Por trás da beleza dos fogos de artifício, por Marinês Eiterer

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

Versão anterior do artigo reproduzido abaixo foi publicada n’Observatório da Imprensa, em dezembro de 2013.

Por trás da beleza dos fogos de artifício

por Marinês Eiterer

Não pretendo assistir a nenhuma queima de fogos durante a passagem de ano. Aqui onde moro, um vizinho de vez em quando solta um rojão (quando o time de futebol dele vence uma partida importante ou no dia da padroeira da cidade, por exemplo), mas nada muito exagerado.

Comecei a ler a respeito dos fogos de artifício por causa de notícias tratando do impacto negativo que eles têm sobre a fauna, principalmente as aves. Quanto mais leio sobre o assunto, mais impressionada eu fico.

De Santo Antônio do Monte ao Rio de Janeiro

Os dois maiores produtores mundiais desses artefatos são a China e o Brasil. A produção brasileira está concentrada em Santo Antônio do Monte, um pequeno município da região Oeste de Minas Gerais.

Embora muitos dos 27 mil habitantes da cidade dependam (direta ou indiretamente) das 70 fábricas locais que lidam com a produção de fogos de artifício, os santo-antonienses não costumam promover espetáculos pirotécnicos. Curioso, não é? Mas há motivos para isso: acidentes e tragédias envolvendo fogos de artifício são recorrentes por lá – ver, por exemplo, a matéria ‘Fábrica de fogos de artifício explode e duas trabalhadoras morrem em Santo Antônio do Monte’, publicada no portal G1, em 10/10/2017. Acidentes na linha de produção costumam ser fatais ou mutilantes.

Além disso, as condições de trabalho são precárias, a exemplo do que ocorre em tantas cidades brasileiras. As jornadas são extenuantes; os operários estão sempre sob pressão para aumentar a produção; casos de assédio sexual são comuns – para detalhes, ver ‘Os bastidores da produção de fogos de artifício em Santo Antônio do Monte: degradação das condições de trabalho e saúde dos pirotecnistas’, de Carlos E. C. Vieira & outros três coautores, publicado na revista Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, em 2012.

Na outra ponta desse pesadelo estão os grandes eventos pirotécnicos. Veja o caso da cidade do Rio de Janeiro, cujo espetáculo de fim de ano é uma queima de fogos das mais extravagantes – “um bolo seco e sem gosto, com uma exagerada cobertura de chantilly colorido”, como diria o meu marido. Na passagem de ano de logo mais (2017/2018), o evento deverá ter uma duração de 17 minutos, durante os quais serão gastas 25 toneladas de fogos. A um custo de R$ 2 milhões, segundo os promotores, o espetáculo deve atrair três milhões de espectadores (muitos vindos de fora da cidade), os quais deverão injetar cerca de R$ 2 bilhões na economia local.

Algumas vítimas da pirotecnia

No âmbito da biologia da conservação, um espetáculo dessa magnitude é uma perturbação antropogênica cujos impactos sobre a vida selvagem constituem uma séria e justificada preocupação. Para os espectadores, tanto os que presenciam como os que assistem pela TV, toda aquela pirotecnia é vista tão somente como um “grandioso e bonito espetáculo”.

Todavia, mesmo os apreciadores devem reconhecer que o barulho excessivo e duradouro e as luzes brilhantes são uma fonte de estresse para muitos animais. Qualquer um que tenha um cão em casa pode falar sobre isso. Os animais ficam muito agitados; tentam se esconder; latem, uivam e chegam a urinar. Estudos científicos têm comprovado o que os tutores já sabiam: o barulho excessivo dos fogos de artifício é uma experiência traumática para os cães. Mas os cães são apenas a ponta de um imenso iceberg. Vejamos dois exemplos.

Às vésperas da passagem de 2010 para 2011, a mortandade repentina de cerca de 5 mil pássaros-pretos-da-asa-vermelha (Agelaius phoeniceus), na pequena cidade de Beebe, no estado de Arkansas (Estados Unidos), atraiu a atenção da mídia – ver as matérias ‘For Arkansas blackbirds, the New Year never came’, de Campbell Robertson, publicada no The New York Times, em 3/1/2011; e ‘Fogo-de-artifício terá causado pânico e morte a milhares de aves no Arkansas’, de Helena Geraldes, publicada no Público, em 4/1/2011.

O exame de imagens de radar revelou que, naquela noite, bandos numerosos abandonaram os seus poleiros repentinamente, bem no meio de uma noite chuvosa. Os fogos de artifício assustaram e desorientaram as aves, muitas das quais morreram ao se chocar violentamente contra os mais diversos obstáculos. Sem a perturbação repentina, as aves provavelmente teriam permanecido em seus poleiros noturnos.

O segundo exemplo vem da Holanda. Usando um radar meteorológico, pesquisadores quantificaram a reação das aves aos fogos de artifício durante a passagem do ano, em vários anos consecutivos (ver aqui). Milhares de aves saíram em dabandada pouco depois da meia-noite. Os bandos mais numerosos foram observados em áreas de pastagens e locais úmidos, incluindo áreas protegidas, onde milhares de aves aquáticas habitualmente descansam e se alimentam. Perturbações dessa magnitude durante a época reprodutiva podem resultar no abandono de ninhos, deixando ovos e filhotes desprotegidos; isso eleva as taxas de mortalidade e contribui para uma subsequente redução nos efetivos populacionais.

Inalando a Tabela Periódica

Fogos de artifício contaminam o ar e podem contaminar a água. Um contaminante particularmente insidioso é o perclorato – ver, por exemplo, o artigo ‘Environmental impacts of perchlorate with special reference to fireworks – a review’, de M. R. Sijimol & Mahesh Mohan, publicado na revista Environmental Monitoring and Assessment, em 2014.

Trata-se de um íon inorgânico formado por um átomo de cloro e quatro átomos de oxigênio (ClO4). É utilizado na fabricação de airbags, sinalizadores, explosivos, fertilizantes e produtos químicos variados. O perclorato é altamente solúvel em água. Ingerido, pode afetar o funcionamento da glândula tireoide, que regula o metabolismo do corpo, sendo que mulheres grávidas, crianças pequenas e indivíduos com hipotireoidismo são particularmente suscetíveis.

Quando explodem perto de corpos d’água, os fogos contaminam tanto a própria água como os organismos que vivem ali. Durante um evento pirotécnico, o ar atmosférico pode receber uma descarga considerável de mais de uma dezena de elementos químicos, incluindo estrôncio (86x), potássio (26x), bário (11x), cobalto (9x), chumbo (7x), cobre (5x), zinco (4x), bismuto (4x), magnésio (4x), rubídio (4x), antimônio (3x), fósforo (3x), cálcio (2x), manganês (2x), arsênio (2x) e titânio (2x), além de SO42– (2x). Os números entre parênteses indicam quantas vezes a concentração de cada elemento aumentou durante um estudo de caso – para detalhes, ver artigo ‘Effect of fireworks events on urban background trace metal aerosol concentrations: Is the cocktail worth the show?’, de Teresa Moreno & outros 9 coautores, publicado na Journal of Hazardous Materials, em 2010. A inalação de ar assim contaminado é um risco imediato à saúde dos espectadores, sobretudo no caso de indivíduos asmáticos.

Como se vê, além de “bonito e grandioso”, a queima de fogos em larga de escala – em qualquer cidade do planeta, não apenas no Rio de Janeiro – é um evento que mata e envenena. Em alguns países, esses impactos já vêm sendo discutidos, seja para reduzir a quantidade de fogos utilizados, seja para encontrar locais mais apropriados. Mas isso, claro, é uma conversa de gente grande que a nossa mídia infantilizada (e infantilizadora) prefere deixar de lado. Em todo caso, se o assunto é novo para você e se as informações acima o(a) deixaram incomodado(a), faça como eu: evite – não vá, não assista.

Redação

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