Segundo uma lógica em voga na direita radical goleiros são frangos, por Sr. Semana

Não importa o fato de frangos terem penas e goleiros não. Afinal ter penas ou pelos sobre o corpo em nada interfere na mobilidade, que é o atributo essencial para uns e para outros.

Segundo uma lógica em voga na direita radical goleiros são frangos

por Sr. Semana

Goleiros são bípedes. Frangos também são bípedes. O fato de ser bípede é um atributo essencial de goleiros e frangos (pensem na mobilidade facultada pelas duas pernas necessária para o bom desempenho de goleiros e para a sobrevivência de frangos). Logo goleiros são essencialmente frangos. Mais: as coisas incorporam o que tomam; goleiros tomam frango; logo goleiros são frangos.

Falácias como estas abundam no discurso da extrema direita. O fato de ser uma afirmação paradoxal—no sentido de contrária ao senso comum—amparada num pseudo-argumento dá aos que as afirmam uma sensação prazerosa de sofisticação e superioridade intelectual. Julgando saberem como não ser um idiota, acham que enxergam além dos indivíduos comuns que consideram frangos e goleiros entes distintos. Enquanto o senso comum é iludido pelas características que dão aparências contrárias às coisas, o direitista radical é capaz de discernir os atributos essenciais comuns que as identificam. E o fato de goleiros frequentemente frangarem pode conferir alguma plausibilidade aparente à afirmação paradoxal quando não se atenta para a diferença entre uso metafórico e literal das palavras.

Consideremos dois exemplos de raciocínios semelhantes.

“O nazismo era de esquerda”. O nazismo, como qualquer outra coisa, tinha várias características, uma das quais era atribuir um papel relevante ao estado. Políticas de esquerda também atribuem papel relevante ao estado, mas também têm várias outras características. Não importa na lógica em voga se estas outras características das políticas de esquerda são radicalmente opostas às demais características do nazismo. Conforme o credo neoliberal, o atributo essencial da política é o papel atribuído ao estado. Logo são secundárias as inúmeras outras características que distinguem regimes nazistas e políticas de esquerda (como o extermínio de certos grupos populacionais, defendido pelo nazista e condenado pelo esquerdista). Não importa o fato de frangos terem penas e goleiros não. Afinal ter penas ou pelos sobre o corpo em nada interfere na mobilidade, que é o atributo essencial para uns e para outros. Além disto, às vezes temos pena de goleiros frangueiros e estes sofrem penas por frangarem. A falácia não está somente em arbitrariamente eleger um atributo essencial, desconsiderando características que distinguem o que é identificado, nem na confusão entre diferentes sentidos das palavras, mas também em considerar como idênticas características que são somente superficialmente semelhantes. O papel atribuído ao estado pelo nazismo difere muito do que lhe é atribuído pela esquerda. Goleiros e frangos são bípedes, mas os membros inferiores de uns e de outros diferem significativamente em tamanho, articulação, fisiologia, etc.

O segundo exemplo mostra que, infelizmente, esta lógica peculiar também contaminou direitistas moderados. “Lula é igual Bolsonaro”. Bolsonaro critica a imprensa. Lula também critica a imprensa. Logo Lula é igual Bolsonaro. Mais: Bolsonaro tem apelo popular—fala diretamente com um segmento social. Lula também tem apelo popular—fala diretamente com um segmento social. Logo Lula é igual Bolsonaro. Mais: Bolsonaro quer mudar o Brasil. Lula também quer mudar o Brasil. Logo Lula é igual Bolsonaro. O argumento neste segundo exemplo se vale não somente de uma característica comum, mas das três citadas e ainda de outras que poderiam ser adicionadas: ambos têm carisma, ambos são bípedes, etc. O direitista moderado que formula o argumento é mais sofisticado do que o direitista extremado que formula o anterior, portanto adiciona mais fundamentos para sua afirmação. Mas as falácias que comete são as mesmas. Primeira falácia: por mais que características aparentemente comuns sejam arroladas, sempre restarão ignoradas inúmeras outras que distinguem radicalmente os dois políticos. Segunda falácia: identificam semelhanças superficiais que camuflam diferenças notáveis. Bolsonaro quer destruir a imprensa que lhe critica. Lula quer somente regulamentá-la economicamente para limitar a concentração de proprietários e fomentar a diversidade de conteúdo, que Bolsonaro rejeita. Os segmentos sociais que formam a base de um e de outro são também distintos assim como as transformações que querem fazer na sociedade: Lula quer diminuir a desigualdade social através de políticas públicas do estado, Bolsonaro quer destruir o estado para facilitar atividades econômicas privadas ilegais.

Como o direitista moderado é mais sofisticado que o extremista, sofistica o seu argumento com uma terceira falácia mais astuciosa que as duas anteriores. É verdade incontestável, afirmam, que Lula e Bolsonaro criticaram a imprensa enquanto presidentes. Lula reclamou da “má educação” de repórteres que cobriam o Palácio do Planalto (Folha de São Paulo, 02/11/2005). Digamos que outros episódios do tipo ocorreram ao longo dos seus 8 anos na presidência e compare-os com os promovidos pelo presidente atual. Bolsonaro humilha e assedia repórteres todas as semanas e ameaçou destruir dois dos seus mais importantes veículos, tudo isto em somente pouco mais de um ano de mandato. Mas não importa a diferença quantitativa e de intensidade. Como ambos criticaram a imprensa, sub-repticiamente é dito que são iguais no que concerne oposição à liberdade de imprensa. Frangos e goleiros comem milho. Não importa que o milho seja a dieta exclusiva de frangos e raramente ingerido por goleiros. Como ambos comem milho, sub-repticiamente é dito que são iguais no que concerne alimentação.

Três hipóteses para a propagação de tais falácias. 1a/ Obliteração racional ampla. Mentalmente incapazes ou incapacitados, vivem em realidade paralela na qual goleiros são frangos, nazistas são comunistas, a terra é plana, vacinas causam mal, etc. 2a/ Obliteração racional localizada. Não acreditam que goleiros são frangos, somente que o nazismo é essencialmente de esquerda ou—no caso dos direitistas moderados—que Lula é essencialmente igual Bolsonaro, porque neste campo de juízos políticos o uso da razão fica comprometido pela ideologia. 3a/ Má fé. Sabem que o raciocínio é falacioso, mas o disseminam mesmo assim “justificados” pelo que consideram um bem maior: destruição da esquerda (direitistas extremados); oposição a Lula (direitistas moderados). Nas guerras, afinal, as primeiras vítimas são a verdade e a lógica. Entre os mais sofisticados pode até haver a consciência de quererem sub-repticiamente insinuar que as demais características terríveis do nazismo (exterminar judeus, combater a diversidade, eliminar as liberdades, etc.) seriam também características da esquerda. Mutatis mutandis, as demais características de Bolsonaro (ódio, fascismo, racismo, etc.) seriam também características de Lula. Como tais afirmações são insustentáveis até para os que sofrem de obliteração racional localizada ideologicamente, são incutidas sub-repticiamente, embutidas nas afirmações falaciosas com alguma aparência superficial de verdade.

Graças à disseminação de ódio cujo um dos vetores é a astúcia retórica, o torcedor fanático extremista de direita poderá achar que goleiros (ou políticos) do seu time (ou da sua seleção que veste camisa amarela) que consideram frangueiros devem ser degolados, depenados, cozidos e comidos.

Redação

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