Racismo sem Fronteiras, por Marcia Noczynski e Cristiane Alves

A discriminação racial e de gênero ainda atravessam o cotidiano de crianças e de adolescentes em muitos países.

Racismo sem Fronteiras

por Marcia Noczynski e Cristiane Alves

Os estereótipos racistas aprisionam e impedem que negros se comportem com espontaneidade em qualquer lugar. Temos observado como estereótipos edificam as vias que levam a assassinatos, imobilidade social, violência de Estado e perda da liberdade.

Estruturalmente a sociedade produz à ideia condições antagônicas onde ser um branco é ser indivíduo e ser negro é ser um grupo.

Um pensamento conveniente uma vez que se um branco comete um delito constitui campo pessoal. Quando um negro falha confirma a regra.

Como consequência temos os olhares que nos condenam previamente, um consciente coletivo garantido, inclusive, pelas mídias e produções culturais onde o negro é sempre o menos importante e por que não, descartável.

Como humanos nos aferimos pelo olhar dos outros todo tempo. Essa necessidade se torna adoecedora para aqueles que no crivo social são vistos sempre como o contra senso.

Surge a necessidade da adequação, de se aproximar do senso, do que é aceitável e, muitas vezes um negro busca se afastar do que lhe impingem. Uma tentativa de ser “um negro diferente” ou “melhor”. O que se convencionou chamar “alma branca”.

Muitos se recusam a verem-se como negros, pois que se não são ruins, piores, ou delituosos, não o são.

Nesse contexto, crianças e adolescentes em formação de caráter e personalidade, se confrontam com essa estrutura opressora, onde a pele que habitam se torna um lócus de tortura.

A adolescência, do ponto de vista social e afetivo, compreende o período de uma nova formação identitária, em que passamos a projetar no mundo exterior as nossas expectativas de reconhecimento e consideração. Em poucas palavras, é quando dirigimos ao grupo nossa pergunta retórica, quem eu sou?

Enquanto a criança se identifica com o que os pais ou outras figuras de autoridade dizem sobre ela, com elogios ou críticas, o adolescente é refém da apreciação daqueles que estão fora do campo familiar. A criança tem a tendência de se queixar aos pais ou ao professor quando sente que foi agredida por outra criança, o adolescente, ao ser alvo da violência de outro adolescente ou adulto, se cala. A criança, quando num ambiente familiar suficientemente bom, acredita que o errado, o ruim é o outro. O adolescente, mesmo num lar acolhedor e amoroso, tem certeza que o problema é ele mesmo.

Imagine como essa passagem se dá quando o adolescente percebe que a cor da sua pele e sua orientação sexual determinam a especificidade das relações que vai desenvolver a partir dessa fase. O que acontece quando as experiências inaugurais no universo fora de casa são tão ruins que o adolescente prefere se exilar delas?

Para fazer um recorte dessa indagação, vou trazer a experiência de um adolescente que se descreve como alguém que tem a pele mais escura e o cabelo crespo e que é diferente porque gosta de coisas femininas.

Mathias tem dezesseis anos, mora na cidade de Tübingen, na Alemanha, e cursa o décimo ano escolar. Nasceu no Brasil, mas era ainda um bebê quando foi trazido pelos seus pais para o país onde não só vive, mas é também cidadão. Aqui ele conta um pouco dos episódios em que sofreu bullying tanto por racismo quanto por sua orientação sexual.

Uma passagem que o marcou na primeira fase da adolescência foi o final do sexto ano do colégio. Voltando da escola, dois meninos que estudavam com ele na mesma sala de aula o seguiram. No caminho, riam, ofendiam-no com bordões xenofóbicos populares entre os adolescentes, contavam piadas de cunho racista, diziam que todos os brasileiros eram macacos.

Sobre isso, Mathias menciona apenas: “depois dessa experiência eu odiava não ser branco”.

Ele lembra que esses mesmos colegas foram também os primeiros a chamá-lo de gay.
Fora do ambiente escolar, Mathias também é alvo de preconceito. Revela que é lugar-comum ser perseguido em lojas por causa da sua aparência – a pele mais escura e o cabelo crespo. Numa das vezes em que viveu na “pele” esse tipo de acosso, tinha uns doze anos e estava sozinho dentro de uma drogaria, uma rede popular alemã que vende desde medicamentos a perfumes e chocolates. Ele examinava um produto quando percebeu a presença da vendedora. Cada vez que mudava de corredor a vendedora o seguia. Quando seus olhares se cruzavam, ela disfarçava, fazendo de conta que estava arrumando as mercadorias. Ele já estava habituado com esse tipo de situação, ainda assim, a cada vez que se repetia se constrangia. Nesse dia, se encheu de coragem e encarou a moça: “você acha que eu não percebi que você está me seguindo porque pensa que eu vou roubar. Isso é muito errado, desconfiar de uma pessoa por causa da sua cor”. Na sua meninice indefesa conseguiu se posicionar.

Poderíamos pensar que sua reação foi um divisor de águas, que a partir daí, Mathias se rebelou e nunca mais passou por isso. Não.

Há três anos, Mathias enfrentou uma depressão. Seus pais, solidários à sua dor, decidiram mudá-lo de escola e isso foi positivo. Hoje, ele consegue falar abertamente sobre o que viveu: “as pessoas me chamavam de bicha, de feminino. Na minha antiga escola, me xingavam de gordo e chato. Eu não tinha amigos mas eu não contava para ninguém. Até que eu não consegui mais segurar e me abri com a minha irmã, e ela me ajudou a encontrar, com a ajuda dos meus pais, uma terapia. A partir desse momento minha vida mudou para melhor”.

Importante ressaltar que a Alemanha incentiva um convívio respeitoso, com iniciativas estatais e sociais permanentes contra o racismo. A lei fundamental da constituição alemã se baseia na intangibilidade da dignidade humana. Mesmo assim, os valores básicos da democracia precisam ser difundidos e defendidos regularmente com programas governamentais e a participação da sociedade civil. Há um Plano Nacional de Ação contra o Racismo, atualizado pelo governo federal em junho de 2017, que condena também a discriminação de homossexuais e transexuais.

A Aliança pela Democracia e a Tolerância – contra o Extremismo e a Violência reúne em todo o país um grande número de associações, grupos e projetos, e tem como objetivo engajar a população na causa. Existe uma página da Aliança na internet e todo o cidadão pode procurar as iniciativas disponíveis na sua região.

Nos estados federados alemães são promovidos trabalhos educativos contra a discriminação e o racismo. Cerca de 2.500 escolas na Alemanha já aderiram à rede europeia “Escola sem Racismo – Escola com Coragem”.

Quando do atentado da extrema direita no início desse ano em Hanau, no qual foram assassinadas dez pessoas, a chanceler Angela Merkel condenou o crime e lamentou o aumento da violência racista. “O racismo é um veneno. O ódio é um veneno. Esse veneno existe na nossa sociedade e já é culpado por demasiados crimes.”

A posição do governo é clara, os investimentos em programas contra o racismo, a discriminação e o preconceito também. Por que então esses crimes ainda acontecem na Alemanha? O que faz com que a alteridade continue sendo indesejada mesmo quando a escola trata do tema? Por que algumas pessoas ainda odeiam o diferente, o estrangeiro que é diferente de mim e que de acordo com as minhas percepções, estaria no mundo somente para me perseguir e me arruinar? Como conceber o outro que é estranho a mim sem me sentir ameaçado por ele? Aquele que, por não ser eu mesmo ou não fazer parte do meu núcleo particular de signos, toma forma de inimigo?

Pressuposto da Psicanálise é que a nossa constituição como sujeitos se dá a partir do outro, isto é, somos dependentes do reconhecimento da alteridade para que esse processo de subjetivação ocorra. No entanto, é precisamente a presença desse outro, do qual não podemos prescindir, que faz brotar em alguns sentimentos de desconfiança e temor.

Incoerentemente, sentem-se ameaçados por quem possibilitou sua existência como sujeitos.

A discriminação racial e de gênero ainda atravessam o cotidiano de crianças e de adolescentes em muitos países. O resultado disso são feridas emocionais não cicatrizadas. Na vida adulta, são sentidas como dores pontiagudas a cada experiência que atualiza a situação discriminatória passada.

O não reconhecimento do outro que “é diferente”, como assume Mathias, é não compreender o valor imensurável da diferença e, dentro dessa mesma lógica de ignorância, não aceitar a igualdade dos direitos, inclusive o de existir.

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