federal da Paraíba

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

1 Comentário

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  1. Texto muito elucidativo, muito bom, em que pesem alguns pequenos deslizes em seu início:

    um erro de digitação, “coração”, no lugar de “coroação” e uma simplificação, ao meu entender reducionista, ao elencar as razões pelas quais um livro se torna “clássico”.

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