Quantos falta  matar?, por Wilson Luiz Müller

A contaminação traz a crença no lugar da ciência.  Na verdade, quanto mais matam, mais têm vontade de matar. Quando isso começa, quando dá muito certo, é difícil parar.

Quantos falta  matar?

Não aceito desculpas. Se não era para matar gente, por que contrataram um assassino?

por Wilson Luiz Müller

Trinta mil. Esse é o número que ouvimos o maquinista falar. Mas as coisas estão evoluindo rápido. Vai ser muito mais. No vagão onde estamos chegam informações pouco confiáveis. Apesar de estarmos na mesma viagem, temos crenças diferentes sobre o que nos espera no destino.

Não sei quantos vagões nos separam da locomotiva do maquinista. A função dele é levar-nos ao matadouro. Ele anda excitado porque sempre sonhou que lhe dessem semelhante tarefa. Mal consegue dormir à noite, tamanha ansiedade para concluir a empreitada. Mas são muitos vagões.

Empilhados em pé dentro de vagões lotados, os judeus poloneses são conduzidos aos campos de concentração nazistas na Alemanha para serem incinerados nas câmaras de gás.

Há uma estrada perto da minha casa por onde passam caminhões carregando gado para o abatedouro. Vejo os bois dentro dos vagões, cansados e judiados pela viagem, ansiosos por chegar ao destino. Para me conformar, penso que eles só tem a memória de um campo de pasto verde, que os bois viajam na ilusão de um destino idílico.  Mas será mesmo que não desconfiam de nada? Por que então se debatem, se contorcem ao chegar no brete por onde devem entrar no matadouro? Será o cheiro de sangue? Será um gesto de solidariedade diante do último gemido de dor do parceiro de viagem que acabou de receber o golpe derradeiro?

Na primeira vez que visitei o matadouro, os bois eram mortos com uma marretada na parte de cima da cabeça. O golpe vinha de um lugar de onde o animal menos esperava. O operário encarregado de operar o direito de extirpar em definitivo a vida de outro animal ficava  postado acima da linha do olhar das vítimas.

Anos mais tarde mudaram o cenário da morte, por causa de reclamações das organizações dos direitos dos animais. Também mudaram as ferramentas. Parece que agora os bois recebem uma descarga elétrica. Desmaiam para em seguida serem suavemente sangrados. Não sem antes terem os pés acorrentados e serem alçados de ponta-cabeça para o sangue escorrer do pescoço direito para as canaletas coletoras. Fazem um tipo de linguiça com isso.

É desagradável? A experiência de uma morte assim matada, ou a morte sanguinariamente narrada?  O que incomoda exatamente? Seria adequado mudar palavras para não afetar sensibilidades?

As palavras assim dispostas pretendem ser um antídoto para combater o mal causado pelo experimento em curso, porque

palavras convencionais

não incomodam mais.

Os vagões de trás estão cheios de gente pesada em arrobas, de preguiçosos e vagabundos pendurados em programas sociais do governo, de donos primeiros da terra brasil que se negam agora a entregar para os brancos ricos o resto de sua força de trabalho e das reservas onde o resto dos primeiros donos ainda mora. O número de vagões apinhados com essa gente é infinitamente maior que o dos que estão a nossa frente.

Essa visão do que vem atrás de nós anima meus parceiros de viagem. Cidadãos de bem, acreditam que esses vagões carregados com toda essa gentalha, que tem a cor errada na pele, venham nos substituir na entrada do abatedouro. Explico que isso é impossível. Não apelo a argumentos humanitários, porque tornaram-se impermeáveis a isso. Digo que é impossível porque o trem teria que correr no sentido contrário. Dizem que é preciso ter fé. Na inversão da lógica?

Por que tantos passageiros se deixam conduzir tão bovinamente ao matadouro?

Tentei entabular conversa com meus parceiros de viagem, explicar o que acontece. Eles me retrucam com frases e fórmulas pré-fabricadas. Misturam realidade com crença, tudo está no mesmo plano. A verdade é agora uma conveniência regida pelo mundo dos negócios e pelas crenças. De algum lugar invisível, uma força define a verdade vantajosa a ser acreditada.

O experimento é inspirado na história de Adolfo Bioy Casares. Em “A  Máquina Fantástica”,  um condenado à prisão perpétua foge para uma ilha isolada. Uma epidemia desconhecida ameaça com uma morte horrível os que ousam desembarcar. Apesar disso, estranhos aparecem na ilha. Isso obriga o condenado a se mover num cenário fictício em que a única realidade possível é a reprodução eterna, sempre igual, de um passado há muito extinto.

Meus companheiros de viagem tiveram suas conexões neurais invadidas pela projeção repetitiva de uma sequência bem estudada de caracteres e imagens. Um novo mundo, paralelo, ocupou em suas mentes o lugar outrora ocupado por reações químicas vitais e normais. Todos os dias as sequências são retransmitidas por milhões de pequenas telas espalhadas por todos os lados. Eles assimilam a mensagem. Eles repetem a mensagem. Eles acreditam que a mensagem foi produzida na sua mente.

Pode-se especular que a eficiência dessa técnica consiste no fato de a sequência de caracteres se encaixar no código genético dos receptores, igual ao encaixe do vírus nas moléculas de proteína do hospedeiro. No popular, tudo isso poderia ser traduzido em concordância entre receptor e mensagem recebida.

O maquinista, exatamente este, foi contratado por encarnar esses sentimentos difusamente dissolvidos em ódio. Para as mentes infectadas, o maquinista funciona como espelho e locutor de rádio ao mesmo tempo.

A mentira inoculada nas ramificações nervosas atua como o lixo tóxico entupindo as bocas de lobo das ruas da cidade. O fedor e a imundície sobem à superfície para empestar a tudo e a todos.

Penso em tudo isso enquanto estamos sendo conduzidos como gado ao abatedouro. Tento provar, nem que seja a mim mesmo,  que o entendimento serve também para não sermos mortos de uma forma estúpida.

Vi numa dessas telinhas – que evito encarar para evitar a contaminação -, que faltava matar só 25 mil. Seriam uns  125 vagões como este em que viajo. Mas fiquei sabendo por outras fontes que falta bem menos. Só uns 15 mil, porque outros 15 mil já teriam sido mortos. A parte ruim é que mataram muito mais do que dizem. A parte boa é que teria menos gente para matar daqui para frente. Se essa fonte estiver correta, seriam apenas 75 vagões. Se o nosso vagão for o de número 76, por exemplo, poderemos nos safar. Calma. Esse pensamento corrompido é apenas um exercício heterodoxo de descontaminação mental.

Suspeito dos números. Esses tipos que estão no comando não são confiáveis. Gente, para eles, são apenas números. Mentem sobre os dinheiros que ganham com a matança. Mentem sobre as gentes matadas e sobre as que ainda carece matar. Dinheiros, coisas, gentes. Essa é a ordem de pensamento. É por isso que o maquinista do trem não é um professor, ou um médico de gentes, mas um aprendiz de assassino.

Suspeito que quando cheguem nos 30 mil, os donos do trem vão dizer: nos enganamos, na verdade precisamos matar mais 30 mil. E assim de novo quando chegarem aos 60 mil; vai ser preciso matar mais 60 mil. Logo ninguém mais se espantará se os mortos passarem de 100 mil. Vão dizer: ia ser bem pior se os donos do trem não fossem cidadãos de bem! Se os donos não tivessem contido a tempo os ânimos assassinos do maquinista! Na verdade, são manipuladores desde sempre; nós outros, manipuláveis, números na fila do abatedouro.

Como dói ver familiares e amigos sendo arrastados pela alienação mental que causa tanto sofrimento, que vai levar tantos à morte! Como é possível ainda olhar para eles e fazer de conta que tudo está bem?

Falta matar quantos então? Explico aos parceiros de viagem a mecânica da morte, a quantia de dinheiro, de dias e horas que nos separam do momento final. Mostro, com elementos matemáticos, que os mortos matados eram que nem nós. A única diferença é que estavam vários vagões a nossa frente. Que o trem é o mesmo. Que se os donos do empreendimento continuarem esvaziando  um ou dois vagões por dia no abatedouro, mais cedo mais tarde chegará a nossa vez. É uma questão de lógica, não precisa nem saber fazer conta.

Eles negaceiam com a cabeça. Olham pela janela em direção aos campos e árvores que fogem do trem. Depois respondem, com ar de superioridade espiritual, que o destino do nosso vagão será uma campina verdejante com águas cristalinas onde mana leite e mel.

Digo para outro: viu que ontem foram deixados mais de quinhentos no matadouro? Ele responde: não vejo as coisas desse jeito. Em outros tempos morriam tantos cidadãos de bem na mão dos bandidos. Agora é isso, quem tem culpa? Olhe a paisagem bonita lá fora. Quem está no comando sabe das coisas, vão nos levar para uma campina verdejante onde…

Sei, sei, não precisa continuar, onde brota água cristalina e mana leite e mel. Sim, a fonte é a mesma, continua gotejando, a inflamação será persistente e a cura não está próxima. Há sequelas neurais, não há dúvida.

500 num dia, um bom número. Mas vai ser mais. Agora engrenou a linha de produção, pegaram o timing do negócio.

Parece fácil entender porque o maquinista foi contratado: é um covarde ávido por provar sua  valentia, pois desde sempre humilhou as gentes mais vulneráveis. Agora que os donos lhe deram de presente essa importante função, ele pode elevar a covardia a níveis mais avançados.

Por que fazem isso? Formulo a pergunta no plural, porque os que apoiam o maquinista –  e isso contempla os donos que o contrataram – fingindo não entender o que ele pretende, esses apoiadores são iguais ao maquinista. Muitos são ainda mais covardes porque não tem coragem de assumir que apoiam o maquinista porque apoiam  a empreitada que conduz à morte.

Quando pessoas más são colocados no comando de funções que exigem bondade, não se pode esperar resultados bons. Talvez a causa primeira nem seja a maldade. Talvez os negócios venham em primeiro lugar. Em busca de fazer bons negócios, algumas pessoas mostram o quanto de maldade tem dentro se si.

Veja você o caso do maquinista, digo para o parceiro ao lado: é um fantoche contratado por empreitada. Vai ganhar a parte dele e depois poderá viver uma vida boa, talvez em algum país inimigo de nossa gente. Ele gosta de fazer isso porque sempre foi uma pessoa má. Não prestou como marido, como pai, como colega de trabalho, foi sempre um preguiçoso, um parasita vivendo do suor e do sangue alheios. Nunca foi exemplo para nada, para ninguém. Se fossem lhe oferecer o encargo de coveiro, para enterrar gente – coisa que demanda trabalho e seriedade -, ele declinaria do convite. O negócio dele é se divertir levando os outros à morte. Esse serviço aqui ele adora, acharam o tipo certo para a empreitada. Ele se vinga fazendo o máximo de maldade no mais curto espaço de tempo possível. Porque ele sabe que o tempo urge. Mas isso não vai resolver o principal problema dele, que é o sentimento de ter sido durante a vida inteira um imprestável, de ter vivido tanto tempo sem que alguma pessoa decente tivesse motivo para elogiá-lo por qualquer coisa.

É a sua visão pessoal, responde ele. Ele só faz o tipo malvado, mas tem bom coração. E se passar dos limites, ele vai ser contido pelos donos. Eles não vão permitir que leve tanta gente à morte como você está dizendo.

Sim, entendo. Não procure explicar melhor  porque vai ficar pior. Quem inventa essas ideias que chegam às mentes dominadas criou esse ciclo vicioso e repetitivo de respostas prontas que apontam para o negacionismo e conformismo. Para restar a sensação de que não há opções inteligentes e viáveis ao trágico destino.

Não aceito desculpas. Se não era para matar gente, por que contrataram um assassino?

E os corpos, onde será que os empilham? Devem ser montes. Um dos donos do empreendimento estava contrariado com os gastos feitos para enterrar tanta gente. Ele queria uma solução mais barata. Não concorda em comprar mais máquinas só para abrir buracos. O que vamos fazer com tantas máquinas depois de enterrar a todos? disse ele indignado, temendo prejuízos na continuidade do empreendimento.

Em outros tempos, esse relato seria tido como ficção. Mas isso também foi assim em outros momentos da história. As câmaras de gás no início pareciam ficção. Depois os nazistas convenceram seus concidadãos de que a incineração era uma técnica mais racional e barata do que ficar o dia inteiro fuzilando judeus. O tempo e os recursos poderiam ser melhor aproveitados para os cidadãos de bem poupados da morte. A partir dessa boa notícia  a ideia das câmaras de gás foi aceita com naturalidade.

Quando os vagões chegam no abatedouro para serem esvaziados, o maquinista faz questão de ocupar um papel de destaque no ritual.  Ele veste  o jaquetão verde-oliva salpicado de estrelas e medalhas que o chefe do abatedouro pendura no vão de entrada ao iniciar seus afazeres, para ter mais mobilidade. Os dois são íntimos a ponto de usarem a mesma roupa. Vestido com a roupa do chefe do estado-maior da linha de produção, o maquinista se apresenta:

– Comandante Ustra! Aprendiz de carniceiro se apresentando para a missão!

Depois da continência, o maquinista entorta a boca e esgarça um riso medonho que faz as gentes na fila do brete desejar morrer antes do serviço começar.

Ninguém sabe o que houve com esse ser inominável, se ele nasceu assim ou se desaprendeu a sorrir por causa de alguma ruindade excepcional que tenha feito na vida. O fato é que agora lhe sai esse grasnar de corvo no lugar do riso.

Esse tal ustra nem existe de verdade, dizem meus parceiros de viagem. Esse ustra é só um personagem do livrinho de cabeceira do maquinista. Esse herói de ficção caça, tortura e mata terroristas no livro. É só isso e nada mais.

Isso me faz lembrar do poema O Corvo, de Edgar Alan Poe. Então é isso e nada mais. Por que ainda me espanto?

Estão dizendo que os donos do trem estão descontentes com o maquinista, especulam alguns;  vão botar alguém mais simpático, que vai vir conversar primeiro com a gente para ver como vão fazer as coisas.

Sim, ouvi isso também, respondo. Mas que coisas eles querem mudar trocando o maquinista?

Isso não foi falado; apenas que agora seria bom tirar o maquinista. Se ele sair, podem trocar o chefe do estado-maior do abatedouro. Aquele comandante não é de fato um sujeito legal.

Sim, se o maquinista sai, o ustra vai junto, e também as suas ferramentas de trabalho. Mas de que adianta se não vão fechar o matadouro?

Faço contas. 30 mil é apenas um número. Na hora decisiva, não vão se contentar com cifra tão modesta. Pode ser que troquem o maquinista. Mas para mim é um referencial. O que será que vai acontecer quando atingida a cifra perseguida? Um festejo no palácio, risadas esgarçadas de escárnio, escarros no chão em meio a brindes espumantes? E a promessa, no final da festa, de dobrar, triplicar a meta?

Troca o maquinista, toca a matança.

Deve ter uma meta secreta. Maior matança do mundo? No mínimo a medalha de prata, perder apenas para os Estados Unidos. Já que escolhemos ser  capachos dos mais poderosos em tudo o mais que importa, pelo menos vamos disputar a liderança nessa questão aí da matança. E daí? Sou só um maquinista contratado para levar essa gente ao matadouro, não faço milagres! Não dá pra ganhar do Trump, y love ele.

Cada minuto que passa, falta matar menos. Tento me agarrar a essa ideia, mesmo sabendo que não passa de uma ficção. A contaminação traz a crença no lugar da ciência.  Na verdade, quanto mais matam, mais têm vontade de matar. Quando isso começa, quando dá muito certo, é difícil parar.

Como programa de domingo, os oficiais nazistas encarregados dos fuzilamentos de judeus levavam suas esposas para assistir ao espetáculo. Quanto tempo falta para vermos pessoas, acostumadas com a matança,  exclamarem decepcionadas: mas hoje só morreram menos de um mil, tão pouco!?

Quantos falta? Cada vez que pergunto, a resposta é diferente. Se me baseio no número de 30 mil, a cada hora que passa falta matar menos. Mas se me baseio nas intenções dos que comandam o empreendimento, cada vez falta mais gente.

Quantos ainda tem de morrer? Se não puderem me dar um número exato, me dêem ao menos uma estimativa confiável. Talvez assim eu fique um pouco mais tranquilo. Porque pelo andar do trem, fica a sensação de que a matança está apenas começando para terminar nunca mais.

O Corvo de Poe cumprindo a profecia de uma tragédia eternizada pela repetição sem fim.

Wilson Luiz Müller – Integrante do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia (AFD)

Redação

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