Panamá, uma certa modernidade, por Luiz Felipe Viel Moreira

Cruzando História e Literatura sobre o laboratório que foi o Panamá pós-1989, no qual nos bombardeavam pelos acontecimentos que sucederam

Uma certa modernidade

por Luiz Felipe Viel Moreira

A historiografia centro-americana há pouco passou a incluir o Panamá em seus estudos.  As poucas associações com o restante do istmo durante o período colonial não se alteraram no século XIX, quando a região, nas lutas de independência, ficou pertencendo à Colômbia. No novo século, quando do surgimento como nação (1903), seguiram pesando suas particularidades, com seus vínculos socioculturais com o Caribe e a ação direta do imperialismo estadunidense – que significou a construção do Canal do Panamá (1914).

O controle do canal, bem como de uma faixa de 5 milhas de cada lado, entregues, inicialmente, de modo perpétuo em troca de um pagamento mensal, dividiu o país em dois, dando origem a uma zona de apartheid social na área estrangeira ocupada. O canal foi o centro das lutas políticas nacionais, até sua definitiva devolução em 2000, depois de inúmeros acordos. Neste processo, se destacaram três importantes atores. Uma elite e uma Polícia Nacional que, ao longo da história, foram se metamorfoseando e um movimento estudantil, base de uma consciência nacional, cujas lutas anti-imperialistas mobilizaram a sociedade panamenha.

Arnulfo Arias (1901-1988) chegou à presidência pela primeira vez em 1940. Seu irmão, Harmodio Arias, já havia sido mandatário de 1932 a 1936, com seu filho Roberto também tendo participado da vida política nacional, e conhecido por ser casado com a bailarina inglesa Margot Fonteyn. Arnulfo teve uma vida política mais longeva que o irmão, porém nunca terminou os períodos que constitucionalmente lhe correspondiam.

Ao não aceitar a pressão para a instalação de bases norte-americanas fora do canal, em 1941, sofreu seu primeiro golpe de Estado por parte da Polícia Nacional. Em 1949, voltou ao cargo, não conseguindo novamente terminar seu mandato por conta do golpe de 1951, que agora era dado por pressões internas, resultado das disputas entre as próprias elites. Para a época, a Polícia Nacional, que sempre foi o árbitro da vida política do país, se transformou em Guarda Nacional. Tratava-se de uma força armada mais profissional, e que também passou a atuar diretamente na política. Quando das eleições de 1968, Arnulfo Arias ascendeu à presidência pela terceira vez, sendo deposto apenas alguns dias depois.

O golpe de 1968 imprimiu uma nova etapa na história republicana, com a Guarda Nacional passando a ser o poder de fato no país. À frente da instituição militar, e marcando épocas, estiveram os generais Omar Torrijos e Manuel Noriega. Torrijos de forma positiva, pelas políticas nacionalistas e por finalmente ter logrado um acordo com o governo Carter, em 1977, estabelecendo as etapas para a devolução definitiva do canal. Com sua morte, em 1981, o novo homem forte do país passou a ser Noriega, sem as habilidades políticas de seu antecessor. A fraude eleitoral de 1984, praticada a favor do candidato vinculado aos militares, mergulhou o país numa crise política interna que se manteve em permanente aumento. Já para 1987, os EUA retiravam o apoio ao regime e imputaram o general Noriega, outrora aliado, em esquemas de narcotráfico e lavagem de dinheiro.

As sanções impostas aceleraram a crise econômica no país. Bush pai chegou à Casa Branca em janeiro de 1989 e em novembro ocorreu a queda do muro de Berlin, marcando simbolicamente o coroamento da alteração de uma nova ordem econômico-social a que praticamente nenhum país passou ileso. A invasão do Panamá em dezembro de 1989, intervenção num país considerado estratégico, foi a carta de apresentação do novo poder imperial norte-americano pós-guerra fria . O grande Estado gendarme do Norte, sem nenhum contrapeso na chamada defesa dos interesses do coletivo Ocidental, passava a ter uma atuação mundial quase irrestrita após a debacle da União Soviética em 1991. Entretanto, nos 30 anos que seguiram, da guerra do Golfo em 1992 ao atual conflito na Ucrânia, muita água passou por baixo da ponte. Mas o que aconteceu no Panamá foi a primeira experiência de uma nova engenharia político-militar.

Quando do início da invasão, em 20 de dezembro de 1989, a escritora Lili Mendoza, nascida na Cidade do Panamá, em 1974, era ainda uma adolescente. O bairro de El Chorrillo, onde estava a sede da Guarda Nacional, foi parcialmente destruído, ficando para trás um passivo calculado em 4 mil mortos. As mudanças que vieram ao longo da década de 1990 foram muitas. O retorno da democracia liberal foi acompanhado do fim das Forças Armadas, transformadas novamente em Polícia Nacional, como na Costa Rica. O país passou a implementar as exigidas políticas econômicas neoliberais. No curto prazo, o Panamá se beneficiou com o aumento do comércio mundial. O controle do canal a partir de 2000 significou a incorporação de um enorme ativo, que impulsionou a economia, acentuadamente no setor financeiro e de serviços. O conto “El corte” de Lili Mendoza se desenvolve no microcosmo de El Chorrillo, que fica na parte antiga da cidade . Neste, uma moradora, que se criara em Caledonia, bairro próximo, reflete sobre a especulação imobiliária agressiva, transformando a paisagem urbana e expulsando seus antigos moradores pobres. Metade do bairro trabalhando na construção civil, com uma parte na total informalidade. Um aburguesamento de uma área e seu White Panic, com o nulo desejo de estar próximo das populações negras. Porém, o bairro vizinho do Casco Antiguo prometia resistir aos engravatados, cuja definição de progresso é la ausencia de ti. Uma modernização urbana que transformou Punta Paitilla, outro bairro adjacente, numa das áreas onde o m² é dos mais caros do mundo. Não por menos, sua autora, declarava que, escrever desde onde se encontrava era desfazer-se entre a cidade que crescia e o desarraigo que atingia a seus moradores, movidos de um extremo a outro pelo bem-estar de uma pujante economia que beneficiava apenas a alguns.

Dos escombros de El Chorrillo nascia a nova república, com um bipartidarismo bastante marcante, herança de duas tradições políticas. Arnulfo Arias, que havia concorrido pela quarta vez nas eleições de 1984, não chegou a conhecer as transformações que se operaram no Panamá, pois faleceu nos EUA em 1988. Mireya Moscoso, sua jovem viúva – haviam se casado em 1968, ele tendo 67 e ela 23 anos – herdou a empresa de café e o capital político do marido. E, pelo Partido Panameño, por ele fundado, chegou à presidência (1999-2004), lhe tocando as cerimônias pela posse definitiva do canal. A outra tradição era o Partido Revolucionario Democrático (PRD), criado pelo general Omar Torrijos. Por este mesmo partido, seu filho Martín, usando agora o capital político do pai, chegou à presidência (2004-2009). Ao longo das três últimas décadas, em governos de ambas as agremiações, se operaram grandes obras de renovação urbana na Cidade do Panamá.

O conto foi publicado originalmente na revista Soho, em 2013, quando se ultimavam as obras do metrô da capital, o primeiro em toda América Central, convertendo a cidade num imã do negócio mundial imobiliário. Mudanças essas que alcançaram, entre outros, os bairros de El Chorrillo, Caledonia e Punta Paitilla, mas que revelaram outros problemas. Denúncias de corrupção envolvendo obras da construtora brasileira Odebrecht, inclusive a do metrô, atingiram os três últimos governos. Em 2016, quando veio à tona o caso Panamá Parpers, ficou em evidência o papel do Panamá como paraíso fiscal para a evasão de impostos. Era a festa do rentismo mundial em um país que continuava a ser de trânsito, mesmo depois da severa crise do capitalismo mundial em 2008.

Para a época, um dos sócios do escritório de advocacia Mossack Fonseca era Ramón Fonseca Mora, ministro-conselheiro do presidente. A aventura da modernidade, acelerada pela dinâmica da economia globalizada que atingiu o Panamá no século XXI, para Lili Mendoza e sua personagem feminina, não deixava de ser a concepção de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Mas as rápidas mudanças trouxeram uma violência envolvendo novos atores, a “geração yuppie”, os “young urban professional”, em geral jovens bens sucedidos financeiramente e que acordes aos novos tempos, marcavam a nova materialidade. Essas percepções também foram plasmadas na literatura por outra escritora, a panamenha Melanie Taylor, que nasceu na Cidade do Panamá, em 1972.

O conto “Baile con la muerte” foi publicado originalmente em seu livro de relatos “Camino a Mariato”, de 2009. Para a autora, toda América Central é o choque do urbano e o rural, do sofisticado e o grotesco, da abundância delirante e a pobreza extrema. E nisto não está isento o Panamá, o maior PIB de toda região. Assim, relata a história de dois homens, dirigindo uma camionete 4X4, que vão até o edifício Roca Vieja, no bairro de Punta Paitilla da Cidade do Panamá, e estacionam na calçada oposta, estudando uma rotina. O “homem alvo” chegava ao luxuoso prédio depois das 23 hs em um Audi A4, e antes de subir para o apartamento sempre fumava um cigarro na frente do edifício – uma mania muito conveniente. Confirmada a práxis, no dia da ação definitiva, agora em moto, os sicários usando uma sub metralhadora mini Uzi israelense efetivam o serviço. E a notícia do assassinato de um importante empresário já estava no mesmo dia no noticiário da meia-noite.

Um gráfico do PIB per capita principalmente dos anos 1990 aos dias de hoje, demonstra o quanto o crescimento da economia do Panamá, maior até mesmo que a da Costa Rica, começou a se diferenciar desde então dos demais países da América Central. Dados importantes, mas que não expressam a desigualdade social e a concentração da renda, marca da era em que vivemos. O país, beneficiado mesmo no período colonial por uma economia de passagem, nas últimas três décadas veio se reposicionando como centro financeiro do capitalismo neoliberal. Entretanto, ao longo da segunda década do século XXI, mantinha um índice de pobreza em torno de 23% da população.

E as faturas começaram a chegar neste 2022, pós-pandemia. As lutas recrudesceram pelas melhorias nas condições de vida. Manifestações e bloqueios de estradas aconteceram na metade do ano, em protesto contra o aumento da inflação e a corrupção. O descontentamento se produz em um cenário de 4,2% de inflação interanual registrado em maio, uma taxa de desemprego de em torno de 10% e um aumento no preço do combustível de 47% desde o início do ano. O país vive hoje sua maior crise social, desde os acontecimentos de 1989, acompanhando os ventos da mudança de um mundo unipolar para multipolar.

E tudo isto em uma única geração. O discurso histórico de Putin de 2007, na Conferência sobre Segurança em Munique, já antecipava a nova realidade, com a férrea disposição de voltar a reposicionar a Rússia no tabuleiro do xadrez internacional. Por outros caminhos o mesmo acontecia com a China, dado seu crescimento econômico, e participação nos grandes investimentos econômicos do sul-global em obras de infraestrutura e a nova Rota da Seda. As placas tectônicas estão movendo o atlanticismo que se creia consolidado, e o centro econômico do mundo volta, depois de um interregno de quase três séculos iniciados com a revolução industrial, para onde sempre esteve, o oriente. 

Todavia creio que ainda veremos partes destas mudanças. Todos estes acontecimentos estão coincidindo em minha vida adulta, uma história de curta duração. Neste ano voltei a Santiago (RS), lugar da minha infância, e onde não ia desde 1989. E foi muito simbólico, pois coincide com o narrado sobre o Panamá. Lá estão minhas raízes, e pessoas a quem quero. Em Santa Maria, local de transbordo, a busca pelo perfil de um Gato em neon (vermelho ou azul?), que atraia os clientes para um café numa galeria no centro da cidade, já não existe mais – era o símbolo do que eu entendia ser a modernidade. Mais que um conceito, um sentimento contendo minhas contradições referendadas ao longo do tempo. Se esta modernidade partiu de uma simplicidade visual e cheia de encanto no final dos anos 60, de forma mais “sofisticada”, é agora marcada por leituras ecléticas que permanentemente me ajudam a reposicionar meu olhar sobre o mundo. E dois livros cumpriram essa função, me acompanhando na longa viagem de ônibus para uma parada a qual desci pela última vez há 33 anos atrás.

Na ida, ‘Pobrecito poeta que era yo’, único romance do poeta Roque Dalton, morto em 1975 pelos próprios colegas do ERP, uma das sub divisões da guerrilha de esquerda salvadorenha. Um personagem adiante de seu tempo e que rompeu moldes. Tanto crítico de um intelectualismo burguês vazio, quanto distante da ortodoxia e da disciplina cobrada a todos os ‘camaradas’ – as exigências para ser parido o ‘homem novo’. E muito mais ainda da profecia auto realizável da sociedade ocidental, transformada em tecnofeudal e cada vez mais concentradora de renda nas mãos de poucos – realidade a que lhe foi negada conhecer.

Na volta, o Mangá de Inio Asano, “What a wonderful world” (contos compilados pelo autor de 2002 à 2004 e publicados em livro no Japão, em 2019). Personagens jovens, na maioria entre 18 e 26 anos. Uma coletânea de 21 histórias mostrando o dia a dia de um grupo que vivia em uma vizinhança na cidade de Tóquio e de como enfrentam as adversidades da vida: os fracassos no ingresso à uma universidade; a realidade da precariedade dos empregos; as relações afetivas… Dramas existenciais bem distantes de um Japão tradicional que nos é vendido. De todos, por empatia, dois me levaram a refletir.

Em “Sol depois da chuva”, uma irmã mais velha, mas ainda sem ter alcançado os 30 anos, sustenta uma casa antiga, já caindo aos pedaços, com seu emprego fixo no setor administrativo de um hospital. Uma família formada por outros dois irmãos: um que já está na universidade e outra fazendo cursinhos para tentar lograr entrar. O pai fora transferido para o exterior no ano em que a menor, Tae, nasceu, e nunca mais apareceu. A mãe morreu três anos depois em um acidente. Uma família disfuncional, onde Tae por aí desaparece, mas sempre retorna ao final para casa. Já “Época das cerejeiras” é uma distopia. Há um ano uma doença começou a se alastrar no Japão, com as pessoas perdendo a memória, impedindo-as de terem qualquer sentimento; transformadas em bonecos que sobrevivem pelo auxílio dos que os contêm. Para o autor, nos dias de hoje, essa seria uma pandemia até que bem conveniente. Uma cerejeira em flor que um jovem casal acompanhou seu crescimento, é a única reação de felicidade dela na nova realidade, e a promessa do namorado que a cuida de que sempre voltarão para vê-la no próximo ano. Apesar de tudo, existe a solidariedade e a esperança, e creio ter sido este o motivo das escolhas.

Ao final, apenas refleti cruzando História e Literatura sobre o laboratório que foi o Panamá pós-1989, no qual nos bombardeavam, pelos acontecimentos que sucederam, principalmente na década de 90, que havíamos chegado ao fim da História. A narrativa imposta não se sustentou pelo simples fato de não ser plural. Com maestria, Gabriel García Márquez nos diz de forma simples e objetiva que a vida não é a que a gente viveu, senão o que cada um lembra e como a recorda para contá-la. Em linhas acima apenas está a experiência sobre modernidade que me acompanha, e o desejo ainda premente do aparecimento de um ‘homem novo’. Tudo isto não deixa de me acordar as imagens em uma camiseta vista em Córdoba, na Argentina, ainda nos anos 90. Os escritos, na língua ameríndia quéchua, tinham uma tradução castelhana que dizia algo como: “Con estos signos no llegamos a la luna, pero no destruimos el planeta”. Tomara que isto ainda seja possível. 

Luiz Felipe Viel Moreira – Graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1984), mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1993) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1999). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Latino-Americana

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